Uma certa portugalidade
O grupo Sul reúne três músicos consagrados, dois deles ligados ao jazz – o contrabaixista Bernardo Moreira e o pianista Luís Figueiredo – e um outro ligado ao fado, Bernardo Couto (guitarra portuguesa). O trio desenvolve uma música instrumental original, entre o jazz, o fado e a música portuguesa – na senda de outros cruzamentos, desde os encontros pioneiros e lendários de Amália Rodrigues com Don Byas e Charlie Haden com Carlos Paredes. O trio editou o seu disco de estreia – homónimo – em novembro do ano transato, tendo reunido composições de três pianistas nacionais (Bernardo Sassetti, Mário Laginha e João Paulo Esteves da Silva), além de temas originais e outros tradicionais. Estivemos à conversa com os três músicos, que nos esmiúçam este projeto (e não só).
Os três músicos começaram por tocar juntos no grupo da Cristina Branco. Como surgiu a ideia de criar este grupo?
LF: Este grupo surgiu inicialmente num concerto em duo (Luís Figueiredo e Bernardo Moreira). Estávamos em Copenhaga a tocar com a Cristina Branco e tivemos oportunidade de fazer um pequeno concerto na véspera, na Koncertkirken. Acontece que o Bernardo Couto viajava apenas no dia seguinte, e por isso esse concerto aconteceu em duo. No ano seguinte voltamos a fazer esse concerto, agora com os três elementos.
E porquê este nome, Sul?
BC: A razão principal tem a ver com o facto de Portugal ser um país do sul da Europa, com uma cultura musical de origem mediterrânica muito forte. Nós enquanto trio queremos enquadrar a nossa musica neste contexto cultural, no qual crescemos e nos desenvolvemos como músicos.
No vosso disco trabalharam composições de três pianistas (Bernardo Sassetti, Mário Laginha e João Paulo Esteves da Silva), além de temas originais e outros tradicionais. Como foi o processo de seleção de repertório?
BM: Não foi nada muito pensado previamente. Fomos escolhendo em função daquilo que achávamos que se poderia adequar ao nosso som. Algum repertório tradicional fez imediatamente sentido, sempre com o enorme desafio de lhe conferir uma espécie de vida renovada. A escolha dos 3 pianistas não foi uma total coincidência, mas quase. O “Certeza” do João Paulo e o “Promessas” do Bernardo são temas com um carácter muito português. São dois belíssimos exemplos de uma certa portugalidade, como agora se diz. Posto isto, achámos que o Mário teria de estar também presente, com o seu “Coro das Meninas”. Os originais são talvez o embrião daquilo que é a nossa vontade que é a de escrever, cada vez mais, propositadamente para o trio.
O trio desenvolve uma música instrumental original, entre o jazz, o fado e a música portuguesa. Como chegaram a este som específico? E como preferem designar a vossa música?
LF: Referimo-nos normalmente à música que fazemos como música instrumental portuguesa. Claro que não está representada toda a música instrumental feita em Portugal, mas tocamos aquela que constitui uma espécie de denominador comum aos três elementos do grupo. Ouve-se o jazz, ouve-se o fado, ouve-se a improvisação livre, entre outras coisas. Inclusivamente, nalguns concertos tocamos música lusófona de outras paragens. Ao mesmo tempo, era importante para nós ter música original ao lado de composições já existentes.
Contam já com diversas apresentações ao vivo. Como sentem que a vossa música tem sido recebida?
BC: Muitíssimo bem recebida, por vezes de forma bastante surpreendente, tendo em conta o facto de estarmos num contexto de musica instrumental. A verdade é que este trio desperta o interesse do público e consegue fixar a sua atenção.
Particularmente, o Bernardo Moreira tem explorado outras ligações entre jazz e a música portuguesa também nos projetos “Entre Paredes” e “Cantigas de Maio”. O que distingue cada um destes projetos? O que é que os aproxima e aquilo que os diferencia?
BM: Pergunta muito interessante mas, para mim, de difícil resposta. Há muito que me interessa o universo da música portuguesa, com todas as formas que a caracterizam. Gosto de pensar que é muito mais o que os une do que o que os separa, falando destes três projetos em concreto. Ocupam, cada um deles de maneira diferente, uma posição de equidistância, em relação a vários estilos musicais e, talvez por isso, de difícil catalogação. Penso que têm os três um cunho pessoal bastante forte na maneira como se cruzam, de quando em vez, jazz, fado e música popular portuguesa. O “Entre Paredes” é, dos três, o que se aproxima mais da essência jazzística que caracteriza a maioria dos elementos da banda. Não quisemos nunca fugir disso, bem pelo contrário. A ideia foi tentar provar que é possível criar um som português, como acontece por exemplo, com o som tipicamente americano, inglês ou nórdico. “Cantigas de Maio” é um projeto de canções, com tudo o que isso implica. Foco na melodia, sempre. O Sul remete muito para o universo do fado, mesmo que, algumas vezes, de forma velada. A guitarra portuguesa tem um cunho e um impacto fortíssimo, impossível de disfarçar.
