Daniel Bernardes: “Nascem da Terra” (TOAP/OJM)
TOAP / OJM
Em entrevista recente à prestigiada revista norte-americana Downbeat, Keith Jarrett afirma que «não existe jazz europeu». A questão não é nova e é recorrente. Mesmo entre nós, muito se tem discutido em torno da problemática: haverá um jazz português?
Várias têm sido as posições esgrimidas por musicólogos, críticos e músicos, no sentido de estabelecer até que ponto o “ser” e o “estar” portugueses são passíveis de serem traduzidos, com relevância criativa, pela linguagem do jazz. Ao longo dos anos, muitos empreenderam, de forma mais direta ou filtrada, esse cruzamento, sobretudo pianistas: Pinho Vargas, Laginha, Esteves da Silva, Sassetti e, mais recentemente, Resende e Raposo.
Os mais atentos certamente já repararam no nome de um outro pianista, cuja visibilidade tem vindo a crescer, e que agora lança o seu registo de estreia: Daniel Bernardes. Em “Nascem da Terra” o músico alcobacense assume, logo no título, as influências exercidas pelo património musical português na construção da sua própria identidade enquanto compositor. Esse interesse foi-lhe, em boa parte, incutido pelo autor de “Almas” e “Memórias de Quem”, seu professor na Escola Superior de Música de Lisboa (ESML), onde se licenciou em 2011.
Acompanham Daniel Bernardes o contrabaixista António Quintino – antigo colega de licenciatura –, que com o seu som encorpado marca de forma indelével a química global da formação, e Joel Silva – amigo e cúmplice musical desde a adolescência –, baterista versátil que se molda bem a vários contextos, apesar de ser notória a sua propensão para trabalhar com pianistas.
As composições convocam elementos do jazz, da música erudita e da rica e diversificada tradição portuguesa, revelando uma escrita em que, por um lado, as peças de recorte mais jazzístico apresentam texturas clássicas e, por outro, as peças de pendor mais clássico denotam claras impregnações do idioma do jazz.
O programa reúne uma seleção de peças que o pianista foi compondo ao longo do seu processo de formação, que exibem a espontaneidade e a frescura dos anos de juventude. A maioria das peças foi estreada na Casa da Música em 2010, sendo que depois o trio, apesar dos pontuais concertos, não mais trabalhou de forma continuada até à gravação.
O pianismo de Daniel Bernardes prima por um acentuado poder melódico e um profundo lirismo, bem presentes na tranquilidade telúrica da “Suite Kawasaki” – dividida nas secções “Caminho”, “Origem”, “Nascer” e “Amanhã” –, sublinhada pelo violoncelo de Raquel Merrelho.
Mais dinâmicos, “Nascem da Terra” e “Humberto” mostram a formação no auge da empatia, sendo de salientar as notáveis prestações de Quintino. “Sara” é um balada de sabor clássico (na aceção jazística) na qual Joel Silva prima pela suavidade e pela discrição. “Os Prelúdios Possíveis n.º 2” encerra o disco ao jeito de canção de embalar.
Uma bela estreia, colocando a fasquia alta para o que virá a seguir.
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Nascem da Terra (TOAP / OJM)
Daniel Bernardes
Daniel Bernardes (piano); António Quintino (contrabaixo); Joel Silva (bateria) + Raquel Merrelho (violoncelo)