In Real Time: “Blue Shift” (Line Art)
Line Art
Parafraseando o sempre sagaz Mark Twain, as notícias sobre a morte do trio piano-contrabaixo-bateria são manifestamente exageradas. Amiúde, o nosso aparelho sensorial é estimulado por novos e substantivos exemplos de exploração das potencialidades criativas do formato, comprovando-se estarem longe de exauridas, em diferentes abordagens e latitudes estilísticas. A elasticidade da geometria continua a ser posta à prova e a aguentar estoicamente as forças aplicadas.
In Real Time é um trio destinado a acrescentar pontos a este conto, servindo-se dos préstimos de nomes sólidos da cena nova-iorquina como são a pianista Carol Liebowitz, o contrabaixista Adam Lane e o baterista e percussionista Andrew Drury. Apesar de “Blue Shift” – com selo da Line Art Records, editora independente criada pela pianista – ser o registo de estreia da formação, as origens desta remontam aos já longínquos anos 80 do século passado, quando Lane e Drury eram colegas na Universidade Wesleyan. Apesar de ambos exibirem um extenso rol de projetos e gravações, este é o primeiro álbum em que tocam juntos, o que, só por si, constitui motivo de interesse acrescido.
Inspirada após conhecer o baterista numa jam session em Brooklyn, em 2016, Liebowitz logo pensou num duo e, ato contínuo, num trio, com Lane a assumir o mais corpulento dos cordofones. Os três começaram a tocar juntos em 2017 e aportam um amplo espetro de características que fazem do cômputo sonoro do grupo algo algebricamente superior à soma das partes. A pianista continua a ser senhora de um som muito expressivo e pessoal, que nutre com elementos vindos da música de matriz erudita (por onde tudo começou), do jazz, para onde a dado instante se virou (foi aluna de Connie Crothers, por sua vez discípula de Lennie Tristano), e de outros domínios da música improvisada. Tentei não mais perdê-la de vista desde que escutei o seu trio com o clarinetista Bill Payne e a violinista Eva Lindal.
Adam Lane é alguém que continua a burilar uma voz própria, ao mesmo tempo potente e fluida, também fundada em múltiplas influências, e que os conhecedores do catálogo da Clean Feed bem conhecem, quer através da sua Full Throttle Orchestra – “New Magical Kingdom” (2006) e “Ashcan Rantings” (2010) continuam a ser álbuns de audição inescapável – e do já lendário quarteto 4 Corners, com Ken Vandermark, Magnus Broo e Paal Nilssen-Love.
Andrew Drury é pioneiro na aplicação de técnicas extensivas à percussão e um apaixonado pelas raízes africanas do jazz (muito deverá essa paixão à orientação dada durante quase uma década por Ed Blackwell). Conheci o seu trabalho em 2005, quando veio a Portugal integrando um excelso trio (em estreia europeia), com a pianista Myra Melford e o saxofonista e clarinetista Chris Speed. Não mais me saiu do radar, nomeadamente o seu extraordinário trabalho a solo, com o quarteto Content Provider e muitas outras colaborações (como aquelas que mantém com Jason Kao Hwang e Ken Filiano, já devidamente escrutinadas na jazz.pt, aqui).
Em cinco peças totalmente improvisadas, com uma duração total que pouco ultrapassa os quarenta e cinco minutos, o trio diz ao que vem. Não há aqui hierarquias funcionais ou laivos de subordinação, com os três vértices no mesmo patamar de centralidade. A concisão e a organicidade dos processos de exploração melódica, harmónica e rítmica espelhada em “Blue Shift” é um dos seus aspetos assinaláveis. A função abre com a intensidade de “Crosstown”, com a dupla rítmica no auge. Junta-se-lhe o piano monkiano de Liebowitz, numa peça plena de energia, que abranda nos derradeiros três minutos, espreitando fragmentos melódicos a que Lane acrescenta densidade por via da utilização do arco.
“Curve” estende as mesmas premissas, com as angulosidade do piano a darem lugar, aqui e ali, a miniaturas melódicas que são prosseguidas ou logo se desvanecem, em delicadas ruminações, sublinhadas ou contrastadas pela percussão de filigrana e o contrabaixo assertivo. As notas carnudas de Lane, acolitadas por piano e bateria, dão o mote para a peça-título, com as suas paisagens sónicas em constante mutação. Em “Sequoia Moon” encontramos alguns dos momentos mais enigmáticos do disco, com a utilização das percussões distante de convencionalismos e a austeridade do piano que alimenta uma tensão latente. Com o seu mosaico rítmico e alternância de passagens intensas com outras mais rarefeitas e de grande beleza, “Passacaglia” é um caleidoscópio temático que muito deve à prestação notável do contrabaixista, sozinho ou em estreita articulação com os outros dois. Segui-lo é um deleite.
“Blue Shift” merece longa digestão, que certamente em muito recompensará quem a ela se dispuser.
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Blue Shift (Line Art)
In Real Time
Carol Liebowitz (piano); Adam Lane (contrabaixo); Andrew Drury (bateria e percussões)