Os discos da consagração

Dave Rempis

Os discos da consagração

Aerophonic

Rui Eduardo Paes

O saxofonista lançou na sua própria etiqueta dois álbuns que definitivamente o projectam como uma das figuras de Chicago a ter em maior conta. De valor emergente passa agora a ser um consagrado, saindo da sombra de Ken Vandermark. 

A grande visibilidade internacional de Ken Vandermark tem tido frutos que vão muito para além de um conhecimento mais generalizado dos seus muitos projectos: os músicos que com ele tocam e uma boa parte da realidade musical de Chicago têm, graças a ele, ou graças ou interesse que o saxofonista e clarinetista vem suscitando, tido uma projecção inusitada para um subgénero musical de minorias como é o jazz de “vanguarda”.

Um desses beneficiados é Dave Rempis, que com Vandermark colabora na Territory Band e no Resonance Ensemble. Até a institucional revista Down Beat deu por ele: foi votado como “rising star” no saxofone alto, e enquanto baritonista já evoluiu do estatuto de valor em ascensão para o de “established talent”. Claro que o reconhecimento que está a ter deriva igualmente de ter emparceirado com figuras de topo como Roscoe Mitchell, John Tchicai, Joe McPhee, Peter Brotzmann e Nels Cline (o guitarrista da banda rock Wilco que também gosta de improvisar), mas o fenómeno de popularidade chamado Ken Vandermark abriu-lhe mais portas, e mais depressa.

Poderá também ter contribuído para tal a importância que Rempis foi conquistando em várias frentes da criação sonora chicagoana por ser um organizador de eventos e um programador. É um dos responsáveis do evento maior do rock “indie” a nível mundial, o Pitchfork Music Festival, é também um dos dinamizadores do colectivo Umbrella Music, que faz a ligação entre os músicos de jazz e os espaços locais e que promove anualmente o Umbrella Music Festival, e a sua actividade de bastidores vai resultando em muita da oferta que por ali surge.

Ou seja, tornou-se num elemento-chave para a difusão das práticas musicais mais interessantes da Cidade do Vento, independentemente da sua filiação idiomática. É muito mais do que um homem do jazz, quero eu dizer… 

Cru e áspero 

Mas é jazz que toca, e é jazz o que a editora que criou, a Aerophonic, oferece no seu catálogo. Com a sua participação pessoal, como é natural que aconteça. Com esse selo foram publicados os discos de duas formações que lidera, respectivamente “Boss of the Plains”, com os Wheelhouse, e “Phalanx”, com o Rempis Percussion Quartet.

Wheelhouse é um trio sem bateria, ausência que determina o tipo de abordagem que encontramos. O alto e o barítono são os saxes que utiliza na companhia do vibrafonista Jason Adasiewicz e de um contrabaixista de Boston que recentemente se instalou em Chicago, Nate McBride.  Se o figurino instrumental fazia esperar uma música de cunho camerístico e intimista, o que o CD nos oferece é bem distinto: nas alturas em que o grupo quase se aproxima desse modelo, o que ouvimos reproduz uma óbvia influência da música livremente improvisada – inclusive com utilização de técnicas extensivas. Regra geral, o registo caracteriza-se, no entanto, por uma aspereza e uma formulação crua que lembram o quarteto de Karl Berger com o saxofone de Carlos Ward nos idos anos 1960. O que significa que a contribuição de Adasiewicz é fundamental para os resultados obtidos, e lá está ele a determinar os espaços com os seus acordes (falsamente) cristalinos.

Com a substancial diferença de que o trabalho do líder tem mais de Ornette Coleman do que do soprador panamiano que anos depois substituiria o falecido Jimmy Lyons na Unit de Cecil Taylor. Mas o legado Berger / Ward está todo lá: mesmo nas passagens de maior densidade e energia há um ascetismo que não é comum encontrar nas produções da metrópole norte-americana também conhecida pelos seus arquitectos.

Se tal opção historicamente referenciada tem a vantagem de desarrumar as tramas (até o vanguardismo mais assumido de Chicago tende a ser “redondo”, como sabe quem vem seguindo o percurso discográfico de Vandermark), o certo é que este disco não contempla grandes estratégias de sedução e obriga a digestões mais difíceis. Tocar menos, mais devagar e com menor volume não significa imediatamente uma incursão pelo “bonito” e pelo lirismo, como fica aqui cabalmente demonstrado. 

Alimentado a bop

 

Outra coisa é “Phalanx”, com um Percussion Quartet assim designado apenas porque inclui dois bateristas, Tim Daisy e Frank Rosaly. O quarto elemento é como que um “atractor estranho”, se quisermos percepcionar as propostas feitas neste duplo álbum pelo prisma da da “caosmática” – o contrabaixo do norueguês tornado texano Ingebrigt Haker Flaten. De novo o que se detecta é o propósito de continuar um determinado conjunto de parâmetros, no caso os do início da estética free na transição dos anos 50 para os seguintes, quando ainda era bem audível a ascendência do be bop.

Aliás, o “walking bass” de Flaten não deixa margem para dúvidas: não se trata de free bop, aquele híbrido que parece dominar o “novo” jazz dos EUA, mas é um free indubitavelmente alimentado a bop. E no entanto… no entanto as atmosferas criadas e sempre mantidas vão beber a outro quadro patrimonial: o da geração “loft”, que por acaso até foi um fenómeno nova-iorquino. Por vezes, é como se reencontrássemos em Rempis (que aqui junta o tenor às suas opções tímbricas) um Roscoe Mitchell bem mais jovem e ainda não tentado pelas suas recentes inclinações para a música erudita.

Esta é uma edição mercuriana, cheia de fulgor e raiva, muito sustentada em batimentos “swingantes”  e em polirritmias, com solos de desmesurado expressionismo – daqueles que, num concerto, facilmente levantam o público das cadeiras. E, de facto, trata-se de gravações ao vivo, em Milwakee (CD1) e na Antuérpia (CD2). Mas não se repete o exibicionismo egotista que minou muito do free jazz: tudo vai decorrendo num plano colectivo e de partilha. Conjugação e interacção são os factores de mobilidade equacionados.

É um trabalho que nos pisca o olho e que nos conquista poucos minutos depois de entrarmos na sua narrativa. As peças são longas, muito longas, entre os 26 e os 48 minutos, mas não nos cansam: há sempre alguma coisa nova a acontecer, uma peripécia, um desvio implausível com um regresso igualmente inesperado, uma resolução fulgurante, uma ideia que surge vinda do nada e que semeia outras ideias. Umas porque se esgotam de tão exploradas, outras porque se contrariam ou imediatamente se metamorfoseiam.

Não é claro se os quatro intervenientes seguem alguma estrutura ou frase pré-estabelecida, mas o que aqui vem é um exemplo de excelente improvisação idiomática. E representa a definitiva consagração de Dave Rempis, um saxofonista que ganhou por mérito próprio um lugar sob a luz dos holofotes.

  • Boss of the Plains

    Boss of the Plains (Aerophonic)

    Wheelhouse

    Dave Rempis (saxofones alto e barítono); Jason Adasiewicz (vibrafone); Nate McBride (contrabaixo)

  • Phalanx

    Phalanx (Aerophonic)

    The Dave Rempis Percussion Quartet

    Dave Rempis (saxofones alto, tenor e barítono); Ingebrigt Haker Flaten (contrabaixo); Tim Daisy, Frank Rosaly (baterias)

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