João Mortágua / Luís Figueiredo: “Kintsugi” (Roda Music)
Roda Music
“Kintsugi” é uma técnica ancestral japonesa de restauro de peças cerâmicas com recurso a uma liga de resina com pó de ouro (ou outro metal precioso, prata ou platina). Como abordagem filosófica, próxima da corrente “wabi-sabi”, lida com a aceitação do imperfeito e do defeituoso. É por isso habitual na tradição nipónica guardarem-se objetos danificados, vincando as rachaduras e as reparações de que foram alvo, em vez de os descartar. «After gathering the pieces, you have to feel the cracks», escuta-se em “Stream VIII” (já Leonard Cohen avisadamente cantava: «There is a crack, a crack in everything / That's how the light gets in.»)
É este o conceito que está na génese do álbum de estreia de uma parceria em boa hora instituída entre duas das mais relevantes figuras do jazz nacional da atualidade, o saxofonista João Mortágua e o pianista Luís Figueiredo. Apesar de terem tocado juntos pela primeira vez em 2013, a ideia de estreitarem laços num projeto comum só germinou em 2019. “Kintsugi”, o primeiro fruto, alarga horizontes: «É uma viagem rumo à descoberta, entre o perfume da experimentação e o sabor do incerto. Sem evitar nenhum caminho, os nossos estilhaços musicais são base de sustentação de uma construção cooperativa e interativa, numa busca de ouro no erro, no acaso e na adaptação a este», diz João Mortágua à jazz.pt. «É possível que soe disruptivo para quem conheça algumas das minhas edições anteriores, mas a verdade é que não é de todo um desvio para mim», complementa Luís Figueiredo.
Já em 2021, o pianista ofereceu-nos “À Deriva”, a sua primeira e notável incursão no mais solitário dos formatos, também com selo da Roda Music – editora que cofundou e de que é um dos responsáveis. Desdobrando a sua atividade por vários grupos, prova de loquacidade em múltiplos contextos, Mortágua trouxe em 2020 “Land”, com o seu quarteto Mazam, na Carimbo Porta-Jazz, álbum que veio aditar pontos aos anteriores “Mirrors”, “Axes” e “Dentro da Janela”.
Tudo assenta, pois, no labor oficinal de construção-desconstrução-reconstrução, exercícios partilhados de experimentação sonora, impelidos por uma indisfarçável atração pelo risco. «Utilizamos fragmentos de ideias musicais e exploramo-los da forma mais livre que conhecemos. E o resultado, esperamos, é maior que a soma das partes», sublinha o pianista. Não há aqui hierarquias ou predominâncias, antes uma simbiose criativa de permanente desafio mútuo que guinda o duo para territórios inusitados.
Para além dos instrumentos habituais, fazem uso de um conjunto de recursos, orgânicos e eletrónicos, para expandir o som. Partiram de ideias apenas esquissadas (pequenas melodias ou progressões harmónicas, ostinatos, padrões rítmicos) ou mesmo do nada para construir um universo especial. Por vezes improvisam sobre as improvisações, noutras situações adicionam camadas em pós-produção de forma a acentuar os momentos de improvisação que mais os satisfizeram. «Mas no centro desta música está a improvisação livre», reforça Figueiredo. «Continuamos a tentar concretizar o som que temos na cabeça, quer tenha uma fonte acústica, eletroacústica ou eletrónica. Essa postura está lá desde o início deste projeto.»
Abrem o álbum as notas serenas de saxofone soprano em “Stream I” (as peças intituladas “Stream” são improvisações completamente livres, sem qualquer elemento predeterminado). Assim que o piano entra em cena, desde logo se entabulam estímulos e interações. Ficamos a saber que “Bong Ban” é inspirada no ping pong, «enquanto desporto e dança, jogo dinâmico de coordenação motora, num diálogo rítmico e cinético» (Mortágua dixit). “Stream II” inicia-se com uma declaração de Figueiredo, que o saxofonista logo contesta num exercício de parada e resposta até ao derradeiro segundo. “Floor” tem Figueiredo no Fender Rhodes e um fio eletrónico que funciona como se de um instrumento adicional (uma flauta, por exemplo) se tratasse. A segunda parte, “Roof”, é uma festa no telhado, com o seu “groove” fulgurante de certa forma devedor de algum do jazz de fusão da melhor cepa.
Sons de proveniência incerta são processados eletronicamente em “Stream V”, antecâmara para a espantosa “Liquid Song”, que parte de um motivo base para depois tergiversar, com saxofonista e pianista a voarem livres até reexporem o tema no final, sem que algo tenha ficado como dantes. “Stream III” é uma vinheta em jeito de conversa franca que antecede uma “Journey” feita de eletrónicas coloridas, saxofones ziguezagueantes e um “beat” irrepreensível. A atmosfera serena com a reconfortante “Enlightenment”. A fechar, a dupla serve “Home”, balada de contornos mais convencionais, sim, mas absolutamente eficaz nos seus propósitos.
Compaginando elegância e irreverência e processando sem pruridos referências várias, “Kintsugi” representa um passo adiante nos sólidos percursos já trilhados por João Mortágua e Luís Figueiredo. Apontado sem reservas e desde já ao topo do rol dos melhores nacionais do ano.
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Kintsugi (Roda Music)
João Mortágua / Luís Figueiredo
João Mortágua (saxofones, eletrónica e outros instrumentos); Luís Figueiredo (teclados, percussão, eletrónica e outros instrumentos)