Débora King, 12 de Junho de 2023

Quando nos esquecemos de quem somos

texto: Nuno Catarino

Pianista, compositora e arranjadora, Débora King editou em meados de 2022 o seu registo de estreia, o EP “Forget About Mars”. A formação da pianista passou pela JBJazz e pela Escola Superior de Música de Lisboa e este primeiro trabalho é, segundo a autora, «um projeto que procura refletir sobre questões de existência e fragilidade humana». Apesar de contar com apenas três temas, destaca-se neste EP a originalidade da composição e dos arranjos, com contornos épicos – que já tivemos oportunidade de confirmar ao vivo. Estivemos à conversa com a jovem pianista, que nos fala sobre o seu percurso e ambições. 

 

Como nasceu a ligação à música? E a aprendizagem do piano? 

Lembro-me que os meus avós tinham um piano vertical em casa e que a tentação de tocar era enorme. Acho que qualquer criança fica fascinada com instrumentos musicais. Às vezes estava com as minhas irmãs ao piano só a fazer barulho ou a aprender melodias com a minha avó, que toca acordeão. Divertíamo-nos imenso. Acho que sempre tive uma inclinação para as artes em geral. Quando era pequena sonhava ser inventora e tinha um caderno onde explicava as minhas ideias. Só percebi que tinha jeito para a música na adolescência, que foi quando comecei a pegar na guitarra da minha irmã e a criar canções. Comecei a estudar piano mais a sério depois dessa descoberta e, mais tarde, aos 20 anos, percebi que precisava de estudar jazz para chegar onde queria. Uma amiga minha na altura recomendou-me a ter aulas com a Paula Sousa, que me guiou e foi fundamental em grande parte do processo. Estudei com ela na JBJazz e fui-me preparando para entrar na ESML, onde terminei a licenciatura em 2022.

Podes indicar professores/as que tenham sido importantes no percurso?

A Paula Sousa foi a melhor professora que tive até hoje. Lembro-me de ficar fascinada com ela logo no início. Descobri ali um mundo novo e estimulante. A Paula tem uma grande capacidade de compreender os alunos e de perceber para que direção deve apontar. Tive muita sorte, porque quando comecei a ter aulas com ela estava numa fase em que queria dar tudo. Estudava muitas horas todos os dias e ela ajudou-me a evoluir de uma forma muito consistente. 

O Nuno Ferreira também foi um dos melhores professores que já tive. É um grande pedagogo e músico. Outros professores marcantes foram o João Paulo Esteves da Silva e o Filipe Melo, que me ajudaram imenso a encontrar o meu rumo.

E quais foram os discos mais marcantes/influentes, na tua descoberta do universo do jazz?

O “A Love Supreme” do John Coltrane foi o primeiro que ouvi de uma ponta à outra milhões de vezes. Andei obcecada com esse disco durante semanas. Também foram muito influentes todos os “Art of The Trio” do Brad Mehldau, “Valsa Para a Terri” e “Nirvanix” da Paula Sousa, “Night Dreamer” e “Emanon” do Wayne Shorter, “Mingus Ah Um” do Charles Mingus, entre outros.

Participaste na 15.ª Festa do Jazz, onde foste distinguida. Esse reconhecimento foi importante no teu percurso?

O reconhecimento é sempre bom, porque é sinal de que o teu trabalho está a ser valorizado. Encorajou-me muito a continuar, mas prefiro não dar muita importância. 

E que pianistas mais te marcaram?

O Herbie Hancock, o Leo Genovese, o Thelonious Monk e o Brad Mehldau foram alguns dos meus primeiros ídolos. Agora, mais recentemente, tenho ouvido muito o João Grilo, Zé Diogo Martins, Kaya Draksler, Kit Downes, Ethan Gruska e Jeremy Corren. Há muita música incrível feita por eles, quer em termos de composição, quer em termos de improvisação, e isso é muito inspirador.


fotografia: Dolores


Em que momento percebeste que querias trabalhar na música e criar música original?
 

