Quando tudo muda, tudo fica na mesma
De fã de James Brown a como ser um grande músico de jazz: praticar, praticar. John Scofield fala-nos da guitarra, de festas, de suor e do destino: “Quando ouvimos os grandes músicos de jazz (...) e nos contam uma história. É para aí que eu quero ir”.
A propósito da sua visita à Amadora, falámos com um dos grandes guitarristas americanos. No fundo no fundo, a coisa é simples: estudar.
Importas-te se começássemos a entrevista com uma pergunta sobre o Mick Goodrick?
Uau, claro que sim.
Ele tinha esta ideia que o propósito da música é o de permitir que cada um encontre a sua linguagem pessoal e que isso acrescentaria linguagens e uma diversidade de vozes ao mundo. Como é que estas ideias do Mick influenciaram a tua carreira?
Ele disse tantas coisas sábias.... e era um grande músico. Para mim, ouvi-lo tocar, sentar-me numa sala e ouvi-lo tocar, foi mesmo o que mais impactou em mim. Porque a primeira vez que o ouvi (foi provavelmente em 1970) era mesmo uma forma nova e avançada de tocar guitarra no jazz. E poder ouvir uma pessoas destas, ao pé de ti, foi maravilhoso.
A primeira vez que te vi tocar ao vivo foi há muito tempo, creio que na tournée do “Still Warm” e nessa altura usavas uma guitarra “solid body” – tal como o Bill Frisell, o Abercrombie, Terje Rypdal e creio que a maior parte dos guitarristas da tua geração. Mas agora toda a gente regressou ao som mais tradicional da guitarra electro acústica. Porque é que achas que todos os guitarristas mudaram para o “hollow body”?
Bem, sabes, na capa do disco eu estou de facto com uma ”solid body”. Mas eu acho que quando comecei os concertos dessa tour levei a minha Ibanez semi-acústica. É a mesma que eu ainda toco. De vez em quando toco numa espécie de Telecaster, mas na maior parte das vezes vou pela semi-acústica. Eu não tinha reparado que o pessoal está todo a regressar às “archtops”...
... e ainda, muitos dos jovens que saem das escolas de jazz estão a tocar bebop. E as guitarras grandes como a L5 ou a 175 são perfeitas para essa música. Poderá ser uma explicação, mas não sei...
Ouvindo o disco reparei que ainda usas alguns efeitos, um looper.... talvez o “Freeze” da Electro Harmonix
Não eu não estou a usar o “Freeze”, é outro, o “Boomerang Phrase Sampler” e todos os efeitos que eu estou a usar vêm do Boomerang
E no “Not Fade Away” do Budy Holly não há um Reverse Delay... (o que me pareceu uma ideia mesmo poética)... mas já não há distorções ou overdrives. Fartaste-te do som do overdrive?
Ahhhhhh... olha... não sei... não, de todo. O que acontece é que nesse disco os sons que eu estava a usar era aqueles que me parecia apropriados naquele momento. E ultimamente, muito do overdrive que estou a usar é o do amplificador, “puxo” o som do amp... ou meto só um bocadinho de nada de overdrive num pedal. Eu não estou nada cansado do som do overdrive, eu ainda o uso, mas nesse disco não apareceu... Acho que foi só isso.
Tu e outros guitarristas da tua geração mantiveram ao longo dos anos motivados para explorar novos caminhos, novas ideias, novos sons, novas técnicas. E ficaram, de algum modo, mais perfeitos. Perfeitos, deixa-me esclarecer, não no sentido de ficarem tecnicamente mais acrobáticos e mais rápidos, mas na capacidade de serem mais expressivos. O que é que te mantém motivado para continuar a explorar e à procura de coisas novas?
