Gosto pelo inexplorado, abertura ao desconhecido
Natural de São Paulo, o guitarrista Chico Pinheiro tem desenvolvido uma música que combina jazz com influências clássicas e brasileiras. Com uma discografia inaugurada e 2003, com o álbum “Meia Noite Meio Dia”, Pinheiro tem-se afirmado como instrumentista de exceção, envolvido em inúmeras parcerias e colaborações – tocou e gravou com nomes como Brad Mehldau, Dianne Reeves, Danilo Pérez, Herbie Hancock, Ron Carter, Chris Potter, John Patitucci, Julian Lage, Joe Lovano e Terri Lyne Carrington, entre outros. Em abril deste ano editou o disco “Two Brothers”, num duo com o guitarrista Romero Lubambo (e atuaram em Oeiras, no Festival Soam As Guitarras). Vai agora apresentar-se ao vivo no Festival Loulé Jazz, ao leme do seu quarteto com John Beasley (piano), Rogério Pitomba (bateria) e Rodrigo Correia (contrabaixo). Antecipando este concerto, Chico Pinheiro apresenta-se em entrevista para o público português.
Para começar, pode contar como nasceu o seu amor pela guitarra? Como começou a tocar e como essa relação foi evoluindo?
O amor pela guitarra começou muito cedo, mas a paixão pela música veio antes. Desde os primeiros meses de idade, segundo minha mãe conta. Ela disse que, sempre que eu chorava, colocava João Gilberto na vitrola e o som de seu violão e voz me acalmavam, imediatamente. Ela sempre tocou violão e piano, amadoristicamente, de modo que a música sempre foi parte do nosso dia-a-dia. Havia também uma coleção de discos bastante impressionante, que ia de rock progressivo ao choro, toda sorte de música brasileira, do jazz à música clássica. Ela sempre nos expôs literalmente a tudo em termos musicais. Sempre ouvimos todo tipo de música em casa.Quando meus pais iam trabalhar, comecei a me arriscar no violão de minha mãe, sozinho, mais ou menos aos cinco ou seis anos de idade. Logo depois, aos sete, ganhei uma guitarra elétrica, e o amor pelo instrumento só aumentou. Finalmente, aos doze anos, comecei a tocar profissionalmente, primeiro em estúdios, gravando jingles, depois acompanhando artistas como Chico Cesar, José Miguel Wisnik, etc. A lista foi aumentando, as oportunidades se multiplicando e, aos dezasseis anos, já havia decidido que queria trabalhar com isso o resto de minha vida.
Poderia identificar discos que tenham sido marcantes no seu processo de aprendizagem, particularmente na ligação ao jazz e à improvisação?
O primeiro disco que me arrebatou, uma espécie de portal para o mundo do Jazz, foi o “Heavy Weather” de Weather Report. Tive a oportunidade de dizer isso pessoalmente a Alex Acuña, baterista desse disco, em uma gravação que fizemos juntos recentemente, em Los Angeles! Gravei algumas guitarras no disco dele e, durante um dos breaks que tivemos, disse-lhe o quão importante aquele disco tinha sido para mim.Ele me contou muitas histórias emocionantes das gravações desse disco, “Heavy Weather”. Foi mágico. Eu já vinha ouvindo bastante jazz, Coltrane, Miles, Billie Holiday, Wes, Louis Armstrong, Jim Hall, etc., mas, por algum motivo, esse disco pareceu amalgamar todos os elementos que eu mais apreciava: a potência do prog-rock, o lirismo de Miles e Wes Montgomery, as harmonias sofisticadas da música brasileira, e um virtuosismo construtivo, nunca gratuito. Enfim, mergulhei de cabeça no Weather Report a partir de “Heavy Weather”. Através dele, também passei a ouvir mais e mais Wayne Shorter, de quem já gostava pelos discos solos e pela atuação com Miles e Art Blakey. Naturalmente Jaco, e Chick Corea (especificamente o disco “Now He Sings, Now He Sobs”), Joe Henderson em seu álbum “Inner Urge”, Pat Metheny, nos discos “American Garage “e “Offramp”, que foram importantíssimos na minha formação, John Scofield no álbum “Groovelation”, também fundamental. Wes Montgomery nos discos “Smokin’ at the Half Note” e “Full House”, Keith Jarret, particularmente o disco “Tribute”. “Tales from the Hudson”, de Brecker, foi outro que furei de tanto ouvir. Depois descobri a Bob Mintzer Big Band e os CDs“Incredible Journey”, “Camouflage” e “Urban Contours”. Depois veio Brad Mehldau em “When I Fall In Love” (Mehldau & Rossy Trio), um disco que me impressionou de imediato, assim como “Introducing Brad Mehldau”. Mark Turner e seu disco “In This World”. Ouvi vorazmente a todos, dentre muitos outros, principalmente durante minha adolescência, e transcrevia tudo, tudo. Foram muitos os discos marcantes.
