Splatter & Rafal Mazur: “Cloudseed” (Citystream)
Citystream
Sementes de nuvens serão apenas pretextos algo improváveis para discorrer sobre uma matéria tão frágil e ao mesmo tempo tão aprazível como o novíssimo disco dos Splatter, um quarteto londrino encabeçado pelos sopradores Noel Taylor e Anna Kaluza. Neste trabalho, intitulado “Cloudseed”, a secção rítmica original da banda foi trocada pelo guitarrista português Pedro Velasco e pelo baterista Tom Greenhalgh. A eles juntou-se ainda, como convidado especial, o baixista polaco Rafal Mazur. Trata-se do terceiro álbum do grupo, lançado pela Citystream, etiqueta pessoal do clarinetista britânico que nos visitou recentemente.
Ao ouvir “Cloudseed” ocorrem-me imagens de sonoridades passadas e presentes nas mais diversas longitudes. O material das 13 peças do disco evoca súbitos desejos de escutar a ânsia das florestas, desejos de as salvar dos incêndios absurdos do ruído, havendo todo um universo industrial (digital) que se equaciona e que se rejeita. Felizes os que chegaram até aos dias de agora para poderem reviver as desordens de uma inocência sem idade e sem dogmas.
Aquilo que os Splatter fazem é uma improvisação livre que se aproxima do jazz (e do free jazz), do rock e da música contemporânea, sem ser nenhuma destas coisas. É quase como se, de repente, o povo canterburiano do Rock in Opposition se encontrasse com a ala mediterrânica dos impressionistas e neoclassicistas. Na verdade tropeçamos amiúde em Théodore Dubois e Manuel de Falla nesta combinação sonora que o colectivo nos oferece. Ao mesmo tempo conseguimos ouvir ecos da América cinzenta personificada por gente como Curtis Hasselbring ou Brad Shepik.
Não se pense, porém, numa manta de retalhos ao deparar com tão alargado leque de referências, mas antes num minucioso e consciente processo de impregnação caudalosa, como se beber influências daqui e dali fosse um acto tão vital como, por exemplo, respirar. O imenso deslumbramento da música que alguns dos grandes e despretensiosos criadores de hoje fazem tem este admirável prodígio: apelar a todo um memorial de pérolas que já vimos (ouvimos) brilhar algures no tempo.
Apreciar este disco pode ser um exercício tão curioso e agradável como folhear um álbum de fotografias antigas de família, sendo que está garantida igualmente uma boa dose de prazer melómano.
O som de Taylor é cristalino e delicado, mantendo sempre uma certa dose de açúcar nos clarinetes, mesmo nas passagens mais arrojadas, sobretudo no soprano. Quando se dedica ao baixo, o seu carácter exprime-se essencialmente de forma pendular. O saxofone alto da berlinense Anna Kaluza traduz a plenitude daquilo que pode ser a linguagem moderna do jazz europeu. A guitarra do nosso compatriota enche todos os recantos do álbum com um rendilhado ambiental pretensamente discreto e verdadeiramente assertivo. Mazur mostra-se igual a ele mesmo, exibindo um baixo exemplar sempre mais melodioso do que rítmico. A bateria de Greenhalgh funciona como uma espécie de “boomerang”, estando sempre quase aquém e quase além do pulsar do tempo. Toda esta conjugação, esta movimentação sonora, é brilhantemente paradoxal, tão possível como conseguir sonhar acordado.
Ao contrário do que alguns profetas da desgraça proclamam a respeito de uma alegada crise de criatividade a nível musical, conseguimos encontrar aqui provas de uma inesgotável fonte de inovação, aliadas a um excelente gosto e a uma óptima qualidade de produção. Mais do que imitar, estes músicos trataram de reciclar e reinventar processos antigos, construindo assim uma inevitável evolução das formas que nos apresentam. E esta sempre foi a maior virtude dos grandes artistas de todos os tempos. (www.cdbaby.com/cd/splatterwithrafalmazur)
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Cloudseed (Citystream)
Splatter & Rafal Mazur
Noel Taylor (clarinetes soprano e baixo); Anna Kaluza (saxofone alto); Pedro Velasco (guitarra eléctrica); Tom Greenhalgh (bateria) + Rafal Mazur (guitarra baixo acústica)