John Butcher
Parceiro de luxo
Northern Spy
Antes de o saxofonista britânico vir ao Jazz em Agosto para tocar com o Red Trio como convidado especial, oiçamos quatro títulos seus no primeiro dos formatos colaborativos: o duo. Fred Frith, Matthew Shipp, Rhodri Davies e Andy Moor são os seus interlocutores. Companheiros de peso para um músico com quem apetece tocar…
Vamos tê-lo entre nós no próximo Verão (Jazz em Agosto), numa parceria com o Red Trio de Rodrigo Pinheiro, Hernâni Faustino e Gabriel Ferrandini. Enquanto não chega o festival da Gulbenkian, aqui fica uma sugestão: ouvir John Butcher no mais elementar formato colaborativo, o duo. São quatro as edições recentes do saxofonista britânico com a abordagem que em Inglês se designa por “interplay”, aquela mesma que ganha maiores proporções com a improvisação. Algo que na nossa língua só podemos traduzir EM SIMULTÂNEO como “tocar entre”, “tocar dentro” e “tocar com”, porque usar apenas uma das soluções seria insuficiente para referir o que realmente acontece…
Fred Frith / John Butcher: “The Natural Order”
John Butcher e Fred Frith já se apresentaram juntos em concerto em diversas ocasiões, mas foi para gravar este disco que se encontraram num estúdio pela primeira vez. Em boa hora tal ocorreu, pois “The Natural Order” é um assombroso título daquele tipo de improvisação que não é jazz, não é rock e não é nada mais em concreto, mas está encharcado de jazz, rock e outras linguagens ainda (noise?), desmentindo a categorização da tendência como “música não-idiomática”. Trata-se do encontro de duas das figuras maiores da segunda geração da música livremente improvisada do Reino Unido, um (Frith) saído do universo do rock alternativo (Henry Cow, Art Bears, Skeleton Crew, Keep the Dog, Massacre) e levando mais longe as inovações guitarrísticas de Derek Bailey, e o outro (Butcher) divergindo da estética do free jazz e colocando-se na linhagem exploratória das capacidades físicas de um saxofone inaugurada por Evan Parker.
A distorção da guitarra, o uso e abuso de “feedbacks”, inclusive por parte dos saxes, a intensidade e a energia de muitas das intervenções e os muitos decibéis envolvidos são o que desde logo nos arrebata, bem como a ocasional e contrastante emergência de fragmentos melódicos e de pulsações quebradas, mas passagens há em que Frith e Butcher dão largas ao que fazem melhor que muitos, e designadamente os que procuram imitá-los: as esquizóides preparações e jogos de pedaleira do primeiro (que até foi quem os inventou, como ouvimos no clássico “Guitar Solos”, de 1974) e as texturas alimentadas a sopro e saliva ou os inacreditáveis multifónicos do músico que este ano nos visitará.
Não é um duelo o que aqui vem, pois essa perspectiva implica que alguém saia a ganhar e não propriamente o ouvinte, mas o brilhantismo do álbum deriva todo ele do facto de cada um dos instrumentistas contradizer e armadilhar o caminho do seu interlocutor, na exacta medida em que conseguem que a música soe colada. O que implica muita escuta no próprio acto criativo e uma prática da liberdade artística sempre balizada pela ideia do outro. O outro que toca ao lado e que é desafiado a afirmar-se. Só há improvisação bem-sucedida entre iguais e é por isso que se diz que esta metodologia musical anuncia uma sociedade melhor. “The Natural Order” é como que uma utopia realizada.
John Butcher / Matthew Shipp: “At Oto”
Quando o londrino Café Oto convidou Matthew Shipp a actuar naquele espaço e lhe perguntou com que figura inglesa gostaria de contracenar, a sua resposta foi tão imediata quanto surpreendente: John Butcher. E foi surpreendente porque os dois músicos frequentam áreas bem distintas do largo espectro da improvisação. Shipp movimenta-se no limiar da tradição do jazz, constantemente invocando o património pianístico do género ainda que o vire às avessas, e Butcher faz tudo o que pode para libertar os saxofones do enquadramento que o jazz lhes deu.
Como se se pretendesse dar desde logo uma noção do que está em causa, o registo ao vivo “At Oto” começa com dois solos do saxofonista e um apenas, mas longo, do pianista, só depois chegando o dueto. Ainda que Butcher mostre de onde vem, ficam imediatamente claras as diferenças nessa primeira metade do CD. Quando finalmente se juntam, continuam a ser eles mesmos mas a comunicação providencia-se e atinge picos de excelência. Quem vai mais ao encontro do outro? John Butcher, um dos músicos mais flexíveis actualmente em actividade. O mestre dos burburismos com uma palheta também sabe ser lírico.
