Beatriz Nunes, 26 de Maio de 2023

Autonomia da devoção

texto: Sofia Rajado / fotografia: Anabela Carreira

Nascida no Barreiro em 1988, Beatriz Nunes tem-se afirmado na cena musical nacional como cantora e compositora. Em paralelo, tem desenvolvido trabalho como investigadora, com foco particular na desigualdade de género no jazz. Editou em 2018 o seu primeiro registo em nome próprio, “Canto Primeiro”, tendo-se seguido em 2021 o disco “À Espera do Futuro”, um projeto em trio com Paula Sousa e André Rosinha. Agora, Beatriz Nunes prepara-se agora para publicar um novo álbum, “Livro de Horas”, que tem edição da Roda Music e foi gravado com Mateja Dolsak (saxofone), Luís Barrigas (piano), Mário Franco (contrabaixo) e Jorge Moniz (bateria). Esta música nova será apresentada ao vivo no dia 27 de maio na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa, e a primeira amostra deste novo disco, “As Bruxas”, já está disponível no Youtube. A edição deste novo trabalho deu o mote para uma entrevista de fundo com Beatriz Nunes.

 

És cantora, compositora, investigadora e, de certa forma, escritora. Com qual destas vertentes te identificas mais? 

Fazendo uma hierarquia que não é fácil, porque estou envolvida em muitas atividades diferentes, embora estejam relacionadas umas com as outras, provavelmente, dessa lista que apontaste, a única que não me identificaria é a de escritora. Porque tudo o que produzi a nível escrito foi mais na área académica e de investigação. Comecei por ser música, por ser cantora. Ser professora foi algo que veio a seguir. Inicialmente foi até uma coisa que descobri por necessidade, mas que na verdade acabou por se tornar num trabalho com o qual me identifiquei. Quando comecei a dar aulas não estava muito preparada, era uma jovem aluna de licenciatura em música. Isso é uma coisa que acontece muito na nossa área, nós começamos a dar aulas precocemente, muitas vezes sem muita preparação pedagógica, e essa consciência de que eu não estava muito preparada fez-me ter a curiosidade de investigar mais sobre isso. Dai que depois tenha ido fazer mestrado em ensino da música. E foi no contexto desse mestrado que descobri essa paixão pela investigação. Então, a ordem dos acontecimentos foi esta e, hoje em dia, todas essas dimensões convivem, não totalmente em simultâneo. Ou seja, há fases em que estou mais dedicada à parte artística, outras em que estou mais dedicada à parte das conferências e dos artigos. Mas isso é bom, porque acabo por nunca ficar saturada, ou farta, de alguma das áreas. Acho que essa alternância entre atividades vai alimentando também o gosto de umas pelas outras.

Mas tu também escreves as letras das tuas canções, certo?

No primeiro disco, sim, as letras eram maioritariamente minhas. Neste disco não foi isso que aconteceu. As músicas que têm letra, na sua maioria são de poemas ou recolhas de outros autores, coisas que já existiam. A única música que tem uma letra minha é “As Bruxas”. Mas eu não diria que isso chega, para mim, para me ver como escritora. A ideia de escrever uma letra insere-se mais, talvez, no sentido de cantautora.

Fala-nos deste teu último projeto, “Livro de Horas”. Onde foste buscar a inspiração para o conceito do disco? Achas importante recuperar a ideia que está por trás dos “Livros de Horas”?