Bem... eu só quero melhorar. Só quero “get it right”, o que nunca vai acontecer porque somos seres humanos. Sabes, uma vez o Jim Hall – quando já era idoso – disse-me: “eu só quero continuar a ser melhor”... acho que somos todos assim. Eu ainda tenho a sorte de ter energia para praticar, ainda tenho interesse em praticar. Algumas pessoas perdem o interesse, à medida que envelhecem. Mas eu não! Eu ainda penso nisto todos os dias e ainda quero tentar ser melhor. E para mim, parte de ser melhor é conseguir ter um som mais “soulful” na guitarra. Eu faço escalas, trabalho com colcheias, linhas. Mas a parte expressiva da guitarra é muito importante e não nos podemos esquecer dela.
A minha base de miúdo, quando comecei a tocar guitarra são os blues; por isso sempre fiz “bend” (puxar a corda para aumentar meio tom ou dar um vibrato à nota, típico no blues). [Risos]
[Risos] Então nunca sentes: “Agora cheguei lá, agora está perfeito”?
Eu consigo sentir: “Olha tive um dia bom”; e depois sinto-me otimamente, “oh, eu hoje soei mesmo bem”. E depois, no dia seguinte, tenho um dia mau e penso: “o meu som foi uma merda!”. E é nessa altura que dás um passo atrás e voltas a praticar. É esta a história da minha vida... [Risos]
Sabes, se eu soasse todos os dias mesmo bem, não tinha que provar nada: mas infelizmente não soou... e por isso quero ser melhor. Isso ainda é importante para mim, ainda me importa.
Gosto tanto dessa ideia. Que ainda te importa....
A verdade é que eu ainda pratico todos os dias e eu acho que toda a gente é assim. Quando já não precisares de praticar é porque já não és bom. No jazz, ninguém se consegue manter em atividade sem praticar. É impossível.
No teu pensamento musical, tu és tão experimental como queres ser ou de algum modo procuras criar um equilíbrio entre aquilo que queres e aquilo que o público espera de ti, quer ouvir de ti?
Sim... sim... sim.... não é esta a resposta certa, não é suposto fazê-lo. Ou não sou suposto dizer que o faço. Eu sou um artista criativo, e para ser criativo tens que experimentar coisas novas. E subitamente descobres uma coisa nova, e aquilo está a resultar, na tua opinião. E noutras vezes, a experimentação não funciona, e eu penso: “Ó meu Deus, a plateia detesta-me!”
[Risos]
Por isso é que te digo que penso nos espetadores, penso naquilo que eles gostam ou podem gostar; eu sinto a “vibe” da sala. Claro que coisa diferente seria “vou satisfazer a plateia e tocar guitarra atrás das costas e andar de um lado para o outro a rebolar no palco. Isso pode fazer as pessoas muito felizes, mas tu estás a ser um imbecil, e isso é horrível. Há que estar vigilante.
Penso que toda a gente está atenta aos espectadores e é impossível não estar – porque o sentimos.
Por isso quando estás a tentar fazer as tuas coisas, estás a tentar estar ao nível do que tu sabes que tens como artista, e ao mesmo tempo sentes que aquilo está a funcionar com a plateia, é perfeito. Tentas fazer coisas que satisfaçam ambos, porque se não te satisfaz a ti, não presta. E se não tens espetadores....
... Não presta...
Não funciona, meu...
O James Brown tem uma frase que eu adoro que diz: “there are two sides to show business: there is the show and there is the business”...
[Risos] Yeah!
Fora do jazz, que músico ou músicos tiveram uma influência grande em ti?
O James Brown! O James Brown, de certeza, meu. Quando nós, putos brancos, a viver nos subúrbios, ouvimos James Brown – e isto no início dos anos 60 – aquilo rebentou-nos a cabeça! A música soul – e isto pode parecer-te alucinado – mas nos Estados Unidos, a soul tomou conta da música pop nos anos 60 do século passado. Havia todo o tipo de pop, os Beatles e tudo o mais, mas uma das mais interessantes era a música soul. E eu papei a soul toda. E, claro, James Brown: fui ao espetáculo dele ao vivo – aquilo foi inacreditável! Só depois vieram os tipos do blues para mim.
