João Pedro Brandão
Investigar é preciso
Conhecido sobretudo pelo seu trabalho com o Coreto Porta-Jazz e a Orquestra Jazz de Matosinhos, o saxofonista, compositor, arranjador e docente é um dos mais talentosos músicos oriundos da fervilhante cena portuense. A jazz.pt foi ao seu encontro para saber mais sobre o seu percurso e os planos que lhe vão na cabeça.
No que ao jazz diz respeito, o ano discográfico de 2012 ficou marcado em Portugal por “Aljamia”, excelente registo da responsabilidade de um coletivo intitulado Coreto Porta-Jazz, que reúne alguns dos mais importantes (e jovens) músicos da vibrante cena portuense. Ao leme da formação está o saxofonista, compositor, arranjador e professor João Pedro Brandão (n. 1977, Porto), cujo talento está em franco processo de evolução e de merecido reconhecimento.
Em “Aljamia” são trabalhados de forma criativa e estimulante sons tradicionais da multicultural bacia do Mediterrâneo. O interesse por estas músicas surgiu quando refletia nas raízes mais profundas da música portuguesa: «Foi precisamente a pensar nas influências que temos que cheguei à música do Mediterrâneo», começa por dizer o músico.
«Pensar que a música que faço é portuguesa, pensar porque é que a música portuguesa é como é, que influências teve, de onde vem.» Indagações fundamentais que estiveram na base de todo um período de busca e investigação, começando pelos vizinhos mais próximos. «Interessei-me pelos vários mundos que encontrei, tentei perceber os conceitos, mas não tentei tocar as suas músicas», diz. Neste processo identificou laços e detetou proximidades: «Este mundo musical é vasto e diversificado a todos os níveis, por vezes difícil de entender, mas, de alguma forma, parece-nos sempre algo familiar», completa.
Na música que desenvolve com o Coreto nota-se um particular cuidado na gestão dos equilíbrios entre as estruturas ou os arranjos e a liberdade dos seus membros enquanto solistas e improvisadores. «Neste repertório há muita música escrita, mas há sempre espaço para a interação e a improvisação. Não faria sentido de outro modo», afirma.
É aqui que lhe perguntamos onde entra o jazz no seu processo criativo. «Para mim, o jazz é mesmo isso – uma forma de fazer música, que vive da interação dos músicos, em que nunca se apaga a personalidade dos músicos que a tocam, não deixando o grupo de ser a coisa mais importante.» Mas o conjunto é, para si, mais do que a soma das partes: «Outros músicos fariam com que esta música soasse de maneira completamente diferente.»
João Pedro Brandão concebe o Coreto não como um reduto exclusivo para as suas composições, mas também como palco para a interpretação de obras alheias. «O Coreto surgiu da minha iniciativa, mas desde logo percebi que seria mais interessante e rico disponibilizar o ensemble para outros compositores». A formação é assim vista pelo seu líder e pelos músicos que o constituem como um lugar para a criação de repertório original. «Um grupo deste tamanho não é fácil de juntar, pelo que essa parte já está facilitada», acrescenta.
O Coreto Porta-Jazz já realizou concertos com outros repertórios, da autoria de vários elementos da banda e de outros músicos que mostraram interesse em escrever para a formação, incluindo um preenchido integralmente com músicado guitarrista AP (António Pedro Neves).
O outro lado existe
Apesar de não ter antecedentes musicais na família, a ligação ao universo dos sons esteve presente desde o início na vida de João Pedro. A mãe sempre gostou de cantar – tendo mesmo começado a estudar canto lírico –, o pai e o irmão são melómanos. Isso fez com que crescesse rodeado de discos e cassetes.
Iniciou os estudos formais de música aos 7 anos, começando pela flauta de bisel e depois pela transversal. Explica-nos a razão da escolha: «A flauta transversal surgiu naturalmente porque estudava flauta de bisel... foi um “upgrade” que me entusiasmou bastante, pelo menos durante algum tempo», refere. Mas o que realmente gostava – realça – era de ouvir os discos que havia lá em casa: «Música brasileira e portuguesa, e muito jazz.» Discoteca que, diga-se, continua a crescer pela mão do seu pai.
Um disco em especial marcou-o nesse período de descoberta e espoletou a sua procura: “Ascenseur Pour L'Échafaud”, de Miles Davis, «mais um da prateleira lá de casa», do qual começou a «tentar sacar umas frases».O contacto com o jazz fê-lo reacender o interesse na prática musical. Nessa altura já estava na Faculdade – a estudar Engenharia Química – e começou a tocar em combos com o pianista Paulo Gomes e, mais tarde, a ter aulas de saxofone e improvisação com Mário Santos.