Ao longo do seu percurso tem tocado e colaborado com músicos de renome como Brad Mehldau, Dianne Reeves, Danilo Pérez, Herbie Hancock, Ron Carter, Chris Potter, John Patitucci, Julian Lage, Joe Lovano e Terri Lyne Carrington, entre outros. O que tem apreendido com estas colaborações? Quais aqueles que mais o marcaram?
Cada colaboração me ensinou algo diferente. Não só no aspeto musical, mas também humano, pessoal. Se por um lado existe esse senso comum entre todos os nomes que você citou, do amor e respeito incondicionais pela música, cada um deles tem um approach muito pessoal para com a música. Então, cada uma dessas parcerias acaba trazendo uma troca única também: de backgrounds, visões e conceções. Você acaba se moldando ali na hora para conversar da forma mais espontânea, tentando valorizar o que parceiro te traz musicalmente. Entre outros, ter colaborado com Mehldau, Danilo Perez, Hancock ou Ron Carter foram experiências musicais muito especiais, certamente.
A sua música cruza jazz com elementos da música brasileira, numa mescla original. Como chegou até este seu universo musical particular?
Interessante a pergunta. Vejo diversos colegas procurando essa originalidade de forma racional. Porém, quando essa busca acontece pelo viés puramente racional, intencional, deliberado, o impacto nem sempre é o mesmo. Pelo contrário, na maioria das vezes, o resultado é pouco espontâneo. Também gosto do novo, do inexplorado, mas sempre experimentei essa mescla sem muita pretensão, ou propósito, se é que me entende. Se, por um lado, também me encanta explorar novos caminhos, por outro, essa busca sempre ocorreu em mim de forma lúdica, espontânea, até involuntária. Então, os elementos musicais que surgem daquilo que ouvi, estou ouvindo ou estudando no momento, acabam aparecendo de forma inevitável, atravessando minha música “sem pedir licença”. Em outras palavras, essa mescla de estilos acaba me encontrando pelo caminho, e não o contrário. Porém, para que isso aconteça, é muito importante que aprendamos a confiar em nossos instintos, que aceitemos, sem medo, nossos impulsos como músicos e artistas. É um exercício constante de estar aberto ao desconhecido, sem se censurar.
Dos guitarristas da atualidade (de lendas vivas como John Scofield ou Bill Frisell até outros mais recentes), quem são aqueles que o inspiram?
São muitos. Certamente Scofield e Frisell estão nesta lista. Também Wes Montgomery, Metheny, Django, Garoto, Peter Bernstein, Jimi Hendrix, Jim Hall, George Benson, Jimmy Wyble, Raphael Rabello. Da minha geração, dentre tantos amigos,Julian Lage, Mike Moreno, Nelson Veras, Kreisberg, Lage Lund, Lionel Loueke, e a lista continua.
Pode falar sobre o quarteto? Como surgiu a ideia de formar este grupo? E porque escolheu estes músicos? O que é que estes músicos acrescentam à sua música?
