Eve Risser White Desert Orchestra: “Les Deux Versants se Regardent” (Clean Feed)
Clean Feed
A França foi uma referência incontornável para o jazz durante algum tempo. Era o porto europeu do jazz americano e destacou-se não só por acolher, mas também por gravar, editar e perceber do assunto. Depois eclipsou-se. Há muito tempo que o jazz francês conta pouco e, visto daqui, parece ter-se reduzido à imitação de fórmulas vencedoras americanas para consumo interno, num país que não se importa de comer fotocópias desde que sejam francesas ou jazz manouche.
A Alemanha, a Suécia, a Noruega e muitos outros países acabaram por tornar a França um país pouco significativo no que ao jazz diz respeito e por isso é com prazer que, de vez em quando, vemos surgir alguém que nos relembra a sua história. Eve Risser é uma pianista excepcional e, se a vida for justa (sabemos que não é, escrevo este texto no dia em que o Trump assume a presidência dos EUA), será um dos nomes mais importantes do jazz mundial. Piana notavelmente e o seu disco “Des Pas sur la Neige” revoluciona a improvisação no piano e o uso de técnicas extensivas é levado a um ponto de virtuosismo único.
Em Junho de 2008, Risser ganhou o prémio Jazz & Improvised Music do Conservatório Nacional de Paris, o que a levou à Orquestra Nacional de Jazz de França de 2009 a 2013. Suspeitamos que esta terá espartilhos difíceis de gerir e, assim, a formação da sua própria orquestra, a White Desert, parece ser a solução para exercer música interessante e inovadora. Note-se que eu disse «a sua orquestra» - um decateto - como quem diz «mandou vir uma guitarra pela Internet»: como se fosse uma coisa simples montar, manter, escrever para e dirigir uma pequena orquestra.
Gravado em Agosto de 2016 em França, pouco tempo depois da apresentação no Jazz em Agosto de Lisboa, a música de Risser surge de questões e observações geológicas, mineralógicas, mas o que nos chega ao ouvido é uma escrita muito sofisticada e culta que se afirma pela beleza, mas igualmente pela enorme originalidade. Estamos por isso nos antípodas da Maria Schneider Orchestra. Os arranjos são extremamente detalhados mas têm uma escala humana. São complexos como o ser humano, mas sem o exagero que pretende persuadir, dando espaço para os acontecimentos individuais, sugerindo ambientes frugais, mantendo a orquestra dentro de um barco atarefado com uma tempestade.
Todos os músicos exploram os seus instrumentos para lá das aproximações mais tradicionais e por isso a paleta sonora é imensa, com sons que frequentemente nos surpreendem e para os quais não conseguimos encontrar o instrumento de origem. O mais interessante de seguir são as tensões que permanentemente controlam a música e que lhe vão alterando o carácter. A doçura de algumas partes contrasta com o acre de outras e a aridez dá lugar à imensidão. Estas viagens são geridas com enorme inteligência e interesse e ouvimos esta música como quem ouve Ligeti ou Scelsi. É beleza só e muito jazz.
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Les Deux Versants se Regardent (Clean Feed)
Eve Risser White Desert Orchestra
Sylvaine Hélary (flautas piccolo, em dó, alto e baixo); Antonin Tri Hoang (saxofone alto, clarinetes soprano e baixo); Benjamin Dousteyssier (saxofones tenor e baixo); Sophie Bernado (fagote); Eivind Lønning (trompete); Fidel Fourneyron (trombone); Julien Desprez (guitarra eléctrica); | Eve Risser (piano, piano preparado); Fanny Lasfargues (baixo electroacústico); Sylvain Darrifourcq (bateria, percussão)