AP Quarteto: “Nu” (Carimbo Porta-Jazz)
Carimbo Porta-Jazz
Três anos após a “A incerteza do trio certo”, o novo álbum do guitarrista e compositor AP – petit nom de António Pedro Neves (n. 1981) – apresenta-se aos nossos olhos na mais desarmante simplicidade: um ténue traço cinzento sobre um fundo alvo, o nome da formação e o título, com apenas duas letras: “Nu”. Tem selo do Carimbo, o saudavelmente irrequieto braço editorial da Associação Porta-Jazz. A jazz.pt já o escutou.
Tudo isto aponta não apenas para o desejo de prosseguir uma lógica de “depuração” sonora, de certa forma uma redução à essência – marca também expressa nos seus registos anteriores –, mas radica, sobretudo, diz-nos o próprio, numa ideia de simplicidade, tentando que as peças soassem sem artefactos, por assim dizer despidas: «Quando improvisamos ficamos sempre um pouco “nus” e à mercê do que acontecer no momento.»
AP é um dos nomes de proa do fecundo ecossistema do jazz portuense, umbilicalmente associado à Associação Porta-Jazz. Conhecemos o papel pivotal que desempenha nos registos em nome próprio (quão longe vai a sua surpreendente estreia discográfica como líder em “6e5”, editado pela saudosa Tone of a Pitch em 2011), mas também quando labora para formações mais alargadas, como o Coreto; o álbum “Mergulho”, de 2014, é inteiramente constituído por composições de sua autoria, ou para a Orquestra Jazz de Matosinhos (OJM), para quem pontualmente faz arranjos. Mas é em grupos de dimensão mais reduzida como “Incerteza do trio certo” (com o contrabaixista Diogo Dinis e o baterista Miguel Sampaio), que editou álbum homónimo em 2019, o quarteto que gravou “Lento” (com Carlos Azevedo ao piano, Filipe Teixeira no contrabaixo e Acácio Salero na bateria) ou o quinteto Sinopse, do contrabaixista João Paulo Rosado, que mais claramente descortinamos toda a amplitude da sua abordagem.
Em “Nu”, AP mostra-se com o seu novo quarteto, que se completa com o ótimo pianista que é José Diogo Martins (Omniae Ensemble de Pedro Melo Alves, ENTER THE sQUIGG de Mané Fernandes ou Symph de Hugo Antunes) e por uma secção rítmica com outros dois nomes em ascensão na cena portuense, o contrabaixista Gonçalo Sarmento e o baterista Gonçalo Ribeiro. Mantém-se aqui os principais elementos do seu universo sonoro; mas se em “Lento” optou por explorar mais a componente rítmica, determinadas ferramentas de composição e uma improvisação de pendor mais convencional (sobre uma estrutura harmónica), pressente-se em “Nu” uma vontade de experimentar novas possibilidades, de assumir outros riscos. «Não queria utilizar o termo “experimental”, mas tem um pouco que ver com isso no sentido em que pensei nos temas de uma forma mais “aberta”, utilizando recursos como a improvisação livre e a exploração tímbrica dos efeitos da guitarra», explica AP à jazz.pt.
Gravado em março de 2022 nos estúdios CARA – Centro de Alto Rendimento Artístico, da OJM, o novo álbum do guitarrista expande vistas, explora a simplicidade melódica e contrasta-a com outras atmosferas, umas impregnadas de groove e outras onde a improvisação livre é quem mais ordena. Apesar de AP ser o único compositor, a dimensão coletiva adquire um caráter decisivo: «Durante os ensaios experimentamos algumas coisas e claro que há sempre sugestões dos outros músicos que por vezes alteram os temas. Os temas ganham vida durante os ensaios num processo de experimentação e criação conjunta.»
Para a sua visão artística, elegante e estruturada, convergem múltiplas referências, do jazz à música erudita, do rock e da música popular. «Há temas que surgem de uma simples ideia que depois tento desenvolver, seja ela uma melodia, um conjunto de acordes, um gesto musical, outros ainda da livre exploração de timbres dos instrumentos e outros da simples tentativa de evocar um sentimento ou sensação», reforça o guitarrista. Percebe-se que a tónica foi colocada na busca de sonoridades e timbres, quer nos plano composicional quer improvisações, que conferisse coerência interna aos temas e ao álbum no seu cômputo.
Ressalta claro que guitarra e piano assumem, direi naturalmente, centralidades próprias daí decorrendo uma maior liberdade de movimentos, acolitados pela bateria e pelo contrabaixo (ou baixo elétrico), embora haja momentos em que também estes instrumentos soltam amarras e voam livremente. Em “Cubo 1”, por exemplo, peça completamente escrita e sem improvisação, AP explorada certas técnicas de composição, com os acordes a desenvolverem-se dentro de uma frase rítmica proposta pela guitarra e pelo baixo, que expõem a ideia base, e que depois o piano, fazendo a mesma progressão, logo interpela, o mesmo acontecendo com a bateria.
“Escuro” assenta num motivo explanado por guitarra e piano, que Martins desenvolve de forma inteligente. A guitarra pontua, intervindo esporadicamente, até ao solo desta, com o piano então a assumir o leme. A secção rítmica cumpre a missão com sobriedade. “Limbo”, um dos momentos mais interessantes do disco, começa enérgica e dominada por baixo e bateria; a aparente desordem dá lugar a uma atmosfera perturbadoramente serena, sublinhada pelas notas do piano e pela clareza do discurso do guitarrista, em notável momento de improvisação.
“Cubo 2” é vinheta de cariz mais exploratório, a que aos efeitos de guitarra acrescem, a espaços, acordes sobrepostos de guitarra e piano, retomados de “Cubo 1”. “Sim Fonia”, a peça mais extensa do disco, é conduzida pela guitarra, que instila um som mais groovy, com motivos repetidos que se transmutam. Outro dos pontos altos do disco é “Útero”, em que o piano cristalino e os efeitos subtis de guitarra, livremente improvisados, constroem outra peça de ambiência enigmática. A bateria de Ribeiro introduz “O Pintor”, que desemboca numa melodia simples, com diálogo intenso entre a pulsação rock da guitarra e o piano, e a secção rítmica a arbitrar.
“Tema Inocente” funda-se noutra melodia aparentemente simples e numa linha de baixo, ganhando contornos aqui mais abstratos ali mais figurativos e outros plenos de groove. O andamento pausado de “Cubo 3” é remate conclusivo apropriado, revisitando a grelha harmónica de “Cubo 1”, que sustenta uma melodia urdida pela guitarra e depois pelo piano.
“Nu” é nova prova, se necessária fosse, da relevância criativa de AP enquanto guitarrista e estratego sonoro de quem sempre se podem esperar resolutos passos em frente.
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Nu (Carimbo Porta-Jazz)
AP Quarteto
AP (guitarra elétrica, efeitos, composição); José Diogo Martins (piano); Gonçalo Sarmento (contrabaixo); Gonçalo Ribeiro (bateria)