Filipe Felizardo: “Volume 2: Sede e Morte” (ThreeFour Records)
ThreeFour Records
Lançado numa edição em vinil pela Three:Four Records em Junho passado, “Volume 2: Sede e Morte – Guitar Variations for the Thirsty and the Dead” é o novo álbum de Filipe Felizardo. Sucede a “Guitar Soli for the Moa and the Frog” (editado pela Shhpuma em 2012), disco em que manifestava já desejo de aprofundar, de investigar, de construir nota a nota, momento a momento.
De “Sede e Morte” fazem parte duas sessões de gravação, datadas de 2012 e 2013 (e espaçadas por cerca de um ano), ambas animadas por um sentimento de reconhecimento e gratidão: chegado a este ponto da sua produção musical, o guitarrista residente em Lisboa continua a trilhar um caminho que é seu, porque também assume sem rodeios quem o tem vindo a acompanhar.
O lado A serve-nos três “covers” (segundo Felizardo) de composições de Peter Green, José Afonso e John Fahey. A crueza da gravação em bruto é função da sinceridade com que Felizardo se apresenta. O que o liga aos originais é mais do que apenas gosto estético. São memórias – tal como afirma, referindo-se a “Canção de Embalar” de José Afonso: «(…) o meu pai costumava cantá-la e tocá-la para mim.» E o que o liga também o deixa à vontade, como peixe na água.
Não tem complexos em destruir e construir. Não renovações ou re-estilizações do original, mas composições das composições. «Os discos são feitos de discos», assume. Na sua composição é impossível não reparar na influência das abordagens às guitarras de Earth e John Fahey: a natureza árida e ao mesmo tempo radiosa do “drone” do primeiro e a vagarosa ressonância do segundo.
O lado B é um primoroso exemplo do carácter etéreo e da tensão que atravessa toda a música de Felizardo. A paralisação súbita funciona como sinal de que se está perante uma beleza penetrante, absorvente, poderosa. Com uma base melódica em que a guitarra de Felizardo perfaz o papel de secção rítmica, o efeito protagonizado pela “slide” de Norberto Lobo é o acompanhamento perfeito: metal ressonante, quase que pequenas rajadas de vento, aleatoriamente intensas e espaçadas entre si, companheiras na contemplação do horizonte, imponente na sua aparente infinitude.
Escolhidos a pinças, o título – retirado de uma faixa intemporal de Carlos Paredes – e a capa – cuja ilustração é da autoria de Felizardo – assim o confirmam. Esta última é, aliás, irmã da de “Dance of Death” de John Fahey, e ambas são baseadas em xilografias do famoso livro medieval “Dance of Death” (1448), obra centrada na temática da morte e suas representações, localizado na Biblioteca da Universidade de Heidelberg.
“Sede e Morte” é um álbum de homenagem. Homenagem a Carlos Paredes, John Fahey, José Afonso e Peter Green (mentor dos Fleetwood Mac). Monstros da guitarra que Felizardo considera formarem algumas das bases artísticas de onde emerge a sua linguagem, em que o som e o silêncio têm igual valor; por outras palavras, em que o silêncio não antecipa, antes dissipa. Porque as influências são isso mesmo, e porque assumi-las sem rodeios é, no fim de contas, um posicionamento sincero perante os outros, músicos ou não-músicos.
Contemporâneo de Manuel Mota e de Norberto Lobo, Felizardo assume plenamente o movimento em contramão num mundo em que tudo é para ontem, tudo tem prazo de validade mínimo, cada segundo é quase uma questão de vida ou de morte.
Além da produção musical a solo, como membro de Bandeira Branca, e em efémeras parcerias com Margarida Garcia, Pedro Sousa, Riccardo Wanke, etc., desenvolve também trabalho de relevo no campo das artes plásticas, na autoria de vários cartazes de concertos e publicações de tiragem limitada de ilustração e fotografia. Há que o louvar duplamente: pelo caminho até agora percorrido, com identidade, com paixão e entrega; e pela coragem na sinceridade, num contexto em que a lógica que impera, coerciva em natureza e penetrante na intensidade, é a do novo, a do inédito, a do exclusivo; seja lá o que isso for.
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Volume 2: Sede e Morte – Guitar Variations for the Thirsty and the Dead (ThreeFour Records)
Filipe Felizardo
Filipe Felizardo (guitarra eléctrica); Norberto Lobo (guitarra slide - faixa B1)