Itta Nakamura / João Clemente: “Haseru” (edição de autor)
Edição de autor
É sempre gratificante seguir o que vai surgindo do planeta Slow is Possible, bem como do périplo do guitarrista desta banda surpresa, João Clemente, pela cidade de Berlim. “Haseru” é o novo título de uma actividade que nem a pandemia tornou mais lenta. Trata-se de um trabalho de corta e cola, acrescento, mistura e pós-produção como metodologia composicional, estritamente organizado por via de uma troca de ficheiros pela Internet. O baterista japonês Itta Nakamura gravou a bateria e enviou os registos a Clemente e este “encheu” as restantes partes (guitarra eléctrica com muita electrónica acoplada) e moldou o todo até resultar numa colecção de pequenos temas que variam entre o 1 minuto e os 3 e qualquer coisa, entre a miniatura compactada (literalmente, dada a saturação sonora) e o formato canção (but it ain’t) de algo que introjecta num rock (chamemos-lhe punk-metal, hardcore ou grindcore, pouco importa) de consciência prog e projecção experimental algo que vem declaradamente do universo electroacústico. É como se John Zorn e Xenakis se tivessem tornado bons amigos e passassem o confinamento a desafiarem-se um ao outro, tendo como único compromisso a adopção dos processos “cut-up” de William S. Burroughs.
As partes baterísticas definiram de imediato um âmbito de acção. Nakamura vem do universo musical em que habitam os Ruins (Tatsuya Yoshida parece ser a sua grande referência), os Fushitsusha de Keiji Haino ou os Ground Zero de Otomo Yoshihide e isso significa que os “beats” com métricas impossíveis ou vão desfazer-se mais adiante, numa caída de precipício para a abstracção, ou mudar para configurações totalmente diferentes. João Clemente esticou esta abordagem especificamente nipónica para o domínio do noise igualmente japonês, mas não fica por aí: é o caminho escolhido para algo que, no contexto das actuais músicas urbanas do planeta, nos retrata a vivência dos “misfits” das sociedades ditas democráticas, dos desenquadrados, dos rebeldes, dos resistentes, dos anarcas, dos okupas, dos queers, dos vegans, daqueles que estão à procura de novas formas de (co-)existência que não as padronizadas pelo neoliberalismo vigente.
O que vem neste breve álbum funciona para os ouvidos como um cocktail molotov: a curta duração das peças faz com que nenhuma ideia se cristalize e instale. É um toca-e-foge, uma recusa de identidade fixa ou de essencialismo. A desmesura em termos de conteúdo cria neste enquadramento do pequeno um paradoxo: o pequeno é a medida do grande e vice-versa. Tudo é excessivo, o som (e o ruído), os processos, as técnicas, as estruturas, as formas e a expressão. Esse excesso só não se torna invasivo (John Cage considerou que as orquestras de guitarras de Glenn Branca eram “fascistas”: «I don’t want such a power in my life», disse) porque passa muito rapidamente por nós. Funciona apenas como uma estalada para acordarmos, não como uma imposição, no sentido em que esta exige permanência no tempo para ter eficácia autoritária. Estes gitos de Munch, estes disparos de raiva e recusa, são provocações. Exteriorizam as emoções de quem toca, é certo, são catárticos, mas sobretudo procuram um efeito nos outros, uma reacção. Sendo que as melhores reacções que podemos ter são as disruptivas, as entrópicas, todas as que não estão já codificadas pelas nossas psiques e pelas memórias motrizes dos nossos corpos. O que esta música quer é provocar acidentes. Interferir nas nossas rotinas, desestabilizar-nos, tirar-nos o tapete de debaixo dos pés. E isso só pode ser bom.
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Haseru (Edição de autor)
Itta Nakamura / João Clemente
Itta Nakamura (bateria); João Clemente (guitarra eléctrica, electrónica)