Já antes de tocar piano regularmente pegava na guitarra da minha irmã e inventava canções com os únicos acordes que sabia. Acho que sempre tive uma inclinação natural para criar coisas, como mencionei há pouco. Durante a adolescência descobri que a música era uma boa forma de expressar as emoções que estava a viver e tornou-se o meu refúgio. Esta forma de expressão começou de uma forma muito pessoal e íntima para mim, mas tenho aprendido a desprender-me disso. Hoje em dia já vejo o processo de composição e criação de uma forma muito diferente.

O que representou a gravação do disco “Forget About Mars”? Como foi o processo de criação, conceito, composição e interpretação?

A gravação de “Forget About Mars” foi uma boa experiência. Preparei-o com a ajuda do Filipe Melo e gostei muito do processo. Sinto que fui muito ambiciosa para o que era possível fazer em estúdio e acabei por chamar músicos a mais, mas gostei muito de trabalhar com todos eles. Para mim foi uma forma de sair de onde estava. Sentia-me um pouco desmotivada na altura e lançar um disco foi muito importante para mudar o rumo. Permitiu-me seguir em frente e procurar novas ideias e abordagens.

Ao vivo tens tocado com Marta Rodrigues na voz, Zé Almeida no contrabaixo e Samuel Dias na bateria. Porque escolheste gravar e tocar com estes músicos? O que é que cada um deles traz para a tua música?

O Zé Almeida fez parte do grupo no início, mas agora temos tocado com o João Hasselberg, que é o membro fixo. São ambos músicos ultra competentes e criativos que trazem muito à minha música. Sempre fui fã da música do João Hasselberg e das colaborações dele com o Pedro Branco e é um sonho tê-lo na minha banda. Adoro o som que ele saca do contrabaixo e sinto que ele tem muito bom gosto. Em relação à Marta, desde que a ouvi pela primeira vez soube logo que queria colaborar com ela. Adoro o timbre dela e a abordagem que ela tem como cantora-instrumentista. O Samuel já conheço há anos, desde o início do meu percurso como estudante de jazz. Sempre gostei muito de tocar com ele e sinto que ele encaixa na perfeição neste grupo. Adoro o som que ele saca do instrumento, o ouvido atento e a capacidade de reação espontânea e orgânica.

Tens desenvolvido trabalho de composição e arranjos. Podes falar sobre o teu processo de composição? 

O meu processo de composição é um pouco caótico. Depende muito do que ando a ouvir e do que ando a pensar musicalmente. Sinto que tenho vindo a mudar bastante a minha abordagem a compôr. Tenho gostado muito da ideia de compôr longe do instrumento, para esticar os limites e descobrir coisas que ainda não sei tocar. Também tenho reflectido bastante sobre a questão do ego na música. Cada vez mais acredito que a melhor música acontece quando nos esquecemos de quem somos. Tenho um amigo que uma vez me disse que quando se ouvia numa gravação, os únicos momentos em que conseguia gostar genuinamente de se ouvir a si próprio eram quando não reconhecia que era ele a tocar. Fez todo o sentido para mim. Agora tenho usado muito isso. Tocar e criar coisas onde não me reconheço para ser um constante diálogo com o desconhecido. 


fotografia: Dolores


Ao vivo tens tocado, além dos teus temas originais, versões de temas de Arcade Fire, José Afonso e The Beatles, entre outros. Estas são influências marcantes para a tua música?
 

Sim, muito. Quando fiz esses arranjos, andava viciada nos álbuns dos The Bad Plus, que têm os arranjos mais arrojados e fritos que já ouvi. Na verdade, já andava a planear fazer um arranjo ao “A Day in the Life” dos Beatles há anos e foi quando surgiu o concurso de jazz da Universidade de Aveiro que aproveitei para pôr o plano em prática. Fiquei feliz com o arranjo que fiz e a Sara Afonso interpretou-o com imenso caráter e bom gosto. 

Arcade Fire representa a minha outra faceta musical mais inclinada para o indie. Senti só que seria uma boa ideia prestar uma homenagem a esta banda.