O quarteto é formado por John Beasley (piano), Rogério Pitomba (bateria) e Rodrigo Correia (contrabaixo). São músicos com que já toquei no passado em diferentes configurações, e com os quais tenho afinidade. Com Pitomba, que é do Brasil, e Rodrigo, de Portugal, já excursionei a Europa. Os dois têm muita cumplicidade tocando juntos e é sempre muito prazeroso estar a fazer música com eles. Beasley (Estados Unidos), conheci no International Jazz Day, em Melbourne, onde tocamos juntos. Imediatamente houve uma conexão musical interessante entre a gente. Sempre que dividimos o palco ou gravamos, temos essa conexão. Um super pianista, que já tocou com Miles Davis, Freddie Hubbard, e atualmente dirige uma Big Bad fantástica chamada Monk’Estra. Embora já tenha tocado com todos eles em ocasiões diversas, essa será a estreia do quarteto, exatamente no Loulé Jazz, o que para mim traz uma atmosfera ainda mais especial.
Vai tocar com o quarteto em Portugal, no Festival Loulé Jazz. O que podemos esperar desta atuação em quarteto?
Será uma apresentação especial, tanto pelo contexto, em um lugar que adoro tocar, que é Portugal, quanto pelo grupo de músicos. Tocaremos alguns temas inéditos, e alguns standards de jazz e música brasileira.
Editou recentemente (abril de 2023) o disco “Two Brothers” com o guitarrista Romero Lubambo. Como desenvolveram a articulação de duas guitarras? E o que representou a edição deste disco?
Romero é um músico pelo qual tenho profunda admiração. Nos tornamos amigos há algum tempo e, há tempos, já planejávamos fazer esse disco. Ele é uma figura muito generosa, tanto como pessoa como músico, um acompanhante de mão cheia, sempre tocando para a música e ouvindo o solista atentamente. A escolha do repertório foi bem peculiar. Resolvemos gravar somente temas de outros compositores, não temas nossos. Queríamos um disco mais de intérpretes. Nesse processo de escolha de repertório, o produtor Matt Pierson foi bastante atuante. A edição deste disco representou uma bela fotografia de nossa afinidade, respeito um pelo outro, nosso amor mútuo pelo Brasil e pelo jazz.
Atuou em abril em Portugal – em Oeiras, no Festival Soam As Guitarras – em duo com Romero Lubambo, a apresentar esse disco novo. Como foi essa atuação? Como sentiu a receção do público português?
Foi absolutamente memorável. Voltamos ao palco por três vezes para o bis [encore], com um público que nos recebeu com muito calor. Sentimo-nos completamente em casa. Tenho uma lembrança muito bonita dessa noite.
Além destes projetos, tem trabalhado em colaboração com músicos como Luciana Souza, Greg Jasperse ou Ted Nash. Em que projetos está atualmente envolvido?
Nesse exato momento estou envolvido em diversos projetos diferentes. Entre outros, tenho tocado em trio com o baterista Ari Hoenig, também em trio com Luciana Souza e Scott Colley (baixista), com Romero Lubambo em duo, com Steve Cardenas, Ben Allison e Allan Mednard em quarteto, também um projeto de guitarra solo que estou desenvolvendo e, sobretudo, com meu quarteto, o Chico Pinheiro Quartet.
Apesar da ligação especial e de alguma proximidade cultural, o jazz do Brasil não é muito conhecido em Portugal. Poderia indicar alguns nomes de músicos de jazz do Brasil, que os leitores portugueses devam conhecer?
Com certeza. Há muitos nomes interessantes. Entre os que continuam a morar no Brasil e fora dele, eu citaria Nelson Veras, Orkestra Rumpilezz, Luciana Souza, Proveta, Tatiana Parra, Pedro Martins, André Mehmari, Edu Ribeiro, Vitor Gonçalves, entre muitos outros.
Conhece músicos de jazz de Portugal?
Sim! Mário Laginha, Maria João, Bernardo Sassetti, Carlos Bica, Carlos Barretto, Pedro Guedes e sua Orquestra Jazz de Matosinhos, são apenas alguns dos nomes que conheço e pelos quais tenho admiração em Portugal.
E quais são os seus planos para os próximos tempos?
Há turnês marcadas até o final do ano, além de duas trilhas para filmes a serem compostas nos próximos meses. Por fim, devo gravar meu próximo projeto em quarteto, até o fim de 2023, em Nova Iorque.