Marc Ducret: “Lady M” (Ayler Records)
Ayler Records
Ao longo dos últimos quatro séculos, diversos compositores mergulharam na complexidade da obra de William Shakespeare, intemporal tratado acerca da natureza das mais insondáveis emoções humanas. Wagner, Verdi, Mendelssohn, Berlioz, Strauss, Gounod, Bellini e Bernstein foram apenas alguns dos que abordaram esse inesgotável manancial, permitindo interpretar a obra do bardo de Stratford-upon-Avon segundo diferentes perspetivas.
“Macbeth”, a mais concisa das tragédias shakesperianas – acredita-se que escrita entre 1603 e 1607 –, desenrola-se numa atmosfera medieval dominada pela bruxaria, pela loucura, a ambição, a traição e a morte. A peça foi por alguns considerada “amaldiçoada”, de tal modo que é referida laconicamente como “a peça escocesa”. Num cenário de guerra pelo poder, Lady Macbeth (abreviada e misteriosamente, Lady M) é a gananciosa mulher do protagonista, o nobre escocês Macbeth. Depois de o convencer a assassinar o rei Duncan, ambos tomam o poder na Escócia, mas ela termina os seus dias carregando o insuportável peso da culpa, tendo Shakespeare deixado a sua morte envolta em ambiguidade (ter-se-á suicidado). Quando Macbeth é informado de que a sua mulher está morta, não são dados detalhes e ele também não os pede, dizendo ao súbdito que ela morreria de qualquer forma…
Na capa do novo ópus de Marc Ducret (n. 1957), as mãos ensanguentadas de Lady M revelam que a perturbante personagem espoletou a mais recente criação do guitarrista e compositor francês, que continua a encontrar no universo literário a fonte para as suas indagações sónicas. Depois de Vladimir Nabokov e do seu “Ada ou Ardor” no projeto Tower (em quatro tomos), recua no tempo e abalança-se na espinhosa tarefa de criar música inspirada em Lady M. O disco tem chancela da Ayler Records, que, infelizmente, parece dar sinais de estar a preparar-se para fechar portas, após 20 anos de relevante atividade editorial.
«O que para mim é apaixonante passar para música é que Lady M não faz nada. Não é criminosa. Depois da tragédia, ela carrega todo o horror na sua figura. Tudo acontece na cabeça dela e ela morre», disse Ducret em entrevista à rádio francesa FIP, ocasião em que referiu também que as suas referências musicais em Macbeth são a banda sonora da Third Ear Band para o filme de Roman Polansky (1971) e a ópera de Giuseppe Verdi.
Ducret é um dos grandes nomes europeus da guitarra na música improvisada, apesar de não lhe interessar tanto assim enquanto instrumento. Mas é a partir dela que dirige um considerável aparato que inclui dois cantores líricos – a soprano francesa Léa Trommenschlager e o contratenor brasileiro Rodrigo Ferreira, ambos presenças habituais nos palcos de ópera –, sopros (saxofones, trompete, trombone, clarinetes), cordas (violino e violoncelo, com a curiosidade de este último ser tocado por Bruno Ducret, filho de Marc, e contrabaixo, por vezes baixo elétrico) e bateria.
Para abordar o drama, Ducret criou em 2017 esta ópera de câmara em três secções, fazendo um uso equilibrado do xadrez instrumental à disposição. Sendo veiculadora de múltiplas atmosferas, predominam as dramáticas, densas, escuras. A sua escrita incorpora amiúde elementos do rock menos convencional (Zappa vem logo à mente), que contrastam com passagens mais devedoras do rigor orquestral de Carla Bley ou Michael Mantler. Quando, há coisa de cinco anos, lhe disse que entendia a sua música como estando a meio caminho entre a complexidade de Boulez e o fogo de Hendrix, ele retorquiu, desarmante: «E que tal entre a complexidade de Hendrix e o fogo de Boulez?»
As três secções são baseadas no mesmo texto: o monólogo de Lady Macbeth no Ato V da peça. Na primeira, entregue ao contratenor, instala-se imediatamente uma poética da noite: sonâmbula, Lady M, subjugada pela culpa, denuncia os seus próprios crimes e implora que o sono chegue. Mas Macbeth “matou o sono” e a noite tornou-se um inferno de remorsos. Lady M lava constantemente as mãos, imaginando que não se pode ver livre de uma “maldita mancha”, símbolo da culpa.
A segunda, confiada à soprano, repete o mesmo texto, mas ilumina-o de maneira diferente, acentuando o horror e os sentimentos de culpa e prolongando a angústia e a assunção da irreparabilidade. «Here's the smell of the blood still: all the perfumes of Arabia will not sweeten this little hand.» Finalmente, na terceira e derradeira secção, é retomada a culpa que continua a atormentar a mente de Lady M, desta vez cantada a duas vozes. A repetição como quintessência de um remorso sem fim. «Come, come, come, come, give me your hand. What's done cannot be undone.»
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Lady M (Ayler Records)
Marc Ducret
Marc Ducret (guitarras, composição); Léa Trommenschlager (soprano); Rodrigo Ferreira (contratenor); Sylvain Bardiau (trompete, corneta); Catherine Delaunay (clarinete, cor-de-basset); Régis Huby (violino, violino tenor); Liudas Mockunas (saxofones, clarinete contrabaixo); Samuel Blaser (trombone); Bruno Ducret (violoncelo); Joachim Florent (contrabaixo, baixo elétrico); Sylvain Darrifourcq (bateria, percussão)