Bobby Sanabria Multiverse Big Band: “West Side Story Reimagined” (Jazzheads)
Jazzheads
A arte, nas suas múltiplas vertentes, é feita de reciclagens, adaptações e reinvenções de material pré-existente. Com diferentes doses de continuidade e de disrupção, o artista empreende viagens criativas através do território das referências acumuladas, incorporando-as, direta ou indiretamente, no seu trabalho, tornando-as assim também suas, até ao limite da subversão ou da própria negação.
Inspirado em diferentes fontes (textos antigos, farsas medievais, temas religiosos), o poeta e bispo italiano Matteo Bandello escreveu um conjunto de novelas que ganharam fama. Uma delas foi traduzida para o inglês por Arthur Brooke, que, não perdendo de vista a versão francesa de Pierre Boaistuau, a converteu num poema narrativo intitulado “A Trágica História de Romeu e Julieta”, publicado em 1562. Três décadas mais tarde, William Shakespeare baseou-se naquele poema (por vezes literalmente) para criar “Romeu e Julieta”. Os desafios emocionais experimentados pelo par romântico cujo amor é posto à prova por forças hostis que lhe são externas são, como se atesta, tema recorrente na literatura ocidental. Faz sentido parafrasear a máxima de Lavoisier: na literatura nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.
É também este o contexto geral para o musical “West Side Story”, baseado na obra de Shakespeare e estreado na Broadway em 1957, com libreto de Arthur Laurents, música de Leonard Bernstein e letras de Stephen Sondheim. A obra – no seu todo ou segmentos – tem sido, ao longo dos anos, pasto para inúmeras e díspares recriações (no jazz, Stan Kenton, Cal Tjader, Dave Brubeck, Sarah Vaughan, Buddy Rich e Oscar Peterson são apenas alguns exemplos), com resultados desiguais. Em 2016, foi a vez de Bobby Sanabria – baterista, compositor, arranjador e educador norte-americano de ascendência porto-riquenha –, com vasto percurso no domínio da miscigenação do jazz com as músicas latino-americanas, decidir revisitá-la sob tal perspetiva. Em “West Side Story Reimagined” faz-se acompanhar da Multiverse Big Band, coletivo de 21 músicos que se entrega, com vigor e exuberância, à tarefa de conduzir a partitura de Bernstein por caminhos que nem o próprio – pese embora a sua vasta cultura musical – se atreveu trilhar.
Aqui, Capuletos e Montéquios são substituídos por gangues rivais que operam no Upper West Side nova-iorquino: os ítalo-americanos Jets e os porto-riquenhos Sharks. Tony, antigo membro dos Jets e melhor amigo do seu líder, apaixona-se por Maria, irmã do chefe dos Sharks, Bernardo. Em “Jet Song”, Jets e Sharks são colocados em confronto (musical), sendo os primeiros representados por um bebop rápido e sinuoso (trompetes, trombones e saxofones são os seus membros) e os segundos pelas suas origens porto-riquenhas e os ritmos bomba e plena. Num excelente arranjo de Jeff Lederer, que utiliza o joropo, ritmo venezuelano, “America”, canção que o PEUA certamente ignora ou menospreza, é uma ode aos imigrantes (em rigor, no caso dos porto-riquenhos, migrantes, dado serem cidadãos dos EUA desde 1917), aos seus sonhos e expetativas, coartados pelo preconceito, a discriminação e a falta de oportunidades. «Life is all right in America/If you're all white in America.»
“Gee, Officer Krupke” (arranjo de Jeremy Fletcher) é um caleidoscópio sonoro que simboliza a mistura étnica e cultural que fez (e faz) Nova Iorque. Cabem a valsa europeia, o bolero cubano, ecos do jazz primitivo de Nova Orleães, o merengue dominicano, o compas haitiano. E mais. A melodia de “Maria” é transformada ao estilo bembe, ritmo cerimonial yoruba de adoração aos orixás, que utiliza o tambor batá, com origem no território da atual Nigéria e levado para Cuba no século XIX durante o período colonial. Um crescendo rítmico evoca a energia sexual libertada por Maria e Tony. Antecedendo o epílogo, Sanabria dispara uma forte mensagem política de repúdio à cultura do ódio e da violência em expansão no seu país e no mundo. O sonho amoroso culmina num pesadelo em que Maria vê Tony moribundo, depois de baleado. O saxofone alto (que representa Maria) e o trombone (Tony) dialogam, mas este não completa a melodia, e Maria fica sozinha. Os sopros improvisam em simultâneo, com as dissonâncias a traduzirem a dor e a desilusão.
Gravada ao vivo no Dizzy's Club Coca-Cola, em Nova Iorque, esta edição celebra o centenário de Bernstein (2018) e o 60.º aniversário da estreia da peça. Os fundos provenientes da venda do disco estão a ser encaminhados para ajudar as populações (em especial os músicos) afetadas pelas passagens pela ilha de Porto Rico, em 2017, dos furacões Irma e Maria (trágica coincidência). Quando tudo já parecia ter sido tocado, dito e escrito acerca de “West Side Story”, eis que Bobby Sanabria acrescenta algo novo, o que é assinalável.
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West Side Story Reimagined (Jazzheads)
Bobby Sanabria Multiverse Big Band
Bobby Sanabria (direção, bateria, guizos, apito de polícia, apito de samba, voz); Kevin Bryan Shareef Clayton, Max Darche, Andrew Neesley (trompetes); David Miller, Tim Sessions, Armando Vergara (trombones); Chris Washburne (trombone baixo); David Dejesus (saxofones alto e soprano, flauta); Andrew Gould (saxofone alto, flauta); Peter Brainin (saxofone tenor, flauta); Yaacov Mayman (saxofone tenor, flauta, clarinete); Danny Rivera (saxofone barítono); Gabrielle Garo (flauta, piccolo); Ben Sutin (violino elétrico); Darwin Noguera (piano); Leo Traversa (baixo elétrico); Oreste Abrantes (percussão, voz); Matthew Gonzalez (percussão); Takao Heisho (percussão).