Luís Figueiredo: “À Deriva” (Roda Music)
Roda Music
Neste bem frequentado retângulo pianístico à beira-mar plantado, Luís Figueiredo (n. 1979) tem vindo a talhar um importante percurso, plasmado numa dúzia de discos, destacando-se aqueles em que surge como líder, desde “Manhã” – a estreia em nome próprio, em 2010 –, “Lado B” (2012) ou “Kronos/Penélope” (2017). Avultam também os dois tomos do duo Songbird – a meias com o contrabaixista João Hasselberg –, nos quais trabalhou material de autoria alheia, conferindo-lhe um sabor distintivo.
Pandemia aparte, o ano de 2020 foi para o pianista, compositor e arranjador um período particularmente nutrido em termos de edições discográficas, tendo-nos oferecido “This Was What Will Be” (com o harpista Eduardo Raon e o mesmo Hasselberg), o disco de estreia do projeto Círculo, que partilha com Rita Maria e Mário Franco, e “Pranava”, com a cantora Lara Lima, os dois últimos na Roda Music, editora de que é cofundador e um dos responsáveis.
Apesar de trabalhar para formações mais alargadas, vem de trás uma preferência por formatos de dimensão reduzida, pela intimidade e múltiplas possibilidades que proporcionam. Mas só agora o músico conimbricense se submete à prova de fogo de um primeiro registo a solo, que intitulou “À Deriva”. Gravado na magnética cidade do Mondego e no Porto, era uma vontade antiga, que se concretizou de forma «algo fortuita», confessa Luís Figueiredo à jazz.pt. «Este formato a solo é cómodo no sentido em que não se depende de ninguém, mas parece-me simultaneamente o mais exigente de todos», acrescenta. Por alguma razão, o disco chegou a ter como título de trabalho “Lost at Sea”.
O músico leva mais além a sua atração longeva pelo risco e pelas práticas da improvisação livre, processos criativos que bem conhece e que sempre utilizou, mas que aqui explora sem limitações, buscando a mais secreta simbiose entre homem e piano. «Sempre encarei a improvisação livre como uma forma de fazer música que é tão impreparada quanto possível. Digo isto porque me parece que partimos sempre com alguma bagagem para qualquer performance, por muito que o tentemos evitar, e sem limites de qualquer ordem, nomeadamente vocabulário, estilo, textura, etc. Não subscrevo de todo a ideia algo disseminada de que a improvisação livre tem de soar “aleatória” ou “dissonante”.» «Parece-me que deve soar o mais possível como o que ouvimos na nossa cabeça enquanto a praticamos», sublinha.
No arsenal estético do pianista coexistem elementos de fonte diversa: do jazz, acima de tudo, mas também da vertente clássica e de uma certa “portugalidade” – ainda que subliminar – que se insinua em especial na coluna vertebral do disco, as três partes de “Memória”, espécie de suíte agregadora de reminiscências de tudo o que experienciou. Despojado de outras contribuições, o pianista surge entregue a si mesmo e à interação em tempo real com o instrumento que tem diante de si.
O lado de artesão da melodia, tão marcante na abordagem que lhe conhecemos, surge evidente logo às primeiras notas de “Memória I”, na sua tranquilidade poética. “Remoinho” assenta num motivo a que volta recorrentemente, feito de notas graves, dramáticas, que deixam os sentidos alerta. O pendor lírico é retomado em “Memória II”, com fio melódico jamais óbvio, gorando quaisquer expetativas de antecipação do rumo apontado nas sinapses do músico no momento da criação.
“Hiver” é uma peça de melodia etérea, momento extraordinário de sensibilidade devedora de uma certa escola francesa de composição (certas construções de Debussy vêm à memória). O contraste surge logo a seguir com a pulsação nervosa de “Angst”, eco de inquietações interiores. “Memória III” é o epílogo perfeito para a jornada, na sua serenidade luminosa, antídoto desejado para o negrume claustrofóbico em que mergulhámos.
“À Deriva” será o testemunho mais eloquente e arrojado da maturidade de Luís Figueiredo, uma prova cabal, se necessária fosse, da sua inescapável relevância no jazz nacional do nosso tempo.
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À Deriva (Roda Music)
Luís Figueiredo
Luís Figueiredo (piano)