Corvo Records
De Berlim para Lisboa
Corvo Records
Cuida artisticamente das capas, prefere o vinil, edita música praticada nas áreas de proximidade da improvisação e do experimentalismo e tem o seu catálogo disponível na Flur, loja aberta à beira do Tejo. É uma etiqueta da Alemanha e recomenda-se…
Com a berlinense Corvo Records volta a valorizar-se o factor objecto. E porque é essa a motivação do catálogo desta pequena grande etiqueta dirigida por Wendelin Buchler , o foco vai para a edição em vinil. As capas são não só gráfica, mas também artisticamente intervencionadas, e por vezes essa preocupação estética incide no próprio disco, com escolha de outras cores que não o tradicional negro e de transparências ou até impressões visuais. No que à música propriamente dita respeita, as opções vão para aquela área dúbia em que a música improvisada convive com o experimentalismo.
Sejam de nascimento germânico ou não, os artistas da casa habitam na sua maioria na capital alemã, mas estão incluídos músicos da Áustria e de França. Cada lançamento é rodeado de atenções particulares, havendo mesmo no empreendimento algo de artesanal, em clara ruptura com as lógicas industriais instaladas. Ainda bem que continua a haver iniciativas assim, funcionando como as “zonas autónomas temporárias” de que fala Hakim Bey. O lote em análise abaixo está disponível na loja da Flur em Santa Apolóniia (Lisboa)...
Futurismo e larvas
“Roars Bangs Booms”, da italiana Alessandra Eramo, é um single, coisa rara neste sector musical. Trata-se de uma pequena jóia, com a cantora e manipuladora de electrónica a mergulhar na história da poesia fonética, por meio da interpretação – brilhante, diga-se – de algumas palavras onomatopaicas presentes no manifesto futurista escrito em 1913 por Luigi Russolo, “The Art of Noises”, e trazendo esse património até aos nossos dias. Com passagens pelo Fluxus (movimento que cunhou a partitura em texto, nesse tipo de composição se destacando Yoko Ono), por um autor que deu especial atenção ao canto na música erudita contemporânea, Giacinto Scelsi, e por Demetrio Stratos, o vocalista de um dos mais interessantes grupos de jazz-rock da década de 1970, Area.
Theremin, gravações de fita e microfones de contacto são utilizados pela ex-colaboradora de Fred Frith, Domenico Sciajno, Christian Wolfhart e Jon Raskin e como suporte e complemento das suas técnicas vocais extensivas. Foi seu propósito identificar a voz com o ambiente acústico das sociedades urbanas e industrializadas: «Nestas sete variações performativas o ruído é não apenas o “leitmotiv” como a própria matéria musical. É esta a paisagem sonora do presente.»
Alessandra Eramo já tinha um título pela Corvo, sob o nome Ezramo. O LP “Come Ho Imparato a Volare” é bastante diferente: as suas abstracções glotais contrastam com as melodias românticas do piano e estas com o trabalho “desarmónico” de um saltério preparado. Ainda assim, é com arquétipos, com «memórias arcaicas», ou seja, com múltiplas associações e referências, que a persona Ezramo lida neste álbum. O tema geral é a transformação, e pelo meio ouvem-se os sons magnificados de larvas da mosca Sarchophaga Carnaria, que gravou com requintes científicos. A música é crua mas também evocativa, primária nas emoções que comunica mas igualmente lírica e até misteriosa. Nem sempre o canto é exploratório, volta e meia transparecendo uma inflexão pop ou folk. Por isso, já a crítica se lhe referiu como o cruzamento de Diamanda Galás com Julie Driscoll (a Julie Tippets de quando era uma diva do cançonetismo ligeiro, nos Sixties).
Ode à deusa Percht
Menos nome, por estes lados, tem Ingrid Schmoliner. E no entanto, o seu “карлицы сюита” é um autêntico tratado da preparação do piano, indo mais longe do que qualquer coisa que tenha sido feita por Anthony Pateras, Reinhold Friedl ou Sophie Agnel. Tem uma diferença relativamente a estes e outros pianistas que se debruçam sobre o interior do seu instrumento na improvisação: tal como John Cage, o inventor do procedimento, faz uso de preparações fixas, cada tema constituindo uma obsessiva análise de todas as possibilidades permitidas por um determinado “setup”.
O disco inspira-se na saga da deusa pagã Percht, cujo historial remonta a milhares de anos e ainda hoje é parte da mitologia popular dos Alpes austríacos. Terá sido essa ancestralidade do imaginário colectivo local que definiu o carácter tribal e de transe da peça de abertura, cuja intensidade nos atinge o estômago logo para começar.
Mas Schmoliner tem mais para oferecer e só no lado B do vinil se regressa a semelhante polirritmia de impacto que mais parece um gamelão de outra galáxia. O que se segue é mais calmo mas também ainda mais primevo, evocando o cântico da Balaena mysticetus por via da aplicação de um arco nas cordas do piano. Com grande efeito, aliás – poderia ser um violoncelo ou um contrabaixo a produzir estes sons. Outra faixa é uma catedral de harmonia, congeminada pela aplicação de “ebows”.
Só em ocasiões reconhecemos a criação de Cristofori enquanto tal, momentos esses que ora nos remetem para Musorgski e Bartok, ora para Cecil Taylor e, inclusive, Charlemagne Palestine. E isso só porque a nossa audição se faz com lembranças de outras escutas, pois o certo é que este é um caminho ainda em desbravamento, com cada quilómetro percorrido a surgir como algo de novo. Ingrid está na dianteira a cortar mato e apenas agora nos apercebemos disso.
