Línguas de Fogo, 6 de Julho de 2023

Mar ardente

texto: Nuno Catarino / fotografia: Margarida Quinteiro

O quarteto Línguas de Fogo é um projeto musical que reúne quatro mulheres açorianas. Este novo grupo – que junta Antonella Barletta (piano), Gianna de Toni (contrabaixo), Isabel Mesquita (voz e guitarra) e Sara Miguel (voz) – reuniu-se para homenagear Natália Correia, no ano em que se assinala o centésimo aniversário do seu nascimento, trabalhando música original inspirada pela escritora e poetisa natural de São Miguel. Em entrevista, a cantora Sara Miguel apresenta-nos este projeto.

 

Como nasceu este projeto?  

Este projeto nasceu de um convite da Associação Cultural Miratecarts com sede na ilha do Pico para se conceptualizar um concerto para uma das datas do ciclo de concertos Música no Forte. Este ciclo realiza-se na vila das Lajes do Pico com organização conjunta da Miratecarts e do Município e vai em 2023 na sua segunda edição depois do sucesso do formato em 2022. Os concertos decorrem ao ar livre no reconvertido Forte de Santa Catarina sempre aos domingos às 19h30 entre Julho e Agosto - a entrada é livre e o cenário não podia ser mais inspirador com o mar mesmo ao lado e a montanha do Pico em recorte no horizonte ao pôr-do-sol. Quando o Terry Costa me sugeriu que idealizasse um espetáculo para esta edição e me disse que estava a pensar um cartaz exclusivamente feminino, pensei imediatamente em trabalhar com a Isabel Mesquita, a Antonella Barletta e a Gianna de Toni  já tínhamos trabalhado juntas com outros músicos numa residência criativa o ano passado no Pico e elas já tinham o objetivo de fazer algum tipo de projeto juntas, por isso o meu convite acabou por propiciar a conjugação das vontades e da oportunidade. 

Como surgiu a ideia de homenagear Natália Correia? 

Aqui nos Açores têm acontecido diversas iniciativas este ano para comemorar o centenário da Natália Correia que é não só uma das figuras incontornáveis da literatura açoriana e nacional, como também foi uma mulher carismática e interventiva política e socialmente, sempre à frente do seu tempo. Fez-nos sentido adicionar o nosso contributo para homenageá-la, sendo todas nós mulheres amantes de literatura, açorianas de nascença ou de alma e também feministas. 

Como conseguiram concretizar a ideia de dar forma de música às palavras de Natália Correia? 

Como vivemos em quatro ilhas diferentes, houve a necessidade de encontrarmos um espaço físico, temporal e geográfico comum para podermos trabalhar juntas. Poderíamos ter feito esse processo criativo separadamente, mas queríamos que o produto final tivesse o toque de todas e o toque do conjunto também. Assim, reunimo-nos na ilha Terceira numa espécie de residência criativa para compormos e arranjarmos juntas. Nem toda a poesia da Natália é fácil de musicar, mas como já tínhamos escolhido alguns poemas ou criado algumas melodias e progressões harmónicas individualmente, depois de estarmos juntas surgiu muito mais material e muitas ideias foram revistas de forma a que os temas tivessem muitos insights conjuntos. Foi de certa forma uma surpresa perceber que funcionámos tão bem juntas e a inspiração fluiu tanto com o trabalho árduo que em quatro dias compusemos ou arranjámos cerca de 11 temas dos quais nos orgulhámos muito no final. Deu-nos muito prazer trabalhar só entre mulheres e perceber até que ponto é que a energia, a cumplicidade e a segurança para propor ideias ou liderar são diferentes no feminino. 

Entre o seu trabalho de poesia, ficção, teatro e ativismo político, qual a faceta que mais vos interessa e cativa?  

