Vítor Pereira Quintet: “Jung” + “Electric Chamber” (Edição de autor)
Edição de autor
Guitarrista e compositor natural do Porto, Vítor Pereira rumou a Londres em 2004 e desde então tem desenvolvido intensa atividade na cena britânica com pontuais vindas a Portugal. Em 2022 regressa com dois discos: “Jung”, com o seu quinteto, e “Electric Chamber”, EP inaugural de uma formação homónima que espelha o seu interesse em explorar as interseções criativas entre jazz e música erudita. A jazz.pt já os escutou.
Baseado em Londres há quase duas décadas, desde que deixou o Porto natal para rumar à Universidade de Middlesex, o guitarrista Vítor Pereira (n. 1979) tem vindo a consolidar a sua posição na fervilhante cena local, dando corpo a diferentes projetos. Do seu polifacetado percurso constam colaborações com músicos como Marc Demuth, Asaf Sirkis, James Allsopp, George Crowley ou Binker Goldings, apenas para mencionar alguns.
Para o seu crescimento enquanto guitarrista e compositor têm concorrido múltiplas influências, desde logo o rock – por onde tudo começou –, a música erudita (não teve outra opção para prosseguir estudos), e o jazz a, universo que se revelou como síntese dos seus interesses musicais. O quinteto que funda passa a ser a principal plataforma para expressar a sua identidade artística. É com esta formação que edita os álbuns “Doors”, em 2012, “New World”, quatro anos depois, e “Somewhere in the Middle”, em 2018, com os quais adquire notoriedade no Reino Unido e em Portugal, onde habitualmente se apresenta em concerto.
Nos anos mais recentes tem-se vindo a focar na escrita de música para filmes. O músico diz à jazz.pt que «já andava há algum tempo a pensar numa direção nova no âmbito da música que fosse economicamente mais viável e que ao mesmo tempo satisfizesse o meu lado artístico. Ultimamente tenho feito música para alguns “short films” e esta área, apesar de levar tempo a construir, vai certamente constituir grande parte da minha produção musical.» Nesta rota, conta iniciar no próximo mês de setembro um mestrado em música para filmes e televisão na Universidade de West London.
Mas o ano de 2022 já está a ser muito produtivo para Vítor Pereira, não apenas pelo regresso do quinteto aos discos, mas também pelo lançamento de um projeto novo. O quinteto, com dois saxofones – Chris Williams no alto e Alam Nathoo no tenor – e uma secção rítmica com Mick Coady no contrabaixo e Adam Teixeira na bateria, acaba de editar o quarto álbum, “Jung”, em que a música é inspirada pelo trabalho seminal do psiquiatra e psicoterapeuta Carl Jung (1875-1961). Nos últimos anos Pereira retomou o seu interesse pelas sonoridades clássicas e deu corpo ao projeto Electric Chamber, um quarteto com violoncelo, que agora dá à luz o seu EP de estreia.
Assinando todas as composições em ambos os discos, Pereira volta a mostrar como equilibra uma escrita estruturada e rigorosa com a frescura e espontaneidade das improvisações, algo que já reconhecêramos nos registos anteriores. «Comecei a escrever esta música com uma certeza muito mais refinada daquele que é o “meu som”, daquilo em que eu sou único e especial. Gosto de melodias fortes e icónicas, mas imprevisíveis; gosto de contrapontos e desfasamentos rítmicos, gosto de desenvolvimento temático que cruze várias secções de cada peça», explica o músico à jazz.pt. Com o lado de compositor a, de alguma forma, sobrepor-se ao de guitarrista («nunca fui um guitarrista excecional», diz), «provavelmente compenso escrevendo bastantes coisas.»
Compostas em tempo de pandemia, sem concertos ao vivo para as experimentar, as peças chegaram relativamente fechadas ao par de ensaios que antecederam a gravação, o que não significa que careçam de espontaneidade ou urgência: «Tento sempre manter o aspeto improvisacional bastante vivo. Na construção de cada uma, para além dos solos ou secções de improvisação coletiva, tenho sempre consciência das partes que quero mais “abertas”. Escrevo nas partituras quando os músicos podem “sujar” mais as coisas ou variar naquilo que está escrito», complementa o guitarrista.
O fascínio por Jung não é de hoje e como pretendia escrever música que induzisse uma «viagem onde a música fluísse organicamente entre momentos escritos e improvisados e onde explorasse o contraste entre o sombrio e o luminoso», e logo o trabalho do suíço lhe veio à mente: «Quando pensei em Jung houve um clique, fez todo o sentido», revela. Comprou vários livros e deitou mãos à obra. «Algumas das suas ideias foram apenas pontos de partida, enquanto outras tiveram participações bem mais integrais nestas peças.»
O álbum do quinteto abre com “Individuation”, em que os dedilhados tranquilos da guitarra lançam os demais instrumentos numa peça construída em torno do rigor da estrutura definida e dos papéis atribuídos a cada peça deste xadrez instrumental, procurando abordar musicalmente o processo de desenvolvimento e integração. Uma progressão por momentos mais caóticos e sombrios parece representar um lado mais negro; tudo desemboca numa secção final que integra vários elementos expostos anteriormente. Fixam memória os jogos entre os saxofones e destes com a irrequieta secção rítmica, com a guitarra a arbitrar.
