Orquestra Jazz de Matosinhos, Rebecca Martin & Larry Grenadier: “After Midnight” (OJM/CARA)
CARA / OJM
Verdadeira instituição do jazz nacional, a Orquestra Jazz de Matosinhos (OJM) está a completar 25 anos de um percurso rico e diversificado. E fá-lo, nomeadamente, através da edição de “After Midnight”, onde à "big band" se juntam a cantora e compositora Rebecca Martin e o contrabaixista e compositor Larry Grenadier, seu marido e habitual parceiro artístico.
Constituída por dezasseis músicos de escol, a “big band” volta aos discos com uma proposta que complementa de modo não despiciendo o pecúlio já amealhado, do qual avultam colaborações com Lee Konitz, Carla Bley, Maria Schneider, Kurt Rosenwinkel, Fred Hersch, Joshua Redman e Dee Dee Bridgewater, apenas para mencionar algumas.
Onze temas, seis originais e cinco versões, integram o novo disco, produzido por Pedro Guedes e Rebecca Martin e sabiamente gravado e misturado por Mário Barreiros no início de 2020, quando o mundo ainda não sabia o que espreitava ao virar da esquina. Depois de “Jazz in the Space Age” (notável celebração da música de George Russell) e da reedição de “Bela Senão Sem” (com a companhia do pianista João Paulo Esteves da Silva), “After Midnight” é o terceiro registo com selo do Centro de Alto Rendimento Artístico (CARA), estúdio da OJM na Real Vinícola, em Matosinhos.
Refletindo um otimismo temperado pela prudência, o que aqui se escuta é fruto de uma cumplicidade artística nutrida após o convite endereçado pela OJM à cantora norte-americana, que no final de 2017 se deslocou ao Porto para um concerto na Casa da Música e acompanhou a orquestra ao Voll-Damm Festival Internacional de Jazz de Barcelona. A orquestra revela-se exímia na forma muito particular como trabalha o impressionismo aveludado das canções de Martin, com uma elegância de processos que continua a surpreender e cativar.
Prosseguindo uma abordagem própria ao cancioneiro americano, ao mesmo tempo capaz de criar ambientes serenos e de pendor introspetivo, Rebecca Martin estreou-se na dupla Once Blue, no início dos anos 1990, com o compositor Jesse Harris. Para além de meia dúzia de álbuns a solo aclamados, colaborou com baterista Paul Motian (foi a primeira cantora a acompanhá-lo em disco) e o pianista argentino Guillermo Klein, para além de ter integrado o trio vocal Tillery, ao lado de Becca Stevens e Gretchen Parlato. Foi ao escutá-lo que Pedro Guedes, diretor e maestro da OJM, decidiu convidar Rebecca a atravessar o Atlântico.
Guedes vinca que «a música original da Rebecca é muito intimista, mas o que poderia ter sido um grande desafio, captar essa intimidade num contexto de “big band”, acabou por ser bastante natural.» A cantora retribui o mimo: «É raro, como cantora, ter a oportunidade de trabalhar e gravar com uma orquestra nos dias de hoje. Foi um grande desafio, com tempo limitado, mas que abracei entusiasticamente.»
A coleção de canções abre com a acessibilidade colorida de “The Space in a Song to Think”, incluída em “The Growing Season”, álbum de 2008, então contando com o dedo indelével de Kurt Rosenwinkel. O contrabaixo de Grenadier dá o mote para “In the Nick of Time (State of the Union)”, com a sua bela linha melódica a ser exemplarmente desenvolvida na articulação entre os naipes, destacando-se o portento de leveza que é o baterista Marcos Cavaleiro. Do material original da cantora, nota ainda para a delicadeza de “Don't Mean a Thing at All” – de “Twain” (2013) –, com arranjo de Guillermo Klein, e para a atmosfera onírica de “Joey”, resgatada a “Thoroughfare”, a estreia a solo em 1999. O tema-título, também retirado de “The Growing Season”, aqui contando com um belo arranjo de Pedro Guedes, alude com particular sensibilidade à experiência vivida pelo irmão da cantora na guerra do Iraque.
De entre os temas alheios, não há como contornar as leituras tocantes de “Brother, Can You Spare a Dime”, eco do vendaval económico e social (onde é que já ouvimos isto?) que foi a Grande Depressão, de “Portrait”, de Charles Mingus, e do sempre belo “Willow Weep for Me”, clássico escrito em 1932 por Ann Ronell que toda a gente cantou, de Billie Holiday a Tony Bennett, passando por June Christy e Nina Simone, e que Rebecca Martin chama a si com um timbre quente e sedutor, bem acolitado pelo som pungente do saxofone barítono de Rui Teixeira. A vitalidade intemporal de “Lush Life”, emblema do genial Billy Strayhorn, recompensa de cada vez que a escutamos.
Alertam-nos os cientistas atómicos de que o relógio do apocalipse continua a 100 segundos da meia-noite. Na sua serenidade balsâmica, “After Midnight” segreda-nos confiança para o que vier depois.
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After Midnight (CARA / OJM)
Orquestra Jazz de Matosinhos, Rebecca Martin & Larry Grenadier
Pedro Guedes (direção e arranjos); Rebecca Martin (voz, guitarra, letras e composições); Larry Grenadier (contrabaixo e composições); João Pedro Brandão, João Guimarães, Mário Santos, José Pedro Coelho e Rui Teixeira (madeiras); Luís Macedo, Javier Pereiro, Rogério Ribeiro e Ricardo Formoso (trompetes e fliscornes); Daniel Dias, Paulo Perfeito, Andreia Santos e Gonçalo Dias (trombones); André Fernandes (guitarra); Carlos Azevedo (piano e arranjos); Marcos Cavaleiro (bateria)