Thumbscrew: “The Anthony Braxton Project” (Cuneiform)
Cuneiform
O trio Thumbscrew agrega exaltadas figuras do jazz hodierno: o contrabaixista Michael Formanek, a guitarrista Mary Halvorson e o baterista (e também vibrafonista) Tomas Fujiwara. Os três músicos têm desenvolvido em conjunto uma abordagem particularmente interessante – quer no plano composicional (para o qual todos contribuem), quer da interação ao nível das improvisações, onde nenhum dos papéis instrumentais sobressai ou se subjuga face aos demais, num jogo democrático com reflexos concretos naquilo que nos é dado a escutar. Do pecúlio discográfico do trio fazem parte o álbum homónimo de 2014, “Convallaria” (2016), e o ótimo díptico “Ours” / “Theirs” (2018), todos na Cuneiform. A qualidade do material que neles têm apresentado deixa sempre água na boca em relação ao que farão a seguir.
Convidados a explorar os arquivos da Fundação Tri-Centric – organização sem fins lucrativos destinada a organizar e celebrar o trabalho de Anthony Braxton (n. 1945) –, Formanek, Halvorson e Fujiwara passaram uma longa tarde a estudar, sobretudo, as peças menos tocadas do compositor que melhor se enquadrassem na sua paleta sonora. «A ideia era escolhermos composições de Anthony, principalmente das primeiras, que não haviam sido gravadas anteriormente (ou, em alguns casos, gravadas apenas uma ou duas vezes)», salienta Halvorson em notas de apresentação. «Escolhemos peças que captaram a nossa imaginação e que pensámos que funcionariam bem para a instrumentação de guitarra, contrabaixo e bateria ou vibrafone. As nossas escolhas incluíram pautas gráficas, complexas peças escritas e tudo pelo meio.»
Os três já tocaram e gravaram abundantemente com Braxton, em diferentes momentos e contextos. Não espanta, pois, que tenham decidido homenagear o Mestre na altura em que se celebra o seu 75.º aniversário. Ao longo de seis décadas, o veterano compositor, multi-instrumentista, diretor de orquestra, pedagogo e pensador ergueu um universo sonoro polifacetado, que vai do solo à grande formação, do rigorosamente escrito ao totalmente livre, do jazz à ópera, do passado ao futuro.
Tal como aconteceu em álbuns anteriores, o trio recolheu-se no City of Asylum, em Pittsburgh, durante cerca de um mês, para preparar a gravação, desenvolvendo arranjos invariavelmente meticulosos. «Temos uma linguagem partilhada em termos da forma como improvisamos, mas a composição orienta e enforma as nossas improvisações. Portanto, a música de um outro compositor coloca-nos num estado de espírito diferente e adiciona outra camada ao que fazemos como trio», sublinha Fujiwara. Encontramos aqui as características que reconhecemos como basilares da música de Braxton, sobretudo aquela intrincada tapeçaria rítmica, as harmonias complexas e as ligações, mais ou menos subliminares, a diferentes épocas da história do jazz e das músicas contemporâneas de vanguarda.
“The Anthony Braxton Project” abre em alta rotação com a “Composition No. 52”, graças à propulsão cortesia de Formanek, que vai mudando constantemente de forma (sempre dentro de um perímetro “jazzístico”), com as diferentes intervenções improvisadas a desembocarem numa breve reexposição do tema. Mais angulosa, a “Composition No. 157” é uma vinheta onde duas linhas interagem contrapontisticamente.
“Composition No. 14” apresenta-se dividida em três solos separados – desenvolvidos por cada um dos instrumentistas, sempre ao primeiro “take” –, a partir de uma pauta com a célebre notação gráfica de Braxton. A contribuição de Halvorson remete para uns blues longínquos, Fujiwara constrói formas como se de uma orquestra inteira se tratasse, e Formanek oferece-nos um monumento de sobriedade. A atmosfera hiperdelicada da “Composition No. 68” é pontuada pelo vibrafone de Fujiwara.
Mais nervosa e agitada é a “Composition No. 274”, com os três instrumentos em permanentes ziguezagues (apesar de completamente escrita, esta peça exige permanente interpretação dos músicos). A intensidade de “Composition No. 61”, inicialmente escrita para um duo saxofone / contrabaixo, é um deleite (porventura a peça que mais diretamente associamos à obra do compositor). Após dois minutos de um íntimo diálogo entre guitarra e vibrafone, o contrabaixo de Formanek carreia a “Composition No 35” para outras paragens.
“Composition No. 79” foi inspirada nas “territory bands” do sudoeste dos Estados Unidos da década de 30 do século passado e mostra um Formanek a assumir-se como trave mestra, em torno da qual guitarra e vibrafone tecem belos uníssonos. Este não é (nem poderia ser) um álbum de “versões”. É, sim, um excelso exemplo de internalização criativa de obra alheia, de leitura consequente dos elementos centrais da obra de um compositor único. Música cerebral e altamente recompensadora.
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The Anthony Braxton Project (Cuneiform)
Thumbscrew
Mary Halvorson (guitarra elétrica); Michael Formanek (contrabaixo); Tomas Fujiwara (bateria, vibrafone)