Em relação ao José Afonso, sou muito fã da face interventiva dele. Na altura em que fiz o arranjo ao tema “Os Vampiros”, andava fascinada com a música de intervenção e cheguei a ponderar desenvolver trabalho desse género. Ainda penso muito sobre isso, mas quanto mais penso, mais percebo que fazer música de intervenção requer muita responsabilidade, consciência social, política e coragem para dizer aquilo que precisa de ser dito. Acho que quem tem feito um trabalho formidável nessa área em Portugal é a Beatriz Nunes. Admiro-a imenso pelo trabalho que tem feito pela igualdade de género no meio do jazz em Portugal.

Que discos tens ouvido ultimamente?

Tenho ouvido muita coisa nova ultimamente. Destacam-se estes discos: “Preludes” de Ethan Gruska, “Jazz Codes” da Moor Mother; “Koma Saxo” do Petter Eldh, “Rádio Mistério” do Pedro Martins, “Enter the sQUIGG” do Mané Fernandes e “SUNDAYS EXPANSION” do Nate Mercereau.

Além deste teu grupo, em que outros projetos estás envolvida?

Estou em processo de pós-produção do primeiro álbum dos SAMALANDRA, uma banda que co-lidero com o João Atouguia Neves (baterista) e o Tiago Martins (baixista) onde exploramos beats, sintetizadores e um pouco de improvisação. Também tenho tocado com o quarteto da Eunice Barbosa (saxofonista) e, fora do meio do jazz, tenho participado em vários projetos, como o projeto a solo do Tiago Vilhena, que é um cantautor português, e da Alena Pershiy, cantautora/rapper bielorrussa.

Que projectos (ideias, grupos, discos) tens planeados e gostavas de concretizar? 

Há muita coisa que quero fazer. Gostava de continuar o meu trabalho com “Forget About Mars” e gravar um disco com o quarteto, quero explorar novas formações e novos conceitos, práticas interdisciplinares (especialmente com fotografia), etc. Também quero muito aprofundar o meu conhecimento em sintetizadores e electrónica. Sinto que há muito para explorar. Especialmente quando penso na possibilidade de fundir estas técnicas com o jazz e a música improvisada.

Fazes parte de uma geração de jovens músicos portugueses, em processo de afirmação. Como vês o atual momento da cena musical portuguesa?

Acho que está a acontecer muita coisa nova e sinto que daqui a uns anos vamos perceber melhor no que isto vai dar e porquê. Vivemos num tempo em que há muita coisa a acontecer ao mesmo tempo e nem damos pela evolução que está a decorrer mesmo por baixo dos nossos narizes. Quero muito ver no que isto vai dar. Enter the sQUIGG, Chão Maior, Apophenia, Unsafe Space Garden, Whosputo e Fumo Ninja são alguns dos exemplos de como está a haver imensa inovação na música em Portugal. Temos o talento e a inovação. Só faltam os meios. Falta termos mais sítios para tocar, mais fundos para tornar o processo de criação sustentável, mais acessibilidade à aprendizagem formal da música, entre outros. Falta muita coisa e isso dá-me pena. Mas ver uma cena musical tão interessante e estimulante em Portugal deixa-me cheia de esperança.

 

Agenda

04 Outubro

Carlos Azevedo Quarteto

Teatro Municipal de Vila Real - Vila Real

04 Outubro

Luís Vicente, John Dikeman, William Parker e Hamid Drake

Centro Cultural de Belém - Lisboa

04 Outubro

Orquestra Angrajazz com Jeffery Davis

Centro Cultural e de Congressos - Angra do Heroísmo

04 Outubro

Renee Rosnes Quintet

Centro Cultural e de Congressos - Angra do Heroísmo

05 Outubro

Peter Gabriel Duo

Chalé João Lúcio - Olhão

05 Outubro

Desidério Lázaro Trio

SMUP - Parede

05 Outubro

Themandus

Cine-Teatro de Estarreja - Estarreja

06 Outubro

Thomas Rohrer, Sainkho Namtchylak e Andreas Trobollowitsch

Associação de Moradores da Bouça - Porto

06 Outubro

Lucifer Pool Party

SMUP - Parede

06 Outubro

Marta Rodrigues Quinteto

Casa Cheia - Lisboa

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