A participação de músicos convidados poderia expandir a música do trio para diferentes direções. Têm planeado colaborar com músicos convidados?
LF: Neste momento, não estamos a ponderar fazê-lo, embora nos primeiros concertos do grupo, precisamente em Copenhaga, a própria Cristina Branco tenha participado como convidada. Mas a verdade é que este grupo tal como está tem ainda muito por onde explorar, e isso interessa-nos muito. Talvez no futuro essa vontade surja.
Fora deste grupo, em que projetos os três músicos estão envolvidos?
BC: No meu projeto a solo, num projeto de guitarradas tradicionais de Lisboa com o violista Bernardo Saldanha e num duo com o bandoneonista Martin Sued.
LF: A solo, tocando composições originais ou em improvisação livre; em duos / trios / quartetos na área da música improvisada (com João Mortágua, João Hasselberg, Eduardo Raon, Pedro Melo Alves, etc.); em projectos com ensembles mais alargados (big band, orquestra de cordas, coro misto, piano + quarteto de percussão), frequentemente na intersecção entre jazz e música erudita; canções (songwriting). A maioria destes projetos está editada na Roda Music.
BM: O Sul, o “Entre Paredes” e as “Cantigas de Maio” têm, felizmente, ocupado muito do meu tempo e isso é maravilhoso. Paralelamente estamos os três de “pedra e cal” com a cantora Cristina Branco, que nos tem levado por esse mundo fora. Mantenho-me firme no trio do Mário Laginha, num trio com o Afonso Pais e o João Pereira onde tocamos exclusivamente música dos filmes míticos do James Bond, no trio do pianista João Pedro Coelho, num trio com João Paulo Esteves da Silva e Paulo Bandeira com a Teresinha Landeiro como convidada e um trio com Ricardo Dias e o João Moreira onde tocamos essencialmente música original (a gravar em breve). Muito recentemente, estou também com um projeto que vai dar os primeiros passos em setembro com um jovem, muito jovem, chamado João Ribeiro.
Tem havido cruzamentos entre jazz e a música portuguesa, desde os encontros de Charlie Haden com Carlos Paredes e Amália Rodrigues com Don Byas. Este projeto poderá inspirar outros músicos a criar novos outros cruzamentos?
BC: Esperamos os três que sim, se o projeto Sul servir como base de inspiração para outro músicos, parte da nossa missão estaria cumprida.
Um desafio: cada um dos músicos escolhe um disco de jazz e outro de música portuguesa. Discos que sejam marcantes/influências decisivas nos vossos percursos pessoais…
BM: Disco de jazz: impossível escolher, diria todos os discos dos dois quintetos Miles/Coltrane e Miles/Shorter; disco português: “Por Este Rio Acima” de Fausto Bordalo Dias.
BC: Disco de jazz: “The Art of the Trio, Vol. III” de Brad Mehldau; disco de música portuguesa: “Espelho de Sons” de Carlos Paredes.
LF: É uma pergunta de resposta extremamente difícil, claro. Até porque o disco de jazz pode ser português, por exemplo. Para além disso, escolher apenas duas referências discográficas é praticamente impossível. Sem pensar muito, diria: “Facing You” de Keith Jarrett e “Por Este Rio Acima” de Fausto.
Como vêem o atual momento da cena jazz em Portugal? Estão a surgir cada vez mais jovens músicos, com muito talento...
BM: Momento maravilhoso, sem dúvida. Se fossemos medir o número de músicos de jazz por metro quadrado ficaríamos, claramente, em primeiro lugar. Evoluímos muito nos últimos anos, nesse aspeto. Agora, o grande problema que se põe é o que fazer com tanto talento e qualidade. O país tem e deve estar à altura. A malta nova merece.
Depois da edição do disco de estreia (editado em novembro 2022), há planos para nova gravação? Quais são os vossos planos para os próximos tempos?
BM: Há planos, sim senhor. Queremos gravar num futuro próximo, embora ainda sem data prevista. As centenas de horas que passamos juntos na estrada avivam constantemente a nossa vontade.