Confesso que não estava nada à espera dessa resposta. É espantosa para mim. Até porque eu sinto que a soul da Stax, o Steve Cropper em particular, foram importantíssimos para mim também.
Yeah! Toda a gente devia aprender a tocar aquilo!
[Risos]
Eu estou a dizer-te onde é que comecei – e na verdade, aquilo do James Brown, aquele funky sincopado, aquilo era complicado e tinha um feeling jazzístico. Todos os músicos de jazz adoram aquilo: o Miles, o Herbie Hancock, ambos, adoravam James Brown.
Eu também adoro e por vezes acho que ele vê todos os instrumentos como se fossem tambores.
Totalmente. O ritmo ali é fundamental. Outra coisa que eu aprendi com ele foi que eu não consigo ser aquilo. Por muito que goste ou queira, não consigo ser a guitarra do James Brown. Não sou eu, é outra pessoa. Mas aquela música era inacreditável, uau!
Vou voltar à guitarra... como é que vês a tua relação com a guitarra elétrica?
Eu comecei na guitarra elétrica. Em miúdo tinha acústica, e todos tocávamos guitarra acústica em casa, mas eu quando era muito novo e comecei a tocar em bandas, comecei com a elétrica; aquelas bandas estúpidas da escola, com o resto do pessoal. Juntávamo-nos, ensaiávamos, e depois íamos tocar nos bailes de High School. E durante esse tempo todo, o som, saía do amplificador. Por isso eu sempre toquei elétrico. Para que a guitarra funcione numa banda, com baixos e baterias, ela tem que estar ligada.
E à medida que fui envelhecendo percebi que tinha que ensaiar com um amp. Só praticar na guitarra não chegava, não era a mesma coisa. O amp faz parte da equação.
Mudar da palheta para os dedos muda alguma coisa na tua forma de tocar?
Eu sempre toquei com os dois: “pick” e dedos. Se eu começasse hoje, talvez usasse apenas os dedos. Eu adoro aquele som do polegar do Wes Montgomery. O som que obténs com os dedos é tão melhor que o da palheta, sabes... Mas. Não sei. Agora uso os dois. De vez em quando escondo a palheta na palma da minha mão e uso o polegar, indicador e médio. Ou ponho a palheta na boca e toco com os dedos todos. Ando sempre entre um e os outros. Estou habituado à palheta para linhas melódicas. Mas adoro o som dos acordes quando os fazes com os dedos todos em simultâneo.
A minha próxima pergunta é sobre a relação entre a proficiência técnica e a musicalidade. Porque por vezes tenho a impressão que quanto mais evoluis tecnicamente, mais tens vontade de o mostrar. Isto não é de todo o teu caso, porque sentimos a enorme técnica, mas soas sempre quente, original e musical. Como é que vês este equilíbrio entre a melhoria técnica e a capacidade de a usar sempre em favor da musicalidade e da criatividade?
Eu quero ser capaz de tocar rápido e ter uma técnica bestial, como toda a gente. Mas quando eu comecei, a música de que eu gostava era sempre de cantores e secções de metais. E eu gosto disso, continuo a ir até essa música. Eu não sou um virtuoso como alguns. Talvez se tivesse mais técnica, talvez fosse mais show-off [risos], mas é sempre um equilíbrio. Fazes as duas. Eu percebi que aquilo que gosto na música é a canção, a soul, e o ritmo. Por outro lado, penso que ando a treinar coisas técnicas e que as quero usar. E o jazz é uma mistura das duas e temos que temos que ter cuidado porque nunca soamos bem quando estamos “playing for chops” (chops = o nível de técnica de um músico em termos da capacidade de executar música extremamente rápida). Soa-me sempre estúpido. E depois quando ouvimos os grandes músicos de jazz, os grandes da música, que se elevam acima disso e nos contam uma história. É para aí que eu quero ir.