Sem dúvida, foi a poesia que nos atraiu para a Natália, mas a sua poesia é tão rica e tão pessoal que nela transpiram todas as suas dimensões como artista e mulher. A sua escrita acaba por ser uma súmula das suas convicções, valores, lutas e modo se ser e é um caminho perfeito para perceber a mulher através de um lirismo que se presta a ser trabalhado musicalmente. Poemas como ‘Cântico do país emerso’ ou ‘A defesa do poeta’ (escrito para ser incluído na sua defesa num julgamento que a levou a ser condenada com pena suspensa por ter editado a “Antologia de Poesia Erótica e Satírica”!) são autênticas bandeiras de intervenção - assim como a Nina Simone compunha, cantava e gravava temas para lutar contra a discriminação racial, a Natália escrevia, publicava (obras suas e de outros) e declamava poemas n’O Botequim, na televisão e em todos os lugares por onde passava para se insurgir politicamente e para alinhar a sua voz com todas as outras que se levantavam para alterar o que estava errado no país e no mundo. Chegou até a ser deputada da Assembleia para República durante muitos anos para levar a sua luta aos lugares de decisão. A força, a resolução e a intrepidez dela inspiram-nos muito a ocupar cada vez mais o nosso lugar como mulheres e também a valorizar e a amplificar a nossa voz, sobretudo artisticamente.  



Pode apresentar um pouco do percurso de cada uma das participantes neste grupo? 

Muito brevemente, um apanhado do percurso de cada uma. A Antonella Barletta é a nossa pianista  a sua formação dividiu-se entre a música erudita ainda em Itália de onde é natural, e o jazz, sobretudo depois de se mudar para a ilha Terceira. É docente no Conservatório Regional de Angra do Heroísmo desde 2009, concluiu em 2014 o mestrado em Música (performance jazz) na Escola Superior de Música de Lisboa, faz parte da Orquestra Angrajazz desde 2010 e do Wave Jazz Ensemble desde 2013, grupo que lançou disco de estreia o ano passado. Participa em vários outros agrupamentos musicais na Terceira. 

A Gianna de Toni, nossa contrabaixista, é uma italiana residente na ilha de São Miguel desde 2009 e desde esse ano professora de guitarra clássica no Conservatório Regional de Ponta Delgada. Paralelamente ao seu percurso performativo profissional, tem vindo a explorar o interesse pelo contrabaixo no jazz e pela música experimental improvisada através do envolvimento em workshops e festivais nessas áreas e desenvolve um trabalho regular de divulgação da música, da improvisação e seus benefícios junto de diversas comunidades e grupos locais.

A Isabel Mesquita, nossa cantora e guitarrista, natural da ilha de Santa Maria onde não há conservatório nem escolas de música especializadas, procurou workshops esporádicos que lhe garantissem formação musical inicial e que posteriormente a incentivaram a estudar voz e guitarra em Lisboa. Em viagens a Cabo Verde, Nova Iorque, Cuba, Panamá e Espanha participou em workshops, palestras, concertos e jam sessions que a inspiraram a concretizar projetos como o Festival “Anticiclone” em Santa Maria. Em 2019 lançou o seu primeiro disco “Ilhéu” e em 2022 fez uma tour que levou este álbum às 9 ilhas dos Açores. 

Eu, Sara Miguel, estudei Canto Jazz na ESMAE de onde saí em 2011 e desde então tenho desenvolvido vários projectos musicais desde o jazz, ao pop, à world music além da actividade como docente de voz em várias escolas, academias e também a nível particular. Lancei quatro álbuns com quatro grupos diferentes, participei em vários outros como convidada e desde que vivo nos Açores há nove anos tenho explorado com mais atenção a música de raíz e a tradição lusófona, nomeadamente com o BRUMA Project e com os Mar&Ilha. A improvisação vocal em dinâmicas de “circle singing e o trabalho com grandes agrupamentos como a Orquestra Angrajazz e a Orquestra de Jazz do Algarve são dos trabalhos que mais me realiza fazer musicalmente.

Trabalhámos as quatro juntas pela primeira em 2022 na residência artística “Sea Women - O Canto das Mulheres do Mar” para o Festival Pico Zen. 

Porquê o nome Línguas de Fogo?  

