Joelle Léandre: “A Woman’s Work” (NotTwo Records)

Joelle Léandre: “A Woman’s Work” (NotTwo Records)

Not Two Records

Rui Eduardo Paes

Somadas que estão quatro décadas da sua actividade musical, em boa hora a editora polaca NotTwo Records decidiu dedicar uma caixa com oito CDs a Joelle Léandre, figura que consta no pódio dos mais importantes contrabaixistas da actualidade. Não se trata de uma recapitulação do que fez durante este período, como se verifica pela inclusão de gravações datadas de 2016, 2015, 2011 e 2005, mas a perspectiva é mais interessante assim: esses 40 anos resultaram no que a francesa é hoje, sendo o presente que mais importa. Uma imensa discografia documenta já o que foi fazendo, nas áreas da música livremente improvisada, do jazz (ela que nunca se considerou uma “jazzwoman”) e da música contemporânea (enquanto intérprete de Cage, Scelsi e outros, inclusive dela própria enquanto compositora).

Todos os registos incluídos em “A Woman’s Work” foram realizados ao vivo e a escolha parece acertada. É no palco que a música de Léandre ganha maior expressão, como sabe quem já a ouviu tocar em Portugal. A selecção começa, no CD1, com uma actuação em Moscovo do trio Les Diaboliques, em que a encontramos na companhia de Irene Schweizer e Maggie Nicols. Boa escolha, pois trata-se do seu mais antigo investimento musical ainda em rodagem, contando com mais de 25 anos de existência. E é ela que dá “recuo histórico” à “box”, dado que esta formação é herdeira do Feminist Improvising Group, uma incómoda pedrada no charco no circuito da livre-improvisação da década de 1970, então integralmente dominado por músicos masculinos. Aliás, a reacção destes à teatralidade feminista (e lésbica) do FIG foi particularmente virulenta, com por exemplo Alexander von Schlippenbach, numa de várias tristes atitudes na época, a pressionar produtoras de festivais para não contratarem o grupo, com o argumento de que havia muitos homens excluídos das programações por causa delas, entendendo o pianista que «tocavam melhor».

Ouvimos aqui uma parte do universo FIG a ser replicado pelas Diaboliques, designadamente o factor cabaré, com um humor entre o satírico e o delirante. Léandre e Nicols desdobram-se em “gags” sonoros de que só podemos imaginar (não tendo estado no concerto) a correspondência cénica e dramática, explorando com uma boa dose de excentricidade os extremos da emotividade. As vocalizações da primeira acicatam as da segunda e vice-versa, enquanto a protagonista desta edição torna contrabaixo e voz num só instrumento. Schweizer opta por outro posicionamento, controlando os excessos das suas parceiras com uma postura mais comedida. Dá gosto ouvi-la: os seus pianismos convocam toda a história do jazz, trazendo o “stride” e os blues até uma concepção de vanguarda muito influenciada pela música erudita.

O CD2 remete-nos para todo o historial discográfico dos duos de Joelle Léandre com violinistas, a saber Jon Rose, Carlos “Zíngaro”, India Cooke e, mais recentemente (numa edição portuguesa, assinale-se), com Théo Ceccaldi, acrescentando a esse rol o nome de Mat Maneri – em violino, precisamente, que não na habitual viola. Só havia um álbum com ambos, mas em quarteto, pelo que esta parceria ocorrida em Paris tem uma importância particular. A dupla adopta uma interacção conversacional, toda ela feita de pequenos gestos, num fluir nervoso, inquieto e intenso de ideias. Sempre fugindo a qualquer sugestão de melodia ou de ritmo, trabalhando abstractamente com timbres e texturas. Em termos de abordagem, o terceiro disco da caixa está algures entre o primeiro e o segundo: trata-se de mais uma colaboração entre Léandre e a cantora Lauren Newton, 20 anos após a sua primeira. A prestação em Besançon demonstra que está longe de esgotada. Há de tudo um pouco aqui: “scat singing”, murmúrio, grito, “spoken word”, “crooning” e lirismo, num imediatismo que se vai metamorfoseando naturalmente, sem direcção anunciada mas também sem desvios. Léandre vai deitando achas para a fogueira, completamente ao serviço das situações, indo de uma rigorosíssima gestão do silêncio aos furiosos ataques com arco que são a sua assinatura.

