Sílvia Ribeiro Ferreira: “Luziades” (Laborie Jazz)
Laborie Jazz
O disco é português, mas chega de França. Já lá vai o tempo em que o que chegava de França era bom: no jazz actual os franceses são hoje uma pálida sombra do passado, reproduzindo vezes sem conta a mesma linguagem inventada por Django Reinhardt ou copiando as fórmulas americanas para pretenso consumo nacionalista. Não é o caso de “Luziades”, de Sílvia Ribeiro Ferreira, uma boa surpresa semi-francófona que anda à procura de coisa novas.
A saxofonista tem dupla nacionalidade e isso nota-se, pois nada soa a “nuages” ou a “reciclages”. O título sugere logo uma forte referenciação no tutano da portugalidade. A capa prolonga esse discurso: Sílvia aparece fotografada de olhos fechados com uma pose de quem olha para o horizonte do mar sem saber se o seu amado voltará vivo. Tem um lenço minhoto à cintura e encosta-se a um painel de azulejos, avermelhado para fazer sobressair a figura feminina.
O disco tem dois lados, apesar de estarem ambos no mesmo plano do CD. A primeira parte toca temas melodiosos, muito perto da música pop. Canções acessíveis e uma grande carga electrónica, dada por um quarteto com Sébastian Barrier a sobressair nos teclados e nos efeitos especiais. Aparece por vezes um acordeão, instrumento que se infiltrou na nossa música popular para não mais sair e que associamos à ideia de festa na aldeia. Esclarecendo: apesar da clara procura por temas melódicos, esta não é música para os carros da Uber, daquela que junta o inútil ao desagradável. Os temas são fáceis dentro de uma música que procura um sentido e um olhar novo.
Sílvia Ribeiro Ferreira tem um som impecável. Seguro, forte; ouven-se as chaves e o sobro dos saxofones numa forma de tocar que não usa frases fáceis ou um fraseado meloso para nos seduzir. Esta é uma beleza seca e contemplativa. O quinto tema, que dá nome a esta edição, é um solo: aqui a coisa muda de figura e por esta gravação vale a pena todo o disco. É um solo encantador, forte, em que o barítono soa amável. O som, o alcance, a profundidade do barítono de Sílvia evocam Gerry Mulligan, tão poderoso, doce e melancólico é ao mesmo tempo. Ouvimos um fraseio que reconhecemos como nosso, mas que tem uma gingar arabeta. Oscilamos entre o Médio Oriente e Alfama ao seguir o instrumento inventado por um franco-belga. Não é a mimetização da voz de um fadista, não é uma transposição do fado para o saxofone. É um fraseado próprio onde tudo isto vive e se encaixa como peças do Ikea.
Na faixa seguinte, “Amália”, ouvimos uma gravação de 1965 da fadista. Aparece a falar. Está num julgamento. O som foi retirado de um programa de televisão, o "Tribunal da Opinião Pública", interrogada por cantar Luís de Camões no estrangeiro. Alega o tribunal que este afastamento de Alfama afrouxa a fibra fadista, distorce o “fado autêntico”. Amália desmonta esta acusação e a saxofonista avisa-nos igualmente que estas simplificações são enganosas. Surge de novo o acordeão, um coro masculino e uma guitarra com distorção. Estamos no limite do “kitsch”. Por cima, o saxofone toca um lamento. Há uma certa coragem kamikaze nestes arranjos. Na entrevista / julgamento, Amália conta parte da sua história de vida como artista – o objetivo foi o de compor uma melodia para acompanhar esta entrevista, aproveitando a musicalidade que, mesmo em prosa, a voz da fadista tem.
Segue-se uma versão de “Canção do Mar”, o tema de Ferrer Trindade que se tornou icónico na voz de Amália Rodrigues e que, talvez por isso, tenha sido pouco reinterpretado: Anamar, Dulce Pontes, Rão Kyao, Zeca Afonso e poucos mais o fizeram. Aqui temos uma excelente versão que se separa muito do original e em que a electrónica e a percussão são usadas com bom gosto. “Luziades” é a desnacionalização da nossa música nacional feita por alguém que, estando fora, está perto e consegue olhar para o fado e para a música portuguesa com coragem e vontade de descobrir coisas novas. Este disco precisava de um produtor muito especial para ter ficado extraordinário – nos arranjos há electrónica a mais, por vezes na fronteira do foleiro (um limite que os franceses dominam tão bem, vénia a Philip Catherine). No sopro há uma tristeza e um “zest” magrebino que nos soa bem. O álbum ouve-se com prazer adicional nesta quadra de Natal, na qual o reencontro com as coisas que mudam faz mais sentido.
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Luziades (Laborie Jazz)
Sílvia Ribeiro Ferreira
Sílvia Ribeiro Ferreira (saxofones barítono e tenor); Sebastien Baurrier (teclados, electrónica); Clément Denis (baixo eléctrico); Xavier Parlant (bateria)