Immanuel Wilkins: “The 7th Hand” (Blue Note)
Blue Note
Volvidos dois anos do lançamento de “Omega”, o jovem saxofonista norte-americano Immanuel Wilkins regressa aos discos com “The 7th Hand”, um trabalho de fino calibre que nada fica a dever ao seu aclamado antecessor, superando-o, aliás, no domínio das ideias e sentido. Antes de mais, compreende-se a preferência de Wilkins de não continuar com letras do alfabeto grego, não fosse este um álbum plenamente desconfinado, aberto e expansivo. “The 7th Hand” assume-se, acima de tudo, como um acto de progressiva transcendência, de procura sequencial e não-linear de materialização musical daquilo que é precisamente trans-humano, divino, e que surge da ideia de se ser “a conduit for the music as a higher power that actually influences what we’re playing”, como o próprio Wilkins declara em notas de apresentação.
Encontramo-nos, portanto, perante música de contornos teleologicamente teofânicos, ainda que apenas assimptoticamente, pois há neste trabalho amplo espaço para música visceralmente térrea, profundamente ligada ao espírito e às emoções humanas, que tanto embala como provoca; tanto bebe dos cânones do jazz como de uma irreverência transgressora que lhes esbate as fronteiras; tanto serve de impulso à contemplação e meditação como impele ao êxtase e à húbris. Esta é, assim, música costurada com tecido verdadeiramente humano, esse mesmo que reconhece os seus próprios limites e se propõe a transpô-los, agindo o quarteto como mediador de dita “potência superior”, a qual se consubstancia – ou, quem sabe, se transubstancia, perdoem-me a possível heresia – num acto final de evidente inspiração colectiva. Mas esta obra não só é resultado de interessantes ideias composicionais e conceptuais como também de uma sólida dinâmica colectiva. A este respeito, refira-se que o quarteto que acompanha o altista Immanuel Wilkins é o mesmo que havia gravado “Omega”, sendo este formado pelo pianista Micah Thomas, baixista Daryl Johns, e pelo baterista Kweku Sumbry.
O tiro de partida da suite de sete peças que constitui “The 7th Hand” dá-se com “Emanation”, tema de jazz modal, próximo de algumas das estruturas composicionais que se haviam ouvido em “Omega”. O motivo melódico é rodopiante e sincopado, recheado de passos em falso e tropeções rítmicos que desamparam qualquer intenção de antecipação. Seguem-se improvisações de protagonista: a primeira é guiada pelo próprio Wilkins, que se move com grande velocidade e destreza, oscilando entre fraseados rabiscados e saltitantes à lá Parker e ocasionais vocalizações guturais que remetem para um Arthur Doyle em passo estugado; a segunda surge pelas mãos de Micah Thomas, pianista de profuso discurso, que toca como se notas caíssem de uma cascata de volumoso caudal com nascente na pianística de Bill Evans.
“Don’t Break” desenvolve-se sob uma matriz polirrítmica alinhada com a percussão da África Ocidental, à qual a tríade saxofone-piano-contrabaixo sobrepõe frases de blues, iteradas até sua transmudação em ostinato, ostinato esse que contribui para a ambiência ritualística e ancestral que emana do tema. Por fim, caem os instrumentos harmónico-melódicos, e o ensemble Farafina Kan continua a celebração ao som dos djembês. “Fugitive Ritual, Selah” é uma ternurenta balada tocada a saxofone redondo e fumegante, baixo ambulante que se apresenta contido mas assertivo, piano de sonorizações harmónicas, e percussão à base de escovas ou ritmíca frugal – um verdadeiro aconchego para o espírito, composto pelo altista “as a hymn to Black spaces”. Os dois movimentos seguintes, “Shadow” e “Witness”, servem como momentos de ordenção para o grupo, que neles se vê aumentado pela flauta de Elena Pinderhughes. O primeiro encontra-se envolto em uma aura de mistério e suspense, ao passo que, no segundo, o quarteto toca com lentidão e curiosidade, surgindo a flauta como o elemento livre que se opõe à ordem homofónica e homorrítmica do quarteto, a este se unindo para os finais momentos de consonância.
O post-bop de cadência acelerada de “Don’t Break” é revisitado em “Lighthouse”, tema em que se ouve um Wilkins fulgurante, extático e embevecido, sempre impecavelmente acompanhado pelo restante grupo, em momentos reduzido a trio pela saída provisório do piano de cena, a qual permite a criação de dinâmicas que até aqui ainda não haviam sido exploradas. E se já estava a ser bom, a viagem torna-se realmente séria em “Lift”, o ponto apical deste trabalho. “Lift” é tanto a ascensão de Coltrane como a unidade espiritual de Ayler. É o sétimo dia, esse mesmo da totalização do absoluto da obra do divino. São 26 fugazes minutos de improvisação colectiva dada a explorações inspiradas por uma ordem superior e vocalizações de formas que se movem por entre um infinito de possibilidades. E, se ainda fosse preciso, serve este tema como consagração final de um álbum de escuta essencial que indubitavelmente reitera o génio musical de Immanuel Wilkins.
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The 7th Hand (Blue Note)
Immanuel Wilkins
Immanuel Wilkins (saxofone alto); Micah Thomas (piano); Daryl Johns (contrabaixo); Kweku Sumbry (bateria); Elena Pinderhughes (flauta); Farafina Kan Percussion Ensemble (percussão)