O CD4 traz-nos o segundo dueto existente em disco de Joelle Léandre com o trompetista Jean-Luc Cappozzo, este também captado na cidade francesa de Besançon. Novamente, há uma exploração de contrários: a música, totalmente improvisada, tem momentos não só introspectivos e contemplativos como também melancólicos, para logo de seguida vir o puro divertimento, a graçola, o rugido, o urro, com recurso passageiro às raízes da música urbana do nosso tempo, os blues e um folclore sem território especialmente definido. Não há limites para a inventividade que vamos testemunhando – esta uma música de plausibilidades, praticamente nada excluindo em termos de formulação técnica e de vocabulário. Sabemos que há tabus e proibições na improvisação dita livre, mas não as descobrimos nesta audição. Mais um CD no leitor e a oportunidade de ouvir Léandre a sós com Fred Frith, ele que integra o MMM Quartet da primeira. Este encontro de gigantes aconteceu em Montreuil, com a contrabaixista desempenhando, regra geral, a convencional função do seu instrumento e o ex-Henry Cow e ex-Naked City a atacar a guitarra eléctrica com diferentes objectos e a submetê-la a uma panóplia de pedais de efeitos e a “ebows”. Partem de pontos diferentes para chegarem ao mesmo sítio, ora construindo energia, ora dissipando-a. Há trocas de papéis, com Frith a colocar-se no plano rítmico para Léandre “solar” com arco, assim como se vão revezando harmonia e ruído. É a isto que se chama música exploratória e, sim, o rock também está presente.

Como não podia deixar de ser, está reservado um solo para o CD6, tocado numa emissão em directo da Radio France. Léandre tem uma dezena de discos publicados com o formato, mas este não está a mais, contribuindo bastante, até, para termos uma melhor percepção de como foi evoluindo como instrumentista – é a gravação mais antiga da caixa, anterior portanto aos últimos cinco álbuns a solo de Léandre. Mais uma vez, ouvimo-la a acrescentar o canto ao que vai fazendo, assim ampliando a compulsão da performance contrabaixística com erupções de ira ou envolvendo a delicadeza com que belisca as cordas com quase inaudíveis expressões vocais. Nos dois últimos compactos tem a companhia de Evan Parker, Agustí Fernández e Zlatko Kaucic, em quarteto (CD7) e em duos com cada um deles (CD8), durante prestações realizadas em Cracóvia, na Polónia. Criada a quatro, a música vai do muito denso ao esparso, com o saxofone de Parker em nuances maiores do que eram seu hábito no passado. A integração entre o espanhol Fernández no piano e o esloveno Kaucic na bateria é frequentes vezes concretista, em contraste com o frasismo “jazzy” do inglês e as arcadas classicizantes da francesa. No outro disco, talvez o mais surpreendente esteja nas associações (duas) com o baterista, cheias de “overtones”, texturadas e desenroladas a um nível quase liliputiano. A combinação com Fernández é especialmente percussiva, com este a dobrar-se no interior do piano, e com Parker acontece o que de melhor poderiam ambos realizar com tal emparelhamento: enovelamentos de multifónicos, de harmónicos, de sons fantasma, quase nos levando a deixar de perceber quem faz o quê.

Em boa hora nos chega esta fantástica caixa também pelo facto de que Joelle Léandre estará entre nós, por duas ocasiões, este ano. O que vem neste pacote tem argumentos mais do que suficientes para não perdermos essas apresentações, e tanto para os que nunca a viram à boca de cena como para os fãs, que os tem por cá muitos.

  • A Woman's Work

    A Woman's Work (Not Two Records)

    Joelle Léandre

    Joelle Léandre (contrabaixo, voz); Irene Schweizer (piano, CD1); Maggie Nicols (voz, CD1); Mat Maneri (viola, CD2); Lauren Newton (voz, CD3); Jean-Luc Cappozzo (trompete, CD4); Fred Frith (guitarra eléctrica, CD5); Evan Parker (saxofone tenor, CDs7 e 8); Agustí Fernández (piano, CDs7 e 8); Zlatko Kaucic (bateria, CDs7 e 8)

  • A Woman’s Work

    A Woman’s Work (Not Two Records)

    Joelle Léandre

    Joelle Léandre (contrabaixo, voz); Irene Schweizer (piano, CD1); Maggie Nicols (voz, CD1); Mat Maneri (viola, CD2); Lauren Newton (voz, CD3); Jean-Luc Cappozzo (trompete, CD4); Fred Frith (guitarra eléctrica, CD5); Evan Parker (saxofone tenor, CDs7 e 8); Agustí Fernández (piano, CDs7 e 8); Zlatko Kaucic (bateria, CDs7 e 8)

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