Mais melancólica e introspetiva, “The Hero” é introduzida pelo contrabaixo, que injeta um balanço repousado, da qual avulta um bom solo do guitarrista suportado pelos uníssonos entre os saxofones. Aludindo aos símbolos e conceitos que estão presentes de forma primordial na psique de todos os seres humanos, “The Collective Unconscious”, com a gradual exposição de diferentes versões de um mesmo motivo melódico, é marcada pelos contrapontos entre alto e tenor, que se lançam em vívidos diálogos, sublinhando ou contrastando ideias, com a guitarra sempre atenta ao desenrolar dos acontecimentos, e a secção rítmica hábil e interventiva.
A mais onírica “Dreams, Myths and Fairytales”, pináculo do álbum, é outro momento de atmosfera introspetiva, que adquire contornos mais intrigantes. “The Shadow”, montra para a agilidade discursiva do saxofone tenor, que a dado momento entrelaça a sua linha com a do alto, com suporte harmónico cuidado de Pereira e o baterista exemplar nas mudanças de direção. Os derradeiros trinta segundos tendem para o silêncio. “Mandala” (representação do que Jung chama o “self”, a totalidade daquilo que somos, consciente e inconsciente), é a peça mais extensa do disco, começa por uma conversa improvisadamente acesa entre alto e tenor, que depois adquire contornos de maior serenidade, com a melodia a elevar-se, jamais redonda ou previsível. O contrabaixo assina a solo uma boa intervenção. A melodia reemerge e dá lugar a novo solo do guitarrista, nova tração que conduz a peça a um segmento final em crescendo, «como se fosse sugada por um buraco negro».
A encerrar, “Synchronicity” explora essa sincronia de modos distintos, sendo percetível o recurso a processos de pergunta e resposta. A peça constrói-se em torno de uma melodia cativante que dá lugar a uma intervenção do guitarrista, servindo de rampa de lançamento para novo diálogo intenso entre os dois saxofones.
“Electric Chamber” é um projeto que só agora se concretiza, mas cuja ideia surgiu há já vários anos. As audições de música clássica levaram Vítor Pereira a pensar em estruturar um quarteto com violoncelo, onde explorasse algumas técnicas de composição como o cânone ou o contraponto, adaptados à sua própria linguagem e sonoridade. «O uso do violoncelo abre muitas possibilidades; pode assumir o papel que normalmente pertence ao contrabaixo e preencher aquele tipo de registo, mas também tem aquela excecional qualidade das cordas friccionadas que dão à música um caracter mais cinemático», sublinha. Daqui resulta uma música dinamicamente variada, de onde emergem momentos mais tranquilos e intimistas que num ápice se podem converter em descargas energéticas (o inverso é igualmente válido).
Tentou passar do conceito à prática, mas na altura o violoncelista acabou por ficar indisponível e o guitarrista resolver então abortar o projeto. Até que, recentemente, ao arquivar ficheiros antigos no computador, reencontrou estas composições numa pasta chamada “electric chamber”. Com o guitarrista estão neste projeto outros dois membros que acumulam funções no quinteto – o saxofonista tenor Alam Nathoo e o baterista Adam Teixeira – e o violoncelista Rupert Gillett, que, como era expetável, desempenha um papel pivotal no som global da formação.
O pendor camerístico desta música sublinha a troço grosso o caráter muito estruturado da música de Vítor Pereira. “Chamber 1” assenta num diálogo entre violoncelo e saxofone, a que se juntam depois guitarra e bateria; tem um bom solo de violoncelo, com o saxofone a seguir-lhe as pisadas. A guitarra sugere uma ideia em “Chamber 2”, que saxofone desenvolve, com a guitarra a pontuar, numa interessante dança; o violoncelo entra pleno de graciosidade carreando a peça noutra direção, evoluindo para um groove nutrido. “Chamber 3” é mais tranquila, com o saxofone a explanar a linha melódica; a guitarra propõe um motivo, e a peça desenvolve-se a partir de então. “Chamber 4” transmuta-se a dado passo em novo groove, com o motivo-base a reemergir na parte final. Talvez os seus próximos passos sigam esta linha de rumo.
A acrescer ao seu pecúlio anterior, “Jung” e “Electric Chamber” são dois discos que justificam que sigamos os passos de Vítor Pereira com redobrada atenção.
Vítor Pereira tem concertos de apresentação do álbum “Jung” com o seu “quinteto português” – João Mortágua (saxofone alto), Bernardo Tinoco (saxofone tenor), Nuno Campos (contrabaixo) e Diogo Alexandre (bateria) – agendados para 16 de julho na Porta-Jazz (Porto) – este com Ricardo Coelho sentado à bateria – e nos dias 12 e 13 de agosto no Hot Clube de Portugal, em Lisboa.
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Jung (Edição de autor)
Vítor Pereira Quintet
Chris Williams (saxofone alto); Alam Nathoo (saxofone tenor); Mick Coady (contrabaixo); Adam Teixeira (bateria); Vítor Pereira (guitarra e composição)
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Electric Chamber EP (Edição de autor)
Electric Chamber
Alam Nathoo (saxofone tenor); Rupert Gillett (violoncelo); Adam Teixeira (bateria); Vítor Pereira (guitarra e composição)