Marco Scarassatti: “Hackearragacocho” (QTV)
A viola de cocho é hoje encarada nos próprios meios urbanos do Brasil e no resto do mundo (incluindo Portugal) como um instrumento exótico, mas as suas origens são portuguesas. O motivo da estranheza está na sonoridade e no aspecto físico deste cordofone de cinco cordas, pelo facto de ser construído artesanalmente a partir de madeiras macias que só é possível encontrar no Brasil, sendo as preferidas pela tradição as da ximbuva e da sarã-de-leite, fáceis de escavar e esculpir. A forma da viola é dada pela própria madeira, surgindo logo no primeiro corte. Usa-se na região centro-oeste do país, desempenhando um papel importante na cultura pantaneira (Matogrosso, sobretudo a Sul), e designadamente em músicas de dança como o cururu e o siriri. Diz-se “de cocho” porque lembra um cocho, ou seja, um comedouro para animais também lavrado em troncos de árvore.
Em “Hackearragacocho”, o músico experimental e improvisador Marco Scarassatti tem a viola de cocho quase como a única ferramenta de produção sonora que não foi inventada e construída por ele, mas como seria de esperar não o faz como manda a regra. Ainda assim, enraíza as suas referências na tradição popular, por exemplo aplicando um processo de “rasqueamento” (em alusão aos movimentos usados quando se escova um cavalo) com a mão direita, que é particularmente intenso e por vezes nos remete mesmo para o rock ou para os blues: recorre a diferentes afinações e a um novo léxico quando utiliza a versão original do instrumento e tem um outro modificado, com cordas simpáticas adicionais que lhe prolongam as possibilidades técnicas e de vocabulário e com cavalete e espelho, de modo a poder tocá-lo com arco. A isto acrescenta diversos tipos de microfonia, seja com “piezzos”, “condensers” de contacto ou microfones internos de gravadores digitais, a fim de obter uma macroscopização das particularidades acústicas existentes. Quem aprecia as explorações guitarrísticas alternativas de figuras como Derek Bailey, John Russell, Fred Frith, Elliott Sharp, Olaf Rupp e quejandos encontra aqui muito com que se surpreender. Não estranha que, na lista de agradecimentos do álbum, conste o nome de António “Panda” Gianfratti – o veterano percussionista de S. Paulo é uma inspiração para quantos acreditam na prática de uma “tradição improvisada”, a exemplo daquela que desenvolve com Nelson da Rabeca…