Não sei se é importante. Foi uma coisa que me inspirou. Inicialmente, o objeto em si inspirou-me porque, do ponto de vista visual, são objetos muito interessantes, têm iluminuras muito trabalhadas, são realmente objetos muito belos. Eu acho que, desde o secundário em que estudava artes, sempre achei os “Livros de Horas” muito fascinantes. Por isso, comecei a investigar o que eram os “Livros de Horas”, e o que eles podiam representar. Acabei por fazer esta leitura do “Livro de Horas” como um objeto que também simboliza a autonomia da devoção. Porque eram livros devocionais, com orações, mas que também tinham alguns rituais de festividades. Portanto, por um lado pareceu-me um objeto muito interessante, no sentido de uma autonomização da relação espiritual, sem ela ter que passar por um sacerdote, ou pela Igreja, sendo uma forma das famílias ricas da Idade Média terem a sua própria forma de se relacionar com a espiritualidade; por outro lado, acho uma forma muito interessante de marcar a passagem do tempo como, por exemplo, o Borda d’Água,  que também é um objeto de que eu gosto muito, sendo algo que assinala a passagem do tempo através de momentos ritualizados. Em que é que isso depois tem a ver com o meu disco? A ideia do meu disco foi pensar o que é que seria o meu próprio “livro de horas”, quais são as minhas orações, quais seriam os assuntos que me preocupam e pelos quais eu gostaria, nesta ideia de oração, de aspirar por alguma coisa. Que assuntos seriam esses - isso foi um pouco o ponto de partida para a investigação, para a pesquisa do disco.



E quais são esses temas, orações, que poderiam compor os teus “livros de horas”?

Por um lado, acho que há uma coisa que são as narrativas marginalizadas, que não estão propriamente dentro do cânone. Nem dentro do cânone histórico nem do cânone de valores. Tenho estado muito atenta às questões das narrativas das mulheres, mas eu acho que também há outras narrativas como, por exemplo, as narrativas das pessoas homossexuais do início do séc. XX. Há uma ideia de que todas as questões das identidades não normativas são uma moda. Esta perceção é produto de um projeto bem-sucedido, de uma narrativa muito dominante, muito normativa. Como se toda a história fosse a mesma, toda a vida, todas as culturas. Por exemplo, algumas das músicas que têm esse contributo são, por exemplo, o “Romance de Aljezur”, que aparece a partir de uma recolha do Michel Giacometti. É uma música que eu ouço há muito tempo, do disco das recolhas, e é muito bonita, a melodia é muito interessante, é no modo frígio. Ele fala nisso num caderno e é muito interessante, porque nesse caderno desse disco de recolhas do Giacometti, é feita uma análise etnomusicológica muito interessante, até se explica o que é um romance - tradição oral, contar histórias através da música que passa de geração em geração. E não há nenhuma linha, nenhum apontamento sobre conteúdo de violência que essa canção tem. Na sua versão original chama-se “D. Mariana”, e essa história é uma história de violência sexual e também de qual é a perceção da comunidade em relação à vitima. A frase mais forte da musica é “P’la noite adiante D. Mariana quis gritar, cala-te D. Mariana, não te estejas a difamar”. Portanto, é esta ideia de que a vítima é a culpada do seu próprio abuso. Então, embora não seja uma canção “mainstream”, a minha ideia era trazê-la para um contexto, para uma apropriação feminista da música, já tendo outros arranjos e outras abordagens. Porque tem muito a ver com quem faz as narrativas. E o facto de terem sido homens etnomusicólogos, não valorizaram essa questão. Essa é uma das músicas que têm esse lado. A outra é “A Chantar”, da Beatriz Dia, uma composição do séc. XII. É a peça mais antiga que se conhece em notação que tenha sido escrita por uma mulher, que não seja num contexto religioso. Quando falamos de música trovadoresca, é muito raro. Esta mulher é transgressiva, no sentido em que ela ocupa um lugar que não é nada dominante no seu tempo. Isto mostra-nos que em todas as épocas houve resistências. Vai contra a ideia de que “as mulheres nunca existiram”. Elas estavam lá, e elas estiveram sempre a sentir o que é o peso do patriarcado. E vais tendo alguns exemplos de transgressão que, só pela sua vivencia, eu diria que são formas de ativismo.

Achas importante um artista ter um papel ativo, ter uma mensagem mais politico-social, ter isso presente na sua arte?

