Ernesto Rodrigues
Redux maximus
Creative Sources
Ouvir os últimos registos do improvisador português que mais discos tem editados é observar a presente evolução da tendência de que é o principal representante neste país: o reducionismo. Em análise 14 títulos que revelam as novas características desta corrente e o papel que nelas está a ter o violetista de Lisboa.
Ernesto Rodrigues é o músico improvisador português que tem mais discos editados. A circunstância de ser o responsável de uma etiqueta, a Creative Sources, não é estranha a esse facto, como se torna evidente, mas a verdade é que a sua capacidade de produção parece inesgotável. E sendo ele o protagonista de uma das frentes da corrente reducionista, colocando Lisboa a par de Londres, Paris, Berlim, Tóquio e Beirute, as mais importantes, a quantidade e as características dos títulos que vai publicando permitem que fiquemos com uma perspectiva da própria evolução da tendência estética que, na improvisação, trocou o fraseado pelas texturas e as progressões harmónicas ou os modalismos por um foco no timbre sem tom definido.
Os registos aqui analisados são os seus mais recentes e demonstram bem que o igualmente chamado “near silence” está a sofrer transformações que não há muito julgaríamos improváveis. Uma, e talvez a que tem mais impacto, é a colocação de uma perspectiva de espaço em primeiro plano. Espaço preenchível em termos sonoros e projecção desses sons, espacialização, no local das performances, com a arquitectura, o meio, a definir o que se toca. Outra mudança detectável na música de Rodrigues em diversas formações é a repetição de elementos sónicos e, inclusive, sua articulação até formar uma sentença, algo que se considerava um tabu.
Reposto está igualmente o factor de dramatização com que se tinha cortado para contrariar os excessos expressionistas da “old school”: estão aí novamente as lógicas ascensionais, de clímax e de criação de atmosferas e estados de espírito. O que implica que voltou, também, o sentido de narrativa, por menos linear que esta seja. O reducionismo de Ernesto Rodrigues e dos seus parceiros aumentou de tamanho: é mais activo, mais atarefado. Mesmo que o volume se mantenha baixo, há muitas coisas a acontecer. Mas os próprios decibéis subiram – por vezes, estes desenvolvimentos da escola reducionista parecem encontrar-se com a noise music.
É hoje maior a distância destes álbuns relativamente aos fundamentos originais da “nova música improvisada”, aqueles provenientes do indeterminismo de John Cage e, sobretudo, Christian Wolff, do colectivo de compositores Wandelweiser, do onkyo japonês e da tendência lowercase da música por computador. Neles há um mais solto trabalho de dinâmicas e até é possível encontrar, entre as gerais abstracções, assumidos e convencionais tonalismos.
Não é Ernesto Rodrigues e o reducionismo que se estão a moderar ou a ceder aos usos instalados. Esta continua a ser uma das poucas áreas que mais inovações técnicas e de vocabulário têm trazido à música. Simplesmente, a prática reducionista libertou-se – sinal de maturidade – do peso que alguma inclinação dogmática nela estava a ter. Havia demasiadas proibições para que este tipo de improvisação fosse realmente espontâneo.
A viagem dos sons pelo ar
Uma das fórmulas a que Ernesto Rodrigues deu mais atenção nos últimos tempos foi a do agrupamento de grande número. A sua VGO (ou Variable Geometry Orchestra) tem estado parada, devido às dificuldades logísticas envolvidas, ou seja, ao problema que é acertar as disponibilidades de tantos músicos, mas no seu lugar surgiu o IKB Ensemble. A premissa é interessante: como é que uma formação deste tamanho pode realizar o princípio de que “menos é mais”, reduzindo cada intervenção ao mínimo? Os resultados estão em três discos saídos quase de seguida, “Anthropometrie sans Titre”, “Rhinocerus” e “Dracaena Draco”.
E o que é mais no menos proposto? A miríade de situações e detalhes, contrariando o que encontramos nas obras de reducionistas radicais como Radu Malfatti e Taku Sugimoto. Nos dois últimos lançamentos, um gravado no Panteão Nacional e o outro na St. George’s Church, em Lisboa, os músicos ainda se contêm mais, mas cada pequeno sopro, arcada, raspagem, sinusóide ou batimento que fazem ganha uma maior consequência, graças às ressonâncias daquelas salas de pedra. Nesse aspecto, “Rhinocerus” é uma delícia para os ouvidos. Ouvimos o espaço, a viagem dos sons pelo ar.
