Tyler Higgins: “Broken Blues” (Shhpuma)
«Silêncio é o instante em que nos apercebemos que escutamos algo», escreveu Vítor Rua. E este disco é sobre silêncios. Só que é preciso fazer um pequeno recuo no tempo para que esta belíssima definição faça sentido e possamos compreender melhor este disco de blues silenciosos. Foi John Cage quem trabalhou sobre a impossibilidade do silêncio e este conceito – porque de um conceito se trata - desempenhou um papel importante em várias das suas obras antes de “4′33” (1952): “Duet for Two Flutes” (1934), “Sonatas and Interludes” (1946–48), “Music of Changes” (1951), ”Concerto for Prepared Piano and Orchestra” (1951) são alguns exemplos. Para chegarmos a este CD temos ainda de falar de dois outros músicos. O primeiro, Morton Feldman, trabalhou sobre a extensão e o valor do silêncio entre cada duas notas. Como me explicou uma vez um dos seus melhores intérpretes, John Tilbury: «It’s not only about the note, but about the space between each note». Como se cada nota fosse completa, não precisando da seguinte. Ouvimos “For Bunita Marcus” para piano solo e ao longo dos seus 80 minutos somos quase hipnotizados por uma música imóvel que se move. O terceiro e último músico que nos transporta até ao presente disco é Loren Mazzacane Connors. O guitarrista americano usa os blues, mas aplica-lhes os princípios de Feldman, em que cada nota da guitarra eléctrica é um mundo próprio e a sua pertença a uma sequência é apenas uma possibilidade e não uma necessidade. Mazzacane é um dos guitarristas mais originais nos blues e – como Fahey ou Basho – transportou-os para a música experimental e para um universo de abstracção.
Preambulados, estamos agora em condições para apresentar “Broken Blues”,o novo disco editado pela Shhpuma, o segundo do guitarrista americano na editora de Lisboa. Higgins apanha o comboio deixado em movimento por Mazzacane Connors e inventa uns blues estranhos em que o baixo e a bateria parecem frequentemente tocar noutra banda e onde, por cima, o seu solo de guitarra lento aprecia o passeio com o detalhe de quem anda. As canções de Higgins não se impõem, antes oferecendo resistência à necessidade que o nosso cérebro tem de prever o que se vai seguir. Seguem ponderadas, nota a nota, num som de guitarra saturado e longo. Mesmo quando Tyler pega em temas populares e gospels (ex: “The Truth is Marching On”), toca-os tão lentamente que perdem o referencial. O piano ou o órgão, a bateria e o contrabaixo adicionam uma camada musical que Connors nunca teve e que torna este disco de Higgins muito especial, mantendo-nos dentro da música do trio. Ideal para viajar num dia de calor, pelas estradas nacionais, de vidros abertos.