A minha posição sobre isso é muito clara. Eu tenho uma opinião, e isso não é a verdade, é a minha opinião. Não é só minha, vai na linha de um pensamento que indica que o pessoal é político, ou seja, tudo o que tu fazes a nível pessoal é político, tudo o que tu crias, é político. Mesmo que tu digas que não é, isso é um posicionamento e é um posicionamento de falsa neutralidade. Nunca ninguém está neutro, tu podes é estar mais consciente ou menos consciente de onde é que te posicionas. Agora, eu não pretendo propriamente passar uma mensagem, no sentido programático, relaciona-se mais com a minha vivencia, com quem eu sou, e isso é indissociável das coisas que eu crio. No fim do disco, eu não estou à espera, nem foi esse o objetivo, que as pessoas fiquem com mais informação prática, útil. O disco é uma experiência estética, mas ela está impregnada da minha vivencia e destes assuntos que me interessam. A questão é que eu estou muito consciente sobre eles e sei quais são, sei de onde é que eu venho e onde me posiciono.



Começaste a aprender música com que idade? A tua ligação à música começou desde pequenina?

Sim, comecei a estudar com 9 anos. Fiz aquele percurso muito tradicional, comecei a estudar muito cedo. Nem sei bem porque é que eu pedi para aprender música, deu-me para ali. Foi-me dada a opção de fazer uma atividade extracurricular, e eu pedi música. Eu até queria ter estudado piano, mas o piano era um instrumento muito caro. Então, acabei por estudar guitarra e depois, aos 16 anos, fui para o Conservatório, fiz o curso de canto. Acabei e fui para a Escola Superior de Música. Na verdade, estive sempre a estudar música, embora só, provavelmente aos 20 anos é que vi essa minha atividade como algo potencialmente profissional. Até aí era só uma atividade que me dava prazer e que eu fazia por paixão. Eu não achava que a minha profissão ou o meu trabalho fosse passar por aí.

E ao longo do teu percurso, houve algum momento que te tenha marcado mais, que tenha marcado quem tu és hoje enquanto artista?

É difícil escolher um momento, eu acho que há vários momentos que me foram marcando, ou concertos que eu vi, pessoas que me inspiraram. A nível académico, sou capaz de ter isso mais presente do que a nível artístico. A nível académico, os momentos que me marcaram estão relacionados com os livros que li, a informação que li que me deu aquela sensação “Uau! Eu meio que já sabia isto, mas eu não tinha um nome para isto!” Ou seja, não tinha tomado consciência. Eu sei que isto é um bocado cliché mas, de facto, o livro “O Segundo Sexo” da Simone Beauvoir abriu-me a cabeça. Houve outros livros que me marcaram, como a “Teoria Feminista” da bell hooks. Houve uma sequência de livros que fizeram sentido. Embora seja mais difícil de ler, o “Manifesto Contra-Sexual”, de Paul B. Preciado, também teve momentos em que senti os neurónios a “bater palminhas”. Destacaria esses momentos.

Lançaste um disco juntamente com a Paula Sousa e o André Rosinha, “À Espera do Futuro”, durante a pandemia. Achas que isso vos condicionou de forma negativa? 

Acho que não, foi uma oportunidade. Obviamente, não esquecendo todas as coisas negativas, o impacto negativo que a pandemia teve para a nossa área, que é muito vulnerável e muito precária. Mas ao mesmo tempo surgiu ali um espaço, um vazio, havendo oportunidade de ocupar esse vazio, que habitualmente está ocupado com mil e uma tarefas, aulas, etc. De repente, vimo-nos ali, na situação de ter algum espaço e algum tempo para poder escrever música, para poder tocar e para poder gravar. Eu acho que foi mais positivo do que negativo. Não nos podemos queixar muito, tivemos bastantes concertos com esse disco, tocámos em alguns festivais, fomos bastante privilegiados nesse contexto.



Sabemos que investigas a situação das mulheres na música, nomeadamente no jazz. Como te sentes em dois papéis em simultâneo: o de objeto de estudo e, ao mesmo tempo, o de investigadora desse mesmo objeto de estudo?
 

