Hydra Ensemble: “Voltas” (Inexhaustible Editions)
Inexhaustible Editions
Sabemos já que Amesterdão é um eixo geográfico de muitas práticas nos âmbitos do jazz, da improvisação livre e do experimentalismo, juntando músicos de várias origens europeias, além de algumas outras. Mas não é apenas na capital da Holanda que tal acontece: Roterdão vem cada vez mais tendo esse papel, funcionando como uma plataforma de encontro e também de gestação de projectos. Um exemplo é este Hydra Ensemble, que junta o contrabaixista português Gonçalo Almeida a figuras aí residentes oriundas da Suíça (a violoncelista Nina Hitz) e da Croácia (Lucija Gregov, também no violoncelo), tendo como único participante holandês Rutger Zuydervelt, mais conhecido como Machinefabriek, artista sonoro da área da electroacústica que, no seu trabalho, segue uma única premissa, bem concretizada neste “Voltas”: «O diabo está nos detalhes.»
E se também já sabemos do gosto de Almeida pelos grupos que assentam nos cordofones de arco, como é o caso de The Selva (cujo mais recente álbum conta igualmente com a colaboração de Machinefabriek), esta hidra de quatro cabeças funciona como a definitiva assunção desse formato em termos composicionais e, muito particularmente, de uma definição de ideias no que respeita a timbre, cor e, mais do que isso, de um certo entendimento do Som que terá referência (assim o pressinto na audição do disco) em Giacinto Scelsi. Esta é uma música de interstícios, ocupando as fendas que existem entre várias práticas musicais, como a minimalista, a experimental ou a ambiental. E se aqui ou ali ouvimos ecos da música antiga, da contemporânea, da free improv ou mesmo do jazz explícito, é porque são esses os “backgrounds” – e os outros “presentes” dos seus projectos individuais – dos intervenientes.
Porque de uma ocupação de fendas se trata, tudo o que aqui acontece é uma ampliação, um uso e um intencional abuso, do muito pequeno, do liliputiano, transportando o quase nada para uma evidenciação de primeiro plano, seja a peremptoriedade da argumentação em “II”, os agudos tipo “glass harmonica” do início de “III” ou o que encontramos em “IV”: as repetições de motivos do contrabaixo e dos dois violoncelos tornam o pouco em muito, enquanto a electrónica é tão discreta, tão elaborada a partir de elementos diminutos, que resulta impossível ignorá-la no panorama que se desenrola diante de nós.
Logo a seguir, “V” tem o tronco providenciado pelo contrabaixo em “drone” de harmónicos nos subgraves, com os restantes instrumentos a acrescentarem ramos, galhos, folhas e flores, mas sempre com a mesma noção de medida, aquela de uma metonímia do pequeno no grande, do imanente, do corpo-centrado (corpo do instrumentista, corpo do instrumento, corpo já imaterial da música) para o extrapolado – com o clímax no derradeiro tema, “VI”, aquele em que a electrónica finalmente se solta no espaço e o ocupa/totaliza. É como se um posicionamento materialista se tornasse em metafísica. O que vem neste disco são sonhos orgânicos e sabe bem ouvi-los.
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Voltas (Inexhaustible Editions)
Hydra Ensemble
Gonçalo Almeida (contrabaixo); Nina Hitz, Lucija Gregov (violoncelos); Machinefabriek (electrónica)