Paradoxos “samplados”
“Living Theory Without Anedoctes”, de Nicolas Wiese, tem uma abordagem totalmente distinta, dada a influência dos conceitos da música acusmática. Sim, aquela que se produz para ser difundida por altifalantes e que parece estar nos antípodas da livre-improvisação. É com o imediatismo do “sampling” que Wiese age, no entanto, e de qualquer modo a maior parte das suas fontes sonoras são as proporcionadas por instrumentos convencionais, com destaque para as cordas de arco ou dedilhadas. Quando assim não acontece, os registos base para as suas manipulações provêm de objectos “tocados” instrumentalmente.
Quando se tem um sampler como ferramenta, está já implícito que se realiza reciclagem sonora, e mais uma vez é esse, aqui, o caso. O LP junta reformulações de projectos anteriores deste consagrado da electroacústica, incluindo dois que partilhou com Tom Rojo Poller e Thorsten Soltau. O processamento metamorfoseante desses materiais já existentes passa por recursos inusitados, como a regravação dos sons saídos de colunas de qualidade “lo-fi” cobertas por plástico, de modo a serem abafados e alterados, ou a reprodução às avessas de uma passagem particular. Os fins procurados justificam os meios.
As estruturas das montagens / composições são sempre surpreendentes, desafiando qualquer sentido de sequencialidade natural. Está nisso, aliás, a marca pessoal de Nicolas, o que implica, por exemplo, estranhas combinações de momentos “agitados” com outros “serenos”, relativizados pela igual ambiência claustrofóbica. Em consequência, evidencia-se uma diferente postura relativamente ao tempo ou à métrica, que são quase sempre ambíguos.
Esta ambivalência tem outros aspectos. Wiese não se limita a ser figurativo nas sonoridades instrumentais, é-o ainda na própria música: entre os seus concretismos pode emergir um inesperado padrão hip-hop. Este tipo de paradoxos é bem-vindo, demonstrando uma visão inclusivista e não-dogmática.
Retratos de um rio
O registo da Corvo Records mais alinhado com tendências definidas da música improvisada e experimental, e designadamente com o chamado reducionismo, é “Waterkil”, do alemão Axel Dorner e do francês de origem saudita Jassem Hindi. E como não podia deixar de ser, a execução musical aproxima-se do limiar do silêncio e há secções em que é silêncio – silêncio habitado, entenda-se, como se verifica pelos longínquos crepitares distinguíveis – o que se ouve. O curioso é que esse minimalismo extremo se conjuga com gigantescas erupções de som, confirmando que o “near silence” não é mais do que o outro pólo da estética noise.
Dorner surge neste disco com o seu novo trompete Firebird, construído por Sukandar Katardinata com uma interface electroacústica que coloca em circuito microfones, processadores e misturadora. Se se trata de um produto da tecnologia musical de ponta, já os dispositivos de Hindi denotam um aproveitamento inventivo da baixa (baixíssima, em alguns casos) tecnologia. Em linha com as suas máquinas estropiadas e alteradas, não dissemelhantes das “cracked everyday electronics” de Andy Guhl, estão os anti-“field recordings” que projecta nas tramas, gravados em cassete e contendo gravações da vida doméstica quotidiana.
O duo propõe que se entenda este álbum como uma série de retratos do curso do rio Moldava, e de facto há nele uma notável fluidez, quase com qualidades aquáticas. Se bem que esse correr de águas seja múltiplas vezes abruptamente interrompido, inclusive quando algo de especialmente cativante está a ocorrer. É como se Axel e Jassem não quisessem que se forme uma narrativa ou uma dramatização, partindo de imediato para outro enquadramento. A procurada tensão Impede qualquer fruição contemplativa.
Arame em bloco de gelo
O único CD Corvo sai em Maio próximo, mas já o ouvimos. Intitula-se “Esox Lucius” e junta os trompetes de Frantz Hautzinger e Petr Vrba (com o segundo também em “altifalantes vibratórios”), o clarinete e a voz de Isabelle Duthoit e o sintetizador modular de Matija Schellander. O conteúdo identifica-se com as práticas comuns da improvisação electroacústica, se bem que numa perspectiva de câmara.
Os manuais do “drone” e do “glitch” são aplicados a preceito, sem grandes surpresas. Mas também sem desiludir quem vem seguindo os percursos de Hautzinger e Duthoit, os dois elementos mais ilustres do quarteto. A editora apresenta a obra como «um arame incandescente a cortar um bloco de gelo»: eu não diria tanto, mas auditivamente até que se aproxima do que aí vem.
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Roars Bangs Booms (Corvo Records)
Alessandra Eramo
Alessandra Eramo (voz, electrónica)
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Come Ho Imparato a Volare (Corvo Records)
Ezramo
Alessandra Eramo (voz, piano, saltério preparado, sinos, gravações de campo)
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Living Theory Without Anedoctes (Corvo Records)
Nicolas Wiese
Nicolas Wiese (samples, electrónica)
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Waterkil (Corvo Records)
Axel Dorner / Jassem Hindi
Axel Dorner (trompete, electrónica); Jassem Hindi (electrónica, objectos amplificados, gravações de campo)
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Esox Lucius (Corvo Records)
Duthoit / Hautzinger / Schellander / Vrba
Isabelle Duthoit (clarinete, voz); Franz Hautzinger (trompete em quartos-de-tom); Petr Vrba (trompete, altifalantes vibratórios); Matija Schellander (sintetizador modular)
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карлицы сюита (Corvo Records)
Ingrid Schmoliner
Ingrid Schmoliner (piano preparado)