É sempre difícil encontrar um nome e ainda mais difícil quando se trabalha sobre palavras de uma escritora, fica a sensação de que o nome tem de fazer justiça ao legado. Andei a pesquisar em poemas, em reportagens, em documentários e havia já muitas expressões associadas à Natália, mas queria uma que fosse fresca e que também pudesse fazer a ponte entre ela e nós. Deparei-me com esta expressão “línguas de fogo” num dos seus poemas chamado “Páscoa” (que também musicámos) e em cujos versos diz ‘Foi por línguas de fogo / Que aprendi a falar’ - achei maravilhoso este triplo sentido que se pode referir à origem vulcânica e telúrica das ilhas que a viram nascer, ao culto do espírito santo sempre presente no seu imaginário como açoriana e ao qual a imagem das línguas de fogo se associa, ou também a esta força indomável que a fazia dizer e gritar ao mundo a sua essência, muitas vezes com palavras incendiárias e provocatórias. Queremos herdar neste projeto essa ideia de levar sempre mensagens nas nossas vozes, levar o fogo da paixão pelas convicções nas nossas canções, mesmo que um dia não cantemos só Natália e o projeto evolua para incluir outras compositoras ou escritoras no repertório. 

Sendo oriundas de universos musicais distintos, como conseguiram desenvolver a vossa interação instrumental, que é atípica? 

Foi bastante fácil. Embora não tenhamos bateria ou percussão, a Antonella e a Gianna ficam muito confortáveis uma com a outra a assumir a secção rítmica e em alguns temas a Isabel também junta a sua guitarra, adensando a textura. Depois nas vozes, eu e a Isabel encaixamos muito bem e instintivamente sabemos como nos adaptar uma à outra. De certa forma, a instrumentação que tínhamos foi definida pelas pessoas que tínhamos disponíveis para trabalhar, porque nas ilhas há poucas instrumentistas mulheres que trabalhem profissionalmente na música nos estilos mais ligeiros. Como todas temos formação em jazz e o pop também nos é bastante familiar, foi fácil encontrar uma linguagem comum. Os nossos gostos e visões acabaram por se alinhar bastante bem, o que faz o projeto funcionar. Ainda assim, o nosso sonho no futuro era encontrar mais uma mulher para o grupo  de preferência açoriana  para assumir a parte da percussão e abrir-nos mais opções e mais conforto, isso seria perfeito! 



Têm concertos no horizonte? Há planos para gravação de disco?
 

O nosso concerto de estreia será já no dia 9 de julho nas Lajes do Pico, no ciclo de concertos Música no Forte. É uma honra e estamos muito felizes por estrear este projeto num cartaz exclusivamente feminino que inclui nomes como Celina da Piedade, Ana Lua Caiano ou Catarina Munhá. Para já, estamos concentradas em conseguir agendar mais alguns concertos este ano para fazermos o projeto rodar e vermos como funciona, como cresce, como se modifica e qual a resposta do público ao repertório. Como estamos a gostar tanto das canções, é muito provável que vamos ficado cada vez com mais vontade de as gravar, até para eternizar esta homenagem à Natália  não havendo ainda planos concretos para isso, não está de todo fora do nosso pensamento. 

Fazendo ligação à natureza feminista de Natália Correia, como vêem o papel da mulher no mundo da música atual?