O projecto IKB refere-se ao International Klein Blue, um tipo de azul patenteado pelo pintor Yves Klein, e não é por acaso. Mais do que por considerações musicais, o ensemble de Rodrigues rege-se por factores plásticos, esculturais e arquitectónicos. Pode a música ser uma arte do tempo, mas a utopia tentada aqui é a sua conversão numa arte do espaço, com princípios provenientes das artes visuais. É a velha aspiração à sinestesia que se tenta realizar, com um sucesso assinalável.
Vai na mesma direcção o CD “Jadis la Pluie Était Bleue”, segundo tomo do colectivo Suspensão. E no entanto, se o IKB Ensemble é, sobretudo, pontilhístico, neste disco encontramos alguma inclinação para os “drones”, incidindo nas formas com que se pode iludir musicalmente o tempo. Além disso, sendo a dimensão dos eventos sonoros liliputiana, há um frenesim de actividade. Toca-se muito (pela associação de todas as contribuições) com pouco (o que cada um fornece para o todo).
O chão da música
Mais uma vez, o excelente “Early Reflections”, do trio de Ernesto Rodrigues com Bertrand Gauguet e Ricardo Guerreiro, é todo ele espaço. Intensidade e densidade confundem-se, é grande o espectro de dinâmicas e vão-se sucedendo microtons e harmónicos, em linha com as explorações realizadas nos domínios da música erudita contemporânea e do experimentalismo. Por vezes, chega-se a um inaudito nível de saturação. No final, somos lembrados de onde tudo isto vem: volta-se ao grau zero, o quase silêncio surgindo com o mesmo efeito da serenidade pós-coital. Tudo o que acontecera antes eram acrescentos (não já reduções, mas somas), uma ocupação do silêncio que afirmava, afinal, o primado deste.
“Nor”, com Axel Dorner, Nuno Torres e Alexander Frangenheim a juntarem-se ao violetista português, contém outra surpresa: repetem-se pulsações, isto é, formam-se ritmos definidos, reproduzem-se notas e situações, não temendo a introdução de tematismos. Podem logo depois ser contrariados, mas ocorrem e com uma frequência que nos demonstra não se tratar de meros acidentes no fluxo das improvisações. O efeito é teatral, dramático, e acaba até por ter maiores repercussões neste contexto do que teria numa composição em que esse procedimento é de norma.
Em “Primary Development” esse papel está nas sínteses do computador. É um notável álbum de Wade Matthews, a quem se associam Ernesto Rodrigues, Javier Pedreira e Nuno Torres. A estratégia, neste caso, é de contraste e ambivalência: som por camadas (pinceladas) e silêncio, em sucessões de enchimento e esvaziamento. Continua o rótulo “reducionismo” a fazer sentido? Talvez, mas aplica-se a realizações como esta, com igual propriedade, o termo “acrescentacionismo”. Se o “chão” da música, desde Cage, é o silêncio, ou a impossibilidade deste, tudo o que se realize sobre a sua matriz é adição. Não por contrariedade, mas por inerência: se silêncio é som, qualquer som, qualquer organização de sons, vulgo música, traz consigo essa origem silenciosa.
Quando há assomos de energia como em “Zwei Mai Zwei”, com Gregory Buttner e Gunnar Letow a interagirem com os nossos Rodrigues e Torres, mais o dito silêncio se sente nos momentos em que impera. Neste enquadramento, a sua relevância é exactamente a mesma, senão maior. Trata-se de um silêncio grávido de implicações, intenso, ruidoso. Não é um vácuo que se abre, mas uma parte como outras da topografia sonora criada. Se o branco é a mistura de todas as cores, o silêncio encerra todos os sons. É um concentrado de possibilidades acústicas.
E ei-las a florescerem na parceria entre Ferran Fages e Ernesto Rodrigues, “Cru”. Com insistente uso de “field recordings” (“vemos” um dia de chuva, com comboios e automóveis a passar abrindo um rasgo de água), entramos em pleno domínio da “sound art”. Os processos são improvisacionais, mas neste CD os habituais padrões da música improvisada desaparecem. Somos absorvidos pela esfera do som, aquela imaginada por Giacinto Scelsi. Percebemos que há música já antes da música propriamente dita.
