João Frade: “João Frade” (Kimahera)
Kimahera
No seu mais recente e magnífico livro, “Peregrinação” (tradução portuguesa editada pela Sextante, 2019) o escritor francês Olivier Rolin, num dédalo de recapitulações de episódios da sua vida, dá-nos nota da existência, em tempos, no milenar porto do Pireu, de uma agência que anunciava que vendia «eisiteria se olo ton kosmo», bilhetes para todo o mundo.
O acordeonista e compositor João Frade (n. 1983) é, na mesma lógica da empresa ateniense, um cosmopolita e a sua música espelha-o na plenitude. Algarvio de nascimento, cedo impressionou com os seus talentos e os galardões não tardaram a encher as estantes lá de casa. Ainda adolescente, iniciou um processo de escuta ativa e de processamento dos sons de diferentes geografias que lhe iam chegando e a arquitetar uma abordagem muito particular à música, em geral, e ao seu instrumento, em particular.
Nessa abordagem, o jazz parece adquirir um papel de elemento aglutinador de referências e de centro de gravidade de um turbilhão criativo que possibilitou ao acordeonista desenvolver inúmeras colaborações, nacionais e internacionais. Da longa lista de nomes com quem já trabalhou, em diferentes contextos, fazem parte Airto Moreira, Antonio Mesa, Flora Purim, Cícero Lee, Edu Miranda, Paulinho Lemos, Tuniko Goulart e Stanley Jordan, entre muitos outros.
O seu mais recente registo em nome próprio chegou-nos neste 2019, ano em que também já nos ofereceu o recomendável “Morphosis”, em dueto com o trompetista (também algarvio) Hugo Alves. O disco, gravado em Tarragona e com chancela da Kimahera, surge na sequência de um período durante o qual o músico viveu em Madrid, tendo contactado de forma mais próxima com o jazz e as músicas do universo latino, que se estende ao Brasil e à Argentina, sem abdicar das origens ibéricas e mediterrânicas.
Para além do acordeonista, o trio base é constituído pelo multi-instrumentista e compositor brasileiro Munir Hossn (que assegura o baixo, a guitarra e o cavaquinho de Cabo Verde) e o baterista cubano Michael Olivera. A este núcleo juntou-se um conjunto de músicos convidados cuja participação é decisiva para o resultado global.
O conjunto de nove peças aqui incluídas esteve em aberto até à entrada em estúdio, onde gravaram “ao vivo”, para assim melhor captar a frescura e a urgência de todo o processo. Diz-nos João Frade que este disco representa um pouco de todo o seu percurso nos últimos anos, «deambulando por várias correntes estéticas». A adaptação e a mistura dos vários géneros e influências é gerida com parcimónia e bom-gosto, avultando a capacidade para criar um todo coerente e estimulantemente diverso.
“Bihaya” é ensejo para os músicos dizerem sem rodeios ao que vêm. Segue-se um dos momentos mais interessantes da jornada, o balanço divertido de “Casei com uma Velha”, original de Maximiano de Sousa (o popular Max), que conta com as participações de Ricardo Toscano no saxofone alto (exímio a desenhar a melodia base a par com o acordeonista e mais ainda a desafiá-la) e do percussionista brasileiro Adriano DD.
O dinamismo de “Benji” e a energia radiante de “Pandora”, esta última com o trompete assertivo do sérvio Miron Rafajlovic, conservam altos os níveis de intensidade, refreados pela melodia esdrúxula de “Teclas de Mon Frère”. Em “Enrolão”, entra em cena o piano de Leo Genovese. “Quilha” (atente-se no solo de Hossn) e “Mestiço” são outras peças em que as cartas sonoras são baralhadas e de novo distribuídas. A fechar, uma leitura tranquila da perene “Cielito Lindo”, canção escrita em 1882 pelo compositor mexicano Quirino Mendonza y Cortés, que, preservando a essência melódica, insufla-a de novos ares.
Este é um disco de horizontes largos e que confirma, se necessário fosse, a importância de acompanhar atentamente o percurso do acordeonista. Não é possível antecipar quais serão os seus próximos destinos e isso só pode ser bom.
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João Frade (Kimahera)
João Frade
João Frade (acordeão); Munir Hossn (baixo, guitarra e cavaquinho de Cabo Verde); Michael Olivera (bateria) + Ricardo Toscano (saxofone alto); Adriano DD (percussão); Miron Rafajlovic (trompete); Leo Genovese (piano)