Rui Eduardo Paes: “Bestiário Ilustríssimo II / Bala (Chili Com Carne, col. THISCOvery CCChannel)
Chili Com Carne (col. THIISCOvery CCChannel)
“Bestiário Ilustríssimo II/ Bala” é a mais recente obra lançada pelo escritor e jornalista Rui Eduardo Paes. É uma obra cheia de paradoxos, a começar pelo número: para além de ser lançada numa belíssima edição conjunta da Chili Com Carne e da Thisco (com ilustrações de Joana Pires e David de Campos), o livro tem duas capas, fazendo dele um livro siamês, ao mesmo tempo um e dois.
A melhor metáfora que me surge para explicar este carácter ao mesmo tempo singular e duplo é um LP, que por mais parecidos ou diferentes que sejam os lados, tem sempre o A e o B. Neste caso, há mais semelhanças a unir “Bestiário Ilustríssimo II” e “Bala” do que diferenças a separá-los – no próprio livro esta relação é descrita como um «anão/tumor lovecraftiano».
Cada parte merece um prefácio. O compositor e artista sonoro brasileiro Marco Scarassatti assina um e o jovem violinista português Gil Dionísio o outro. Mas as dualidades não se esgotam por aqui. A escrita e a organização despretensiosamente pretensiosas, em toda a apresentação de uma enciclopédia não enciclopédica, nem tão pouco académica, conseguem ao mesmo tempo apelar a um público menos conhecedor como a um leitor por dentro dos assuntos tratados.
Se tal preocupação em facilitar a leitura para não deixar ninguém para trás poderá, por vezes, ser entendida como uma espécie de “guia de música jazz/improvisada/etc. para totós”, o inúmero rol de referências e entrosamento de questões mais complexas tornam qualquer “totó” que se predisponha a entender as ideias aqui contidas numa mente crítica.
Rui Eduardo Paes (REP) revela-se um homem multidimensional, aproveitando o conceito de Herbert Marcuse que utiliza para descrever o compositor e improvisador alemão Ulrich Krieger. REP apresenta cada “multivisão” com o mesmo entusiasmo da anterior, misturando num mesmo plano de entendimento toda uma panóplia de temas. Genuíno e sempre com uma abordagem de quem relaciona aquilo que lhe interessa, de Joëlle Léandre a Lady Gaga.
A caracterização dos músicos vai muito para além da música que fazem. REP encontra em cada assunto uma essência que tem tanto de musical como de filosófica ou ideológica. É particularmente tocante quando nos é exposta a preocupação de Vijay Iyer sobre a injustiça de a maioria dos ouvintes de jazz, que continuam a ser sobretudo afro-americanos, não terem condições socioeconómicas para frequentar escolas de música ou sequer pagar os bilhetes para os concertos.
Assim como é particularmente forte falar do trabalho associativo e comunitário de William Parker que, com a sua mulher Patricia Nicholson, fundou a associação Arts for Art. Descrevendo William Parker como um activista social e intelectual, REP traz ainda mais ao de cima a faceta de Parker como agitador de consciências, igualmente patente na música que faz.
Outra dualidade prende-se com uma visão ocidental da música, embora igualmente contraposta com outra, de certa forma não-ocidental. A territorialização em cenas artísticas, trabalhada regularmente por Rui Eduardo Paes, coloca esta obra num certo equilíbrio “glocal”, ou seja, local e universalista. Leia-se, por exemplo, o texto “Renascentista Romântico”, sobre o escritor e pianista Quinito Mourelle.
A ideia de tempo está muito presente. Na introdução de “Bala”, o autor explica que «o crítico musical realiza um trabalho em tempo-de-bala, um trabalho que se faz necessariamente atrás do tempo». O efémero contrasta diariamente com o escrito na pedra. Em “Depois do Após”, REP descreve a música do compositor e pianista português Marco Barroso como música da pós-contemporaneidade. Mas toda a obra está igualmente nesse registo em que o presente, o passado e o futuro estão na mesma linha temporal.
“Bestiário Ilustríssimo II/Bala” ultrapassa a barreira do som e insere-se de igual para igual em qualquer colecção discográfica que se preze.
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Bestiário Ilustríssimo II / Bala (Chili Com Carne (col. THIISCOvery CCChannel))
Rui Eduardo Paes
Rui Eduardo Paes (texto); Joana Pires, David de Campos (ilustrações)