Slow is Possible: “Slow is Possible” (JACC Records)
JACC Records
Não podiam ser mais intrigantes, estes Slow is Possible. As melodias que tocam são cândidas, juvenis e até doces. Têm alguma coisa da pop, e designadamente do imediatismo, da jovialidade e da simplicidade que caracterizam o género. Soam com uma naturalidade estranha, entram no ouvido e ficam a ressoar na memória muito depois de o disco acabar. Mas até por isso têm também algo de folk, de música do povo, parecendo provir dos confins do tempo. São-nos familiares, como que as reconhecemos, mas não sabemos de onde. O trabalho rítmico é o do jazz, claramente. Swinga e é “groovy”, mas com a desenvoltura e a ligeireza do rock.
A harmonia, essa, vem directamente da clássica, denotando a formação erudita dos seis músicos do grupo. É complexa, elaborada e acaba por se impor, ganhando terreno sobre o quase omnipresente melodismo e o tapete de pulsações, numa espécie de música de câmara com roupagens urbanas. Depois vem o resto, e o resto é ruído eléctrico, noise, e um abstraccionismo atonal que nos remete para a música livremente improvisada. Poucas vezes encontramos algo que seja simultaneamente tão acessível, tão fácil de gostar, e também tão fora de tudo, tão extremo. É como se “mainstream” e vanguarda fossem uma e a mesma coisa.
Os Slow is Possible deixam-nos primeiro perplexos, depois confusos e finalmente conquistam-nos. Congregam em si o melhor de vários mundos, mas não é de um jazz de fusão ou de colagem que se trata: não são os invólucros formais dos géneros e estilos que absorvem aquilo que realmente lhes interessa, mas os seus conteúdos. Tiram as cascas e ficam com o que mais importa. E não procuram mesclar esses materiais numa plasticina musical. A estratégia seguida é o contraste, com a magnífica qualidade de tornar plausíveis as antinómicas combinações que se vão sucedendo. Pegam no que é contrário, adverso, e relativizam tudo. Vão de um madrigalismo deliciosamente poético a uma malandra batida de “striptease” em questão de segundos, tudo nos parecendo fazer sentido. Dizemos para nós próprios: «Olha, afinal era possível!»
“Slow is Possible”, o disco, é uma banda sonora cinematográfica, mas sem filme. O filme passa na nossa cabeça, enquanto ouvimos. E não são apenas David Lynch e Maya Deren as inspirações cinéfilas (confessadas pelo grupo) que encontramos aqui. Há também as ambiências sonoras das películas policiais de série B, algum Nino Rota, algum Morricone e até referências ao John Zorn compositor para o grande ecrã, ainda – felizmente – que sem a azeitice deste.
Há passagens de uma beleza de puxar as lágrimas, de tão saturadamente românticas, roçando o “kitsch”, mas logo a seguir vem um sobreagudo do saxofone alto ou do clarinete, uma malha de guitarra com distorção, um elemento qualquer que irrompe a despropósito mas que é, percebemos, absolutamente indispensável para a irónica, diria que inclusivamente cínica, identidade da música. E esta não é propriamente um produto do pós-modernismo cultural dos nossos dias, mas uma crítica à pós-modernidade. É um pós-modernismo virado contra si mesmo, desestabilizador e com uma dose q.b. de perversidade.
Ou seja, o que sentimos como inocente ou ingénuo – incluindo o facto de os Slow is Possible não repetirem os tiques e os truques do jazz em geral e do jazz nacional em particular, pela circunstância de virem de fora deste circuito – não o é assim tanto. Este jazz pouco tem a ver com o que por cá normalmente se pratica, mas isso é tomado por estes jovens da Beira Interior como uma vantagem e exploram-na até ao tutano. É isso que os torna numa das maiores descobertas – não exagero se disser que talvez na maior – surgidas em Portugal nestes últimos 10 anos. O que está neste CD é assim tão fantástico, tão inesperado, tão invulgar e tão capaz de nos encher as medidas.
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Slow is Possible (JACC Records)
Slow is Possible
Bruno Figueira (saxofone alto); Patrick Ferreira (clarinete, electrónica); André Pontífice (violoncelo); João Clemente (guitarra eléctrica); Ricardo Sousa (contrabaixo); Duarte Fonseca (bateria)