“Mizutekiteki”, opus de Ernesto Rodrigues com Nuno Torres, o seu filho Guilherme, Rodrigo Pinheiro e Naoto Yamagishi, poderia ser descrito como impressionismo abstracto, se tal categoria existisse. Tem um carácter meditativo mas não é só isso que o define: em vez do nada da meditação oriental pressuposta estão impressões, interiorizações subjectivas, mas partilhadas, de factores externos – uma observação das percepções do espaço por parte dos contribuintes, que não uma observação do espaço ele próprio. E lá estão, de novo, as repetições e a tentação para o fraseio, admitindo como inevitável tocar-se como se fala…
Nesta série de lançamentos, “Way of Walking” é a antítese, a reivindicação do estatuto reducionista tal como foi apresentado nos começos. Ernesto e Guilherme Rodrigues contracenam com Karine Décorne e Simon Proffitt para um regresso às coordenadas iniciais desta corrente da improvisação. São mais as passagens não intervencionadas do que aquelas em que escutamos algo, e o que nos entra no ouvido são crepitações, estalidos, roçares. Ser a menos interessante edição deste lote é bastante significativo.
Também em “La Verité des Pierres” o patrão da Creative Sources é fiel à filosofia reducionista, na companhia de Louis Laurain, Bruno Parrinha, Guilherme Rodrigues e Carlos Santos. Os “drones” e sustenidos são explícitos, porém, quanto ao alinhamento com o experimentalismo electrónico e electroacústico. Os instrumentos convencionais fazem o que faz o computador de Santos, mediante a utilização de técnicas extensivas. Por vezes, é mesmo difícil distingui-los. Só as respirações e os manuseamentos identificam a humanidade das proveniências.
“Trees” volta a colocar os termos que no actual período de existência da improvisação minimal estão em causa. Com Guilherme Rodrigues, Gianna de Toni, Christophe Berthet e Raphael Ortis, este outro disco de Ernesto Rodrigues congrega bordões e dissonâncias, padrões repetitivos e ocorrências puramente intuitivas. Privilegiam-se a diferenciação de recursos e materiais e a variedade de abordagens e léxicos, com a música a beneficiar em riqueza e em imprevisibilidade. Outro aspecto formal contribui para os bons resultados obtidos: o saxofone soprano de Berthet é colocado “contra” as quatro cordas do quinteto, agindo como um “joker”, uma carta fora do baralho.
Termino com uma pérola do reducionismo que-já-não-o-é-tanto-assim. “Blue Train” é uma gravação de Mazen Kerbaj com os Rodrigues, Carlos Santos e Sharif Sehnaoui em que pouco se reduz. Os silêncios são ainda mais falsos, pois há algo sempre a mexer, o espaço apresenta-se repleto de pequenos e grandes eventos simultâneos e há um bulício constante. Tudo funciona em bloco, com subidas de tensão e volume que farão, certamente, com que Malfatti, se ouvir o presente CD, escreva um manifesto sobre a pureza a preservar do “near silence”. Afinal, foi ele quem repreendeu Thomas Lehn por este se movimentar muito a rodar os botões do seu sintetizador, dizendo-lhe que aquele “histrionismo” não era… silencioso.