Do ponto de vista da investigação, é muito vantajoso. Eu tenho um conhecimento muito situado, sou uma “insider”, tenho a experiência vivida daquilo que estou a investigar, e isso é uma vantagem. Há uns tempos vi uma “story” da Keyla Brasil que me fez concordar. Ela e muitas pessoas trans da Casa T recebem solicitações de doutorandos, mestrandos em antropologia e sociologia, diferentes áreas das ciências sociais, que querem estudar o corpo da travesti, que querem investigar as pessoas trans, e são pessoas cisgénero a quererem fazê-lo, e que vão capitalizar esse estudo. E ela falava sobre isso na “story”. Eu acho isto interessante. Evidentemente e eu acredito na boa intenção das pessoas que o fazem, com o seu compromisso com a justiça social de um investigador que quer estudar este tema, mas não podemos esquecer as pessoas que são objeto. Há aqui um problema, um risco de capitalização da vivência dos outros. E essa é a minha vantagem, ou seja, eu crio a minha própria narrativa. Do ponto de vista da investigação, eu falo da minha própria vivência, minha e das pessoas como eu, tenho um lugar de fala. Do ponto de vista artístico, é um conflito. Eu estou consciente de que me posso colocar em risco ao levantar problemas, ao criar situações que podem ser de desconforto. E quando tu estás à procura de algum tipo de mudança, há desconforto. Eu acho que é muito difícil haver mudança sem existir a sensação de desconforto. Ela vem de um desconforto em que tu fazes perceber aos outros de há ali qualquer coisa que não está bem, e isso causa desconforto. E o que eu espero que haja a seguir ao desconforto, é a conciliação. O meu ativismo, e o ativismo em geral, não é uma procura do problema pelo problema. isso às vezes é uma perspetiva um bocado preconceituosa dos ativistas, feministas, antirracistas, etc., de que estas pessoas só querem problemas, estas pessoas querem vitimizar-se, querem queixar-se. Não é isso. Nós levantamos problemas para os resolver e a resolução tem de passar por um entendimento coletivo. Claro que, para mim, também já houve fase de desconforto, porque eu também sou uma pessoa com muitos privilégios e quando eu me confronto com o meu lugar de produção de opressões, por exemplo como pessoa branca, e quando eu me dou conta de vivências que eu tive e tenho, e com certeza terei, racistas, e me dou conta, isso provoca-me um profundo desconforto. Portanto, eu consigo entender o que é esse desconforto, quando tu tens um privilégio e te é dado a entender que o que estás a fazer não é fixe. Mas o que acho que vem a seguir é procurar informação, educação e reparação. Como artista, estou num meio que continua a ser predominantemente masculino, dependo dos meus interlocutores e dependo de, às vezes, ver se não me antagonizo muito com eles. Esta negociação às vezes é bastante delicada. Eu não posso dizer que eu nunca me senti ativamente prejudicada, não sei se isso poderá acontecer ou não. Ao mesmo tempo, também sinto que há muitas pessoas, muitos desses interlocutores que estão muito interessados em mudar esta forma desequilibrada de poder. São os aliados com quem eu tento rodear-me. Tenho beneficiado de alguma solidariedade nesse ponto de vista, não me posso queixar muito.

Onde é que poderemos escutar-te nos próximos tempos?

No próximo dia 27 de maio, sábado, vou estar às 17h na Casa Fernando Pessoa. Vou estar a apresentar o disco “Livro de Horas”, com o Luís Barrigas no piano, a Mateja Dolsak no saxofone, o Jorge Moniz na bateria e o Mário Franco no contrabaixo. Vamos ter duas convidadas, a Edvania Moreno no violino e a Femme Falafel, que estará também a cantar comigo num tema dela, que integra o disco. A entrada é livre. No dia 1 de junho estarei no Brown’s Hotel, em Lisboa, com o André Rosinha e o André Silva, no ciclo de jazz com a curadoria do Rui Miguel Abreu. A 3 de junho, a convite do Paulo Ribeiro, estarei num espetáculo em Beja chamado “Invisível a meus olhos”, que é um tributo ao poeta Al-Mu Tamid, que era um poeta do Al-Andaluz, que esteve muito em Beja. Vou estar também em julho com Leida, o ensemble de vozes da Mariana Dionisio, em residência artística em Coimbra, e vamos ter um concerto a 6 de julho. No dia 28 de julho estarei também com Leida no ciclo “Noites de Verão” da Filho Único em Lisboa.

  

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beatriznunesmusic.com

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