João Martins Quarteto: “Hundred Milliseconds” (Carimbo Porta-Jazz)
A música tem destas coisas. Num álbum com temas compostos por um baterista (que ora em vez também utiliza sintetizadores), João Martins, encontramos o que de melhor há por estes dias com uma dupla de saxofones, o alto e o tenor de Fábio Almeida e o soprano e tenor de Gabriel Neves, ambos ouvidos antes por mim ao lado de Hugo Carvalhais. Em “100 ms”, a segunda faixa de “Hundred Milliseconds”, o que fazem deixa-nos de bicos dos pés: uníssonos que se convertem em contrapontos, para logo depois parecerem em viva disputa num duplo solo cruzado, fazendo de seguida o caminho inverso. O tema cavalga por um plano de convergências desobrigadas e divergências cúmplices que nos surpreendem minuto a minuto e nos enchem as medidas. Mas se o mérito interpretativo é todo deles, tornando evidente a sua superior qualidade como músicos, o autoral cabe a Martins, que neste disco revela um conceito de escrita importante de reter no presente quadro do jazz português, complexo sem ser ornamental e cativante sem roubar o protagonismo ao que realmente interessa neste contexto, a improvisação.
Mais adiante no CD, “Amygdala” é outro pico de audição, e tanto no que respeita ao que vem na partitura como na sua tradução prática. Aqui, brilham a bateria do líder da sessão e a guitarra de Nuno Trocado (não há baixo ou contrabaixo), com interjeições saxofonísticas que reorganizam os deslaçamentos que o tema vai tendo quando só a bateria e a guitarra ocupam o espaço e definem o tempo, debatendo entre si o primeiro plano. A ideia seguida é dar valor às «primeiras impressões» e ao modo como estas influenciam a percepção com que ficamos das coisas, o que pode passar por uma descrição do que se passa no jazz quando acontece todos nos esquecermos disso. Não sabemos até que ponto o conceito influenciou o próprio acto de composição, mas o certo é que, logo depois de “Amygdala”, o “mix” de percussão e electrónica de “Ilusão” nos transporta directamente para os domínios da música contemporânea e da música experimental. Em contraste, “As Partes de Um Todo” não podia ser mais “jazzy”, aquele que swinga e faz bater o pé. O universo de João Martins é bem elástico, deixando-nos a poética esperança das linhas melódicas de “Acredita” com vontade de ouvir mais.