Penso que vivemos num país (num mundo!) com visões ainda demasiado sexistas e patriarcais  era de esperar que, depois de tantas décadas de luta por parte de mulheres como a Natália e tantas outras referências nacionais e internacionais e depois de tanta evolução e progresso a tantos níveis, a nossa sociedade já fosse mais justa e promovesse a igualdade e equidade muito mais do que acontece. Vai havendo mudanças, é claro, mas seria de desejar que fossem mais rápidas e mais definitivas. O mundo da música atual ainda não é equilibrado: continua a haver menos oportunidades para as mulheres, continua a haver descriminação na educação e no mercado de trabalho, continua a haver desequilíbrio nos cartazes de festivais e programações e as raparigas continuam a não ser suficientemente encorajadas na sua formação a escolher ‘instrumentos masculinos’ ou a considerar a música como carreira profissional (também não ajuda a precariedade da classe não criar condições de estabilidade para quem ambiciona constituir família, e esse é um pensamento que condiciona quase sempre uma mulher). Se incluirmos nesta equação a equidade para tantas outras ‘minorias’, a situação ainda piora de figura. Acho que a Natália não gostaria de ver que 50 ou 60 anos depois de ela ser condenada a prisão com pena suspensa por editar um livro de poesia erótica ainda há tanta discriminação no nosso país e tantas mulheres se sentem ainda tão inseguras para se afirmar a nível artístico e pessoal e outras são tão usadas como bens ou produtos comerciais sexualizados e objetificados... Numa nota mais positiva, é maravilhoso ver que há já muitas artistas femininas bem estabelecidas no panorama musical nacional a fazer o que querem fazer e não a cumprirem os papéis que se espera delas. É bom ver que muitas delas abraçam a luta pelos seus direitos e são vocais acerca disso mesmo e que algumas delas também ensinam as suas alunas a fazer o mesmo. É maravilhoso ver também que muitas artistas se começam a juntar cada vez mais em colaborações, coros, grupos de toda a ordem e deixam de se sentir ameaçadas pela presença de outras mulheres talentosas, como o mercado masculinizado nos sugeriu tantas vezes que fizéssemos. Penso que as engrenagens da mudança de paradigma estão a rodar na direção certa, mas não vão rodar se não formos nós mulheres a manter o movimento  somos as responsáveis pelo nosso destino, por marcar posição e por influenciar a visão dos homens a esse respeito. O poder está em cada uma de nós, o poder de não ter medo e de não se destituir do seu papel na missão conjunta. 

Que outros projetos musicais dos Açores podem sugerir aos nossos leitores? 

Cada uma de nós tem vários projetos que vai desenvolvendo paralelamente, dos quais posso deixar aqui alguns em nota  eu estou dedicada ao meu grupo Mar&Ilha que lançou o disco de estreia “A Viola e a Viagem” há um ano com temas originais e temas tradicionais açorianos e que celebra a viola da terra açoriana viajando pelos sons da world music; a Isabel anda também em tour a divulgar o seu disco de estreia “Ilhéu”, que gravou no continente e lançou em 2019 e que junta inspirações lusófonas e sons do mundo a poemas de vários escritores portugueses; a Antonella faz parte de vários grupos, nomeadamente da Orquestra Angrajazz e do seu “grupo satélite” Wave Jazz Ensemble, quinteto com influências diversas entre o rock, o clássico e o meio filarmónico, mas ancorado no jazz e que lançou o disco de estreia “Perspectivas” em 2022 com temas originais da autoria do grupo; a Gianna toca com várias formações, normalmente também entre os mundos do clássico e do jazz, e abraça vários projetos de música comunitária  o mais recente chama-se Projeto 432Hz, funde arte e ciência e reúne intérpretes de diversas vertentes artísticas (da música ao vídeo, do desenho à declamação) numa uma viagem sonora e visual que pretende sensibilizar a população para a conservação e proteção dos recursos naturais e patrimoniais do mar dos Açores. Uma nota também para a Comunidade de Compositoras dos Açores, um agrupamento recente que pretende representar e divulgar nas ilhas e no continente o trabalho de compositoras dos e nos Açores. Podem seguir todos estes projectos nas redes sociais. 

Agenda

04 Outubro

Carlos Azevedo Quarteto

Teatro Municipal de Vila Real - Vila Real

04 Outubro

Luís Vicente, John Dikeman, William Parker e Hamid Drake

Centro Cultural de Belém - Lisboa

04 Outubro

Orquestra Angrajazz com Jeffery Davis

Centro Cultural e de Congressos - Angra do Heroísmo

04 Outubro

Renee Rosnes Quintet

Centro Cultural e de Congressos - Angra do Heroísmo

05 Outubro

Peter Gabriel Duo

Chalé João Lúcio - Olhão

05 Outubro

Desidério Lázaro Trio

SMUP - Parede

05 Outubro

Themandus

Cine-Teatro de Estarreja - Estarreja

06 Outubro

Thomas Rohrer, Sainkho Namtchylak e Andreas Trobollowitsch

Associação de Moradores da Bouça - Porto

06 Outubro

Lucifer Pool Party

SMUP - Parede

06 Outubro

Marta Rodrigues Quinteto

Casa Cheia - Lisboa

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