«O saxofone era uma paixão antiga que eu sabia estar mesmo ali ao meu alcance, por já estudar flauta», conta.Foi só uma questão de decidir comprar uminstrumento. «Essa decisão coincidiu com a de me dedicar seriamente à música e com as aulas que tive com o Mário». «Além disso, nos combos, precisava de um instrumento que fizesse mais barulho!», graceja.
Entre as suas principais referências estão figuras históricas do jazz como Charlie Parker, Miles Davis, Thelonious Monk, John Coltrane, Dexter Gordon, Hank Mobley, Art Pepper e Lee Konitz. Da atualidade, salienta Rich Perry como o seu saxofonista preferido e não esconde a admiração por Maria Schneider, Jason Lindner, Omer Avital, Guillermo Klein, Dave Douglas, Uri Cane, Ethan Iverson e Chris Cheek. No plano nacional elege os cantautores José Mário Branco, Sérgio Godinho, Fausto e Zeca Afonso e na música do Brasil cita os nomes de Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Djavan. Björk e Stevie Wonder são outras influências que menciona.
Depois de se licenciar pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, João Pedro Brandão exerceu esta atividade durante dois anos. De seguida comprou um saxofone e concorreu à Escola Superior de Música, Artes e Espetáculo (ESMAE) do Porto. Perguntámos-lhe se guarda alguma réstia da sua formação de engenheiro. «A minha relação atual com a engenharia não tem nada de concreto, para além da forma como me organizo no meu trabalho, ou como olho para o mundo e tendencialmente tento ser o mais pragmático possível na análise dos problemas», salienta. Considera que a música puxa pelo seu “outro lado”, «mais intuitivo e ligado às emoções».
Somar e partilhar
Quando decidiu concorrer à ESMAE, esta era a única escola superior do País com uma licenciatura em jazz. Em 2012, concluiu o Mestrado na mesma escola, instituição que considera, por isso, representar «o início de toda esta aventura e o meu comprometimento com a música» Lá encontrou «a ajuda e a liberdade necessárias para fazer o trabalho que tinha em mente e que viria a resultar no disco “Aljamia”».
Estudou Composição com Carlos Azevedo e Paulo Perfeito, «que, para além de excelentes músicos, são pessoas muito experientes e inteligentes que me incentivaram e me ajudaram muito a perceber como poderia concretizar as ideias que tinha», reforça.
Na ESMAE foram também seus professores José Luís Rego, Mário Santos, Nuno Ferreira, Michael Lauren, Pedro Guedes e Telmo Marques, entre outros. João Pedro Brandão considera que a passagem pela ESMAE foi uma «ótima experiência», sobretudo porque foi«exposto a “n” maneiras de pensar a música, nomeadamente o jazz...» Lá conheceu também grande parte dos músicos e amigos com quem trabalha: «Foi lá que formámos o grupo de Lucía Martínez e do AP, por exemplo.»
Nessa fase marcaram-no igualmente os “workshops” realizados em parceria com o Guimarães Jazz, como os orientados por Aaron Goldberg, Joe Martin, Marc Miralta e Mark Turner ou por Jason Lindner, Omer Avital, Daniel Freedman e Bill McHenry.
Em 2006, João Pedro Brandão participou na 4.ª Festa do Jazz do São Luiz, integrando o Sexteto de Jazz da ESMAE, com o qual arrebatou os prémios para Melhor Solista e Melhor Combo. Recorda o desejo de superação que o invadiu: «Lembro-me do empenho com que ensaiámos para que o que levámos fosse uma imagem justa do trabalho que se fazia na ESMAE.»
Hoje, vê este tipo de concursos com outros olhos, como «algo sem muito sentido».«Creio que a arte deva ser feita por outras razões», diz. A competição, vinca, não deve ser uma delas, porque «competir implica eliminar». O músico prefere pensar de outra forma: «É na soma e na partilha que a arte, tal como a ciência, mais ganha.» «Qualquer ato criativo, quando genuíno, é o melhor.»
No ano seguinte, o músico portuense aproveitou o programa Erasmus e estudou na Bélgica durante cerca de meio ano, tendo tido a oportunidade de trabalhar, entre outros, com Frank Vaganeé e Dré Palemaerts. Considera esta como «uma fase de “retiro”».«Estar fora dá-nos mais tempo – longe dos “compromissozinhos” diários tive tempo a sério para estudar!»