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Dracaena Draco (Creative Sources)
IKB Ensemble
Ernesto Rodrigues (harpa); Guilherme Rodrigues (violoncello); Miguel Mira (contrabaixo); Bruno Parrinha (clarinete alto); Nuno Torres (saxofone alto); Pedro Sousa (saxofones tenor e barítono); Rogério Silva (trompete); Eduardo Chagas (trombone); Abdul Moimême (guitarra eléctrica); Armando Pereira (acordeão); Ricardo Guerreiro, Carlos Santos (computadores); Paulo Raposo (rádio); João Silva (taças tibetanas); Christian Wolfarth (címbales); Nuno Morão, Monsieur Trinité, José Oliveira (percussão)
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Rhinocerus (Creative Sources)
IKB Ensemble
Ernesto Rodrigues (viola); Marian Yanchyk (violino); Guilherme Rodrigues (violoncelo); Miguel Mira (contrabaixo); Bruno Parrinha (clarinetes soprano e alto); Nuno Torres (saxofone alto); Yaw Tembe (trompete); Maria Radich (voz); Armando Pereira (acordeão); João Silva (shruti box); António Chaparreiro (guitarra eléctrica); Carlos Santos (computador); Nuno Morão, José Oliveira (percussão)
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Anthropometrie sans Titre (Creative Sources)
IKB Ensemble
Ernesto Rodrigues (violino barítono); Guilherme Rodrigues (violoncelo); Miguel Mira (contrabaixo); Bruno Parrinha (clarinetes soprano e alto); Nuno Torres (saxofone alto); Yaw Tembe (trompete); Gil Gonçalves (tuba); Maria Radich (voz); Armando Pereira (acordeão); António Chaparreiro (guitarra eléctrica); Rodrigo Pinheiro (piano); Carlos Santos (computador); José Oliveira (percussão)
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Jadis la Pluie était Bleue (Creative Sources)
Suspensão
Ernesto Rodrigues (viola); Guilherme Rodrigues (violoncelo); Miguel Mira (contrabaixo); Nuno Torres (saxofone alto); Eduardo Chagas (trombone); Rodrigo Pinheiro (piano); António Chaparreiro (guitarra eléctrica); Carlos Santos (computador); José Oliveira (percussão)
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Early Reflections (Creative Sources)
Ernesto Rodrigues / Bertrand Gauguet / Ricardo Guerreiro
Ernesto Rodrigues (viola); Bertrand Gauguet (saxofone alto); Ricardo Guerreiro (computador)
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Nor (Creative Sources)
Ernesto Rodrigues / Axel Dorner / Nuno Torres / Alexander Frangenheim
Ernesto Rodrigues (viola); Axel Dorner (trompete); Nuno Torres (saxofone alto); Alxander Frangenheim (contrabaixo)
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Primary Development (Creative Sources)
Wade Matthews / Javier Pedreira / Ernesto Rodrigues / Nuno Torres
Wade Matthews (computador, gravações de campo, objectos amplificados); Javier Pedreira (guitarra eléctrica); Ernesto Rodrigues (viola); Nuno Torres (saxofone alto)
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Zwei Mal Zwei (Creative Sources)
Gregory Buttner / Gunnar Letow / Ernesto Rodrigues / Nuno Torres
Gregory Buttner (computador, altifalantes, objectos, ventoinha); Gunnar Letow (baixo eléctrico preparado, electrónica, objectos); Ernesto Rodrigues (viola); Nuno Torres (saxofone alto)
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Cru (Creative Sources)
Ferran Fages / Ernesto Rodrigues
Ferran Fages (electrónica, gravações de campo); Ernesto Rodrigues (viola)
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Mizutekiteki (Creative Sources)
Ernesto Rodrigues / Nuno Torres / Guilherme Rodrigues / Rodrigo Pinheiro / Naoto Yamagishi
Ernesto Rodrigues (viola); Nuno Torres (saxofone alto); Guilherme Rodrigues (violoncelo); Rodrigo Pinheiro (piano); Naoto Yamagishi (percussão)
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Way of Walking (Creative Sources)
Ernesto Rodrigues / Guilherme Rodrigues / Karine Décorne / Simon Proffitt
Ernesto Rodrigues (viola); Guilherme Rodrigues (violoncelo); Karine Décorne (objectos); Simon Proffitt (microfones, computador)
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La Verité des Pierres (Creative Sources)
Ernesto Rodrigues / Louis Laurain / Bruno Parrinha / Guilherme Rodrigues / Carlos Santos
Ernesto Rodrigues (viola); Louis Laurain (trompete); Bruno Parrinha (clarinetes soprano e alto); Guilherme Rodrigues (violoncelo); Carlos Santos (computador, objectos)
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Trees (Creative Sources)
Ernesto Rodrigues / Guilherme Rodrigues / Gianna de Toni / Christophe Berthet / Raphael Ortis
Ernesto Rodrigues (viola); Guilherme Rodrigues (violoncelo); Gianna de Toni (contrabaixo); Christophe Berthet (saxofone soprano); Raphael Ortis (baixo eléctrico, objectos)
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Blue Train (Creative Sources)
Mazen Kerbaj / Ernesto Rodrigues / Guilherme Rodrigues / Carlos Santos / Sharif Sehnaoui
Mazen Kerbaj (trompete); Ernesto Rodrigues (viola); Guilherme Rodrigues (violoncelo); Carlos Santos (computador); Sharif Sehnaoui (guitarra)