Indra Trio: “Indra” (Ed. de Autor)
Edição de autor
No Hinduísmo, Indra é o deus do céu e rei dos Deva (deuses da natureza), associado ao clima e aos cursos de água. No Rigveda – a primeira e mais importante das quatro obras que formam a base do extenso sistema de escrituras sagradas desta religião –, Indra é celebrado pelos seus poderes e rival do dragão que personifica a seca, Vritra, que roubou «as águas da terra e as escondeu no submundo». Indra destrói Vritra, o que permite que a chuva regresse e com ela a prosperidade.
Assumindo o fascínio por esta cultura, e afastadas as ligações ao plano religioso, Indra é também o nome do trio que junta o pianista Luís Barrigas, o contrabaixista João Custódio e o baterista Jorge Moniz, nomes com créditos mais do que firmados no panorama nacional, em contextos estéticos diversos. Apesar de já tocarem juntos há algum tempo, em finais de 2018 o trabalho conjunto intensificou-se em sessões regulares durante as quais germinou a ideia de fazerem música original.
O trio não opera qualquer disrupção nas premissas do formato “clássico” piano-contrabaixo-bateria, nem será, decerto, sua pretensão fazê-lo, mas, à escala, mostra como (ainda) se trata de uma configuração instrumental com muita margem para exploração. O grupo trabalha em domínios afins desse útil sótão que é a consolidada, mas sempre desafiável, tradição do jazz. «A música feita por este trio tem a pretensão de procurar uma relação mais profunda entre cada um dos seus elementos, através da música e para além da música», diz-nos Luís Barrigas.
O pianista é a principal força compositora do grupo, assinando oito das nove peças incluídas no disco. Mas, do que se escuta, ressalta claro que, apesar desse facto e da primazia sonora natural das 88 teclas, há uma gestão democrática da formação, com os três músicos a interagirem de modo equitativo e sem imposições ou protagonismos. «Temos uma relação muito forte e fluida, tanto a nível pessoal como musical, e todos temos uma voz dentro deste grupo», acrescenta o pianista. A escrita revela-se elegante e melodicamente apurada, escapando com inteligência e bom gosto a lugares-comuns e aos bem conhecidos alçapões do formato, deixando transparecer o lado mais criativo da cumplicidade.
O disco abre com “Quando a Luz faz Descobrir o Azul do Céu”, que funciona como um esclarecedor introito para o que se vai seguir: as notas cristalinas do piano de Barrigas em estreita articulação com o som aveludado de Custódio e as baquetas delicadas de Moniz. “Horizonte” assenta num “ostinato” e numa melodia simples que se vai desenvolvendo com o vagar inspirado pelos grandes espaços, judiciosamente interpelados pelo contrabaixo e pelas escovas utilizadas de forma exemplar por Moniz.
Acordes graves introduzem o tema-título, tempo médio que exibe à saciedade a fluidez de processos do trio. A calmaria regressa em “A Céu Aberto”, peça aberta apesar da macroestrutura fixa. “Congo Square” (nome da histórica praça de Nova Orleães onde desde meados do século XVIII os escravos se juntavam aos domingos para celebrar as suas tradições, sendo ainda hoje um local de forte simbolismo) não tem nada de ritmicamente vibrante, mas sim uma admirável arquitetura que permite ao pianista, a partir de um motivo inicial (retomado no final), empreender uma das suas melhores prestações.
“Cosmos”, belíssimo exercício de luz e treva com a sua linha melódica atonal, tem piano esparso, contrabaixo assertivo e percussão de filigrana. “Dia de Chuva” exibe um interessante balanço rítmico, quase uma dança a clamar por ela, e “Constelações” funda-se numa figura-base desenhada pela mão esquerda, que se vai complexificando e em torno da qual os três músicos orientam as suas deambulações. A fechar, “Luz”, a única peça assinada por Jorge Moniz, constitui-se como epílogo ideal – quer do ponto de vista musical, quer numa perspetiva conceptual –, na sua solenidade etérea, para um disco maduro e que cumpre os seus propósitos com distinção.
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Indra (Edição de autor)
Indra Trio
Luís Barrigas (piano); João Custódio (contrabaixo); Jorge Moniz (bateria)