Durante esse período teve oportunidade de conhecer «muitos e bons músicos, que não estão acomodados e fazem tudo para tocar com muita gente», aproveitando a centralidade do país, «que permite uma circulação das pessoas pela Europa que para nós ainda é difícil», refere o saxofonista. Regressou a Portugal «com muita vontade de fazer coisas».
João Pedro Brandão prefere não destrinçar as facetas de instrumentista e de compositor. «Não penso muito nisso, penso que sou músico e que compor, tocar, improvisar, partilhar, são várias facetas da mesma coisa.» Afirma que procura fazer música «livre de pré-conceitos».«É um lugar-comum, mas é mesmo algo em que penso: não acredito num produto artístico quando se parte a pensar no efeito que ele vai ter em algo ou alguém», acrescenta.
Procura que a música que faz seja o resultado das suas «vivências musicais e pessoais». «Ao fazer música adoro a sensação de me surpreender com o resultado final e acho fantástico quando olho para uma música que fiz e não faço ideia de como ali cheguei.»
Pólo agregador
Em julho de 2010, João Pedro Brandão, juntamente com Eurico Costa, um dos fundadores da Associação Porta-Jazz, concretizou uma ideia que «andava a ser falada há algum tempo entre os músicos do Porto». A necessidade da criação desta associação surgiu da falta de atividade dos músicos na Invicta. Recorda o músico: «Não havia concertos nem sítios onde tocar, tinha havido um desinvestimento da cidade no jazz e já nem o Festival de Jazz do Porto existia.»
A ideia passava por a Aassociação se constituir como um pólo agregador dos músicos de jazz da cidade ou que lá estavam a estudar, «gente que estava a ser formada e cada vez mais músicos, mas que não encontravam motivos para cá ficar». A Associação Porta-Jazz pretendeu criar um espaço «onde os músicos pudessem desenvolver e mostrar os seus projetos, evitando que estes morressem à nascença», assevera.
Brandão afirma que, antes de surgir o espaço físico, houve que «mostrar que o merecíamos e fomos trabalhando e mostrando-nos onde conseguíamos e podíamos». «Criámos o festival, organizámos ciclos de concertos, juntámos as pessoas, apresentámos os músicos ao público... que afinal existia.» De então para cá a associação não parou: «Comprámos um piano e batalhámos por um local onde o pudéssemos colocar e lá fazer os concertos e ensaios.»
Depois foi criada a editora Carimbo Porta-Jazz e mais recentemente a rádio “on-line”. Para além da qualidade da música é colocado um especial cuidado no grafismo e na apresentação dos discos, todos eles verdadeiras obras de arte. «As edições surgiram desta forma porque o mercado do disco físico é praticamente inexistente. Assim, resolvemos fazer um objeto especial para quem o quer “mesmo”, normalmente quem vai aos concertos», explica João Pedro Brandão.
Para fazer face às dificuldades com que a generalidade dos portugueses e as pequenas associações se debatem atualmente, preconiza que há que aligeirar a estrutura e minimizar os custos de produção das iniciativas desenvolvidas. «O princípio da associação foi sempre concentrar o nosso esforço no incentivo à criação artística, contrariando a lógica dos grandes “centros culturais” que gastam grande parte do seu orçamento na manutenção da máquina», salienta. Daí a opção por formatos de concerto que, simultaneamente, reduzam custos e aproximem o público dos músicos. «Em espaços pequenos e sem amplificação o público sente o som real dos instrumentos e a energia dos músicos», afirma.
Para os tempos mais próximos, as principais linhas de ação da Associação Porta-Jazz passam por «continuar a dar espaço para os projetos serem desenvolvidos e mostrados, melhorando as condições em que esse trabalho é feito» e – acrescenta Brandão – também por «melhorar os nossos canais de divulgação, não tanto em termos de alcance, mas sempre apostando no conteúdo: canal YouTube, rádio, site».
Corte e costura
Outra das facetas mais visíveis do trabalho de João Pedro Brandão decorre do facto de integrar também a Orquestra Jazz de Matosinhos (OJM), no âmbito da qual tem gravado e tocado com nomes grados do jazz internacional e nacional como Lee Konitz, Ohad Talmor, Kurt Rosenwinkel, Maria João e João Paulo Esteves da Silva, para só nomear alguns. Entende a sua ligação à OJM sobretudo como «um local onde se aprende muito». «Interagir com os próprios músicos da orquestra, conhecer os arranjos e tocar com músicos incontornáveis que fazem a história do jazz são experiências únicas», assevera o músico.