Sendo o menos notável dos discos em análise, constitui a melhor comparação com o que pode ser um concerto do Red Trio com Butcher. O grupo nacional age habitualmente no legado da “old new thing”, mas o seu convidado do país de Shakespeare já foi decisivo, como se verifica em “Empire”, para que se lançasse a outros desfechos, com Pinheiro, Faustino e Ferrandini a revelarem-se mais disponíveis para abandonar uma posição “jazzo-centrada” (aquilo precisamente que esta colaboração pressupõe) do que Matthew Shipp. Ou porque essa abertura é mais natural com músicos europeus do que com um afro-americano, ou porque a isso conduzem as características sincréticas das suas respectivas visões da música, não muito distantes da do próprio Butcher.
Rhodri Davies / John Butcher: “Routing Lynn”
Em “Routing Lynn”, Butcher está como peixe na água. A base é fornecida pelas gravações de campo realizadas pelo artista sonoro Chris Watson (sim, o antigo membro do grupo de rock industrial Cabaret Voltaire) nos montes do Norte da Inglaterra onde têm sido encontradas algumas das mais antigas pinturas rupestres do mundo. Ouvimos o vento, água a correr e uma chusma de pássaros, mas já é mais difícil identificar como tal a harpa de Rhodri Davies. Electrificada, ligada a processadores electrónicos e manipulada com “ebows” e objectos variados, raramente faz o que esperaríamos. Muitas vezes, também o tenor e o soprano de John Butcher se desidentificam com os padrões sonoros definidos por Adolf Sax, confundindo-se com o que mais acontece. Ora graças ao uso de técnicas extensivas, ora aproveitando amplificações inusuais.
Se a arte bruta de “The Natural Order” nos conquista, se o jazz oblíquo de “At Oto” nos cai bem, chega a ser comovente a beleza delicada e subtil desta música feita de acordo, não contra, o ambiente. Davies é uma das personalidades de topo do chamado reducionismo, e Butcher já tem andado por aí, mas não é o formato “near silence” que surge nesta obra-prima. As atmosferas mantidas remetem-nos mais para Morton Feldman ou para um John Tilbury em formato electroacústico. Imaginem um conjunto de pirilampos a soltarem-se em diversas orientações e deixando rastos de luz e estarão perto do que se escuta aqui.
John Butcher / Andy Moor: “Experiments with a Leaf” (Unsounds)
Há, obviamente, muitos pontos de contacto entre o novo tomo do duo – uma das suas formações mais permanentes – de John Butcher com um dos guitarristas da banda punk anarquista The Ex, Andy Moor, e o álbum resultante da reunião do mesmo com Fred Frith. A verdade é, porém, que “Experiments with a Leaf” apenas seria um expoente das associações de um saxofone com uma seis-cordas se não existisse o já paradigmático “The Natural Order”. Ainda assim, ou melhor, ainda que Moor não seja o génio que Frith é, esta parelha funciona bastante bem e o CD agora editado merece uma atenta consideração.
Muito particularmente porque vem quebrar com uma regra: o aproveitamento dos factores de espacialização do som, privilegiando da acústica de uma sala com determinadas características arquitectónicas, costuma ser apanágio de um instrumentário convencional. Não é o que se passa no disco: há uma guitarra eléctrica com máquinas de efeitos acopladas e há um tipo de utilização dos saxofones que implica uma especial microfonia. Este registo foi feito numa catedral, em Berna, na Suíça, e esta tem uma presença tal que quase funciona como um terceiro elemento.
O paradoxo entre a conjugação de uma malha suja e eléctrica de guitarra e um dissonante “quak” saxofonístico e as suas ressonâncias num edifício sagrado adquire um valor simbólico que pode ser interpretado como entendermos, em qualquer dos casos de forma positiva. Ou como abertura da religião ao mundanismo da contemporaneidade ou como refrescante heresia. Acho que o que a Butcher e Moor interessou foi o factor herético.
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The Natural Order (Northern Spy)
Fred Frith / John Butcher
Fred Frith (guitarra eléctrica); John Butcher (saxofones tenor e soprano)
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At Oto (Fataka)
John Butcher / Matthew Shipp
John Butcher (saxofones tenor e soprano); Matthew Shipp (piano)
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Routing Lynn (Ftarri ftarri)
Rhodri Davies / John Butcher
Rhodri Davies (harpa eléctrica, harpas de vento); John Butcher (saxofones tenor e soprano amplificados e em “feedback”) + Chris Watson (gravações de campo)
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Experiments with a Leaf (Unsounds)
John Butcher / Andy Moor
John Butcher (saxofones tenor e soprano); Andy Moor (guitarras eléctricas)