André Carvalho: “Memória de Amiba” (TOAP / OJM)
TOAP / OJM
Em meados de 2011 surgiram na imprensa norte-americana inquietantes notícias dando conta de casos de infeção por uma amiba rara que tem o nariz como porta de entrada no organismo humano e que devora as mucosas nasais, prosseguindo os estragos em direção ao cérebro. As vítimas – geralmente residentes junto a águas paradas, em zonas de intenso calor – apresentavam sérios danos cerebrais, como alucinações e mudanças de comportamento.
A amiba é um protozoário unicelular que se caracteriza por não ter uma forma definida e por apresentar uma “memória” não muito desenvolvida quando comparada com as de outras criaturas. Sensivelmente na mesma altura, André Carvalho dava-se a conhecer com o muito recomendável “Hajime”, em quinteto, disco com impactos cerebrais bem mais estimulantes.
Dois anos depois – confessando o seu fascínio precoce pela ciência, em particular pela biologia – o contrabaixista lança “Memória de Amiba”, o seu segundo registo, de novo na TOAP/ OJM, onde não só confirma como amplia as excelentes indicações que deu na estreia, quer na vertente de instrumentista (na qual volta a exprimir-se a bom nível) quer, sobretudo, no papel de compositor e estratego sonoro.
Carvalho expande a formação base – tendência que se tem vindo a verificar em muitos grupos nacionais e que permite explorar novas possibilidades – para septeto, alargando a frente de sopros, com o experiente Jorge Reis nos saxofones soprano e alto e o repetente Zé Maria no saxofone tenor, e acrescentando um vibrafone (o superlativo Jeffery Davis altera decisivamente o xadrez instrumental). Estes são suportados por uma secção rítmica coesa que se completa com Óscar Marcelino da Graça ao piano (substituindo Filipe Melo), e os outros repetentes, Bruno Santos na guitarra e João Rijo na bateria.
Neste segundo disco em que volta a assinar todas as composições, Carvalho não abre mão de uma pena evidentemente balizada pelo cânone jazzístico, porém impregnando-o de diversos elementos pessoais (a “memória” a que alude), consolidando um processo que se expressa até nos enigmáticos títulos dos temas. Mantém-se intacta uma especial habilidade para esculpir melodias elegantes e estruturas sóbrias, reveladoras de um fundado conhecimento do idioma.
No arranjo multicolor de “Chamada Não Atendida” são utilizadas com mestria e bom gosto as pedras à disposição, destacando-se a primeira de excelentes intervenções de Davis e o solo “websteriano” de Zé Maria, com o contrabaixo pulsante a assumir-se como trave mestra. “Bleistift” (lápis, em alemão) desenvolve-se em torno de um motivo que se vai metamorfoseando, com Óscar Graça a demonstrar a fluidez do seu pianismo (muito interessante a empatia que se estabelece entre o trio piano-contrabaixo-bateria, deixando pistas para uma possível via a prosseguir no futuro).
As notas iniciais imprimem dramatismo a “Tadzio”, com piano, saxofone soprano e a guitarra cálida de Bruno Santos a entregarem-se a jogos de intimidade inspirados na personagem que corporiza os ideais de beleza e perfeição no incontornável “Morte em Veneza” de Thomas Mann. Davis introduz em modo onírico “Contemplações do Panteão”, composição de particular riqueza melódica que conta com uma prestação luminosa do cada vez mais relevante Ricardo Toscano, em saxofone alto.
João Rijo (baterista que é merecedor de um outro reconhecimento) dá o mote para o ritmicamente vibrante “Nóia do Gil”. Os devotos da saga “Guerra das Estrelas” não deixarão de reconhecer a dedicatória a Beru Whitesun Lars, a Tia Beru, que criou Luke Skywalker desde muito jovem (o que seria dele sem o leite azul?). André Santos está na guitarra e dá boa conta de si em profícuo diálogo com o saxofone.
Um disco tão diverso como consistente, que confirma os predicados de um músico com muito para enriquecer o jazz nacional.
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Memória de Amiba (TOAP / OJM)
André Carvalho
Jorge Reis (saxofones soprano e alto); Zé Maria (saxofone tenor), Jeffery Davis (vibrafone); Bruno Santos (guitarra elétrica); Óscar Marcelino da Graça (piano); André Carvalho (contrabaixo); João Rijo (bateria) + Ricardo Toscano (saxofone alto); André Santos (guitarra elétrica)