Do seu trabalho com a OJM salienta como momentos particularmente marcantes o ter partilhado o mesmo palco de Lee Konitz, ter tocado em Nova Iorque no mítico Birdland com Kurt Rosenwinkel, e – acrescenta – «com músicos que venero na plateia».
Para além do Coreto e da OJM, também integra atualmente o quinteto de AP, o Lucía Martínez Cuarteto, um trio com o contrabaixista Demian Cabaud e o baterista Marcos Cavaleiro, para além de outros projetos, ainda que numa fase embrionária, nomeadamente com o pianista Paulo Gomes.
Questionado sobre se está nos seus planos gravar como líder em formações mais pequenas, ou se prefere os ensembles de média/grande dimensão, Brandão responde afirmando que pretende «continuar a fazer música das mais variadas formas e registá-la».
O seu processo criativo passa por desenvolver uma ideia geral de base, «um conceito sobre o qual começo a congeminar». Depois senta-se para explorá-lo, seja na flauta (ou no saxofone), no piano ou no papel: «Aponto várias ideias, organizo-as, faço corte e costura e deixo o meu gosto fazer as decisões.» Neste processo considera a improvisação como «a base de tudo».
João Pedro Brandão é também professor de saxofone, flauta e combo, para além de dirigir a “big band” de alunos da Escola de Música Valentim de Carvalho, no Porto. A atividade docente é algo que lhe agrada. «Gosto de ensinar e de mostrar aos alunos a minha maneira de pensar a música, mas cada vez mais tento não a impor», afirma.
Para si, «estudar, procurar, investigar é essencial». E fazê-lo numa escola «acelera alguns processos de descoberta». «As escolas ajudam-nos sobretudo a adquirir hábitos e modos de trabalho, a lidar com prazos e a dar-nos ferramentas», salienta. «Quando chegam ao final de um curso superior e começam a trabalhar, muitos dos alunos têm a sensação de que sabem muito pouco, mas dispõem das ferramentas para procurar o que precisam.» O músico defende que, depois, é necessário descolar, «cabendo a cada um procurar a sua própria identidade».
Brandão carateriza o atual panorama do jazz nacional como estando a atravessar uma fase de mudança, existindo «muitos nomes novos com vontade de mostrar o seu trabalho e com propostas muito diferentes». Este cenário motiva o aparecimento de novas formas de mostrar a música, «novos festivais, novas editoras, novos espaços em contextos diversos».
Considera, no entanto, que «a circulação ainda é pouca, nomeadamente entre Norte e Sul». E avança uma explicação para este estado de coisas: «É caro para os músicos.» Por outro lado, diz, «como há mais músicos, acaba também por não ser “necessário” circular – assiste-se a uma valorização inevitável da “economia local”, o que também estava a faltar», complementa.
O mentor do Coreto Porta-Jazz tem a noção de que, se vivesse em Lisboa, o seu trabalho teria outro tipo de visibilidade. «Sem dúvida que chegar aos meios de comunicação social massivos é mais fácil quando se está perto deles. Se isso é bom ou mau, não sei, não é isso que me move», afirma. Gosta sobretudo de fazer música com pessoas com quem se identifica pessoalmente, «com tudo o que isso tem de bom e de mau».
Nos próximos tempos espera continuar a fazer música e a «lutar pelas condições em que o jazz é feito em Portugal, nomeadamente no Porto, com a mesma energia e a mesma vontade».
Para saber mais
www.ojm.pt/pt/a-orquestra/joao-pedro-brandao/
http://portajazz.com/carimbo/catalogo/coreto/
Discografia
João Paulo Esteves da Silva & Orquestra Jazz de Matosinhos: “Bela Senão Sem” (TOAP/OJM, 2013)
Coreto Porta-Jazz: “Aljamia” (Carimbo Porta-Jazz, 2012)
AP Quinteto: “6e5” (TOAP/OJM, 2011)
Maria João & Orquestra Jazz de Matosinhos: “Amoras e Framboesas” (Universal, 2011)
Kurt Rosenwinkel & Orquestra Jazz de Matosinhos: “Our Secret World” (Wommusic, 2010)
Lucía Martínez Cuarteto: “Soños e Delírios” (Nuba Records, 2008)
Lee Konitz-Ohad Talmor Bid Band feat. Orquestra Jazz de Matosinhos: “Portology” (Omnitone, 2007)