E como é que desenvolves a tua técnica de improvisação. Como é que pensas nos processos de exercício da improvisação e como é que os desenvolves?
Eu penso em possibilidades para improvisar: como é que eu reduzo o grau de aborrecimento ao improvisar. Usando sons diferentes, técnicas diferentes, diferentes partes da guitarra, diferentes ritmos; tocando lento, tocando rápido, tocando acordes, frases curtas ou frases longas, duas notas simultaneamente, vozes... e falo disto com músicos com grandes músicos que têm o mesmo tipo de conversas comigo a partir dos seus instrumentos. Falar. É a falar sobre a técnica de tocar jazz e de como ser mais expansivo nos solos que me desenvolvo.
E depois há tanto para ouvir nos mestres e pensar: como é que eles fizeram isto? No fundo é só....estudar música.
Quais são as mudanças mais significativas na indústria musical que foste vivendo ao longo dos anos e como é que estas mudanças afetaram a tua forma de pensar a música e até aquilo que falávamos há pouco, os limites da criatividade?
Isso é muito interessante... tu disseste “indústria musical” e nesse campo vimos uma mudança inacreditável. É mesmo estimulante ter vivido o tempo que eu já vivi e poder assistir – e tu também, já andas nisto há algum tempo - a estas mudanças. Quando comecei havia imensas hipóteses de tocar ao vivo. Um dos bons negócios nesse tempo era ter música ao vivo em nightclubs e bares (sítios muitas vezes terríveis, mas onde podias tocar para pessoas e ganhar dinheiro). Isto já não existe de todo, da mesma forma. Por isso hoje ser músico profissional é mais difícil.
E depois mudou também o acesso à música: hoje é extraordinariamente fácil ter acesso a música gravada. Então essa foi outra grande mudança. Por isso já não há tantos concertos para músicos novos mas, por outro lado, podem aprender tendo acesso a tanta música no telemóvel; e é por isso que estão a ficar mesmo bons!.
Para mim eu acho que nada mudou. Estou no mesmo caminho em que sempre estive, a tentar aprender música como sempre tentei, a trabalhar nas coisas em que sempre trabalhei, a procurar avançar como músico, como sempre procurei, a escrever música como sempre fiz. Mas o mundo mudou tanto... agora a Inteligência Artificial ... cuidado, eu nem sei o que isto vai significar.
De certo modo é reconfortante ouvir isso, que tudo mudou mas que tudo fica na mesma. Nem imaginas a dificuldade que foi, em 1986, para poder comprar o teu “Still Warm”; mas agora é facílimo ter acesso ao disco... e tu continuas a fazer a mesma coisa que fazias em 86.... o que também é lindissimo. É bom saber.
No final das coisas a coisa resume-se a isto: se queres ser um bom guitarrista, tens que praticar. E isso não mudou nada. O que é diferente é que eles chegam lá mais rápido e também que toda a gente tem acesso a poder aprender, mas no final a coisa é igual para todos: tens que investir tempo.
E como é que compões? Tens alguma técnica especial, algum sistema, algum ritual?
Sim, eu acho que sim. Eu componho quase sempre na guitarra. O meu looper ajuda-me a compor. Não toco o suficiente piano para poder compor no teclado, por isso o looper ajuda-me. O que tenho feito nos últimos 20 anos é improvisar para compor. Se encontrar alguma coisa, fixo-a e gravo-a logo de seguida. E isso pode-se transformar no início de uma canção. Por isso, é a improvisar que eu encontro as minhas canções. E depois dou-lhes forma, por vezes durante meses.
Olhando para traz, há alguma coisa que tu terias feito de modo diferente na tua carreira como músico?
Sim!..... O que é que eu teria feito de modo diferente...?....Não podes voltar para traz.....
....Passei tanto tempo em festas... o que até foi até muito perigoso, na verdade; consegui sobreviver a isso e deixei de o fazer....
Acho que a única coisa que faria diferente era ser menos preocupado. Sabes eu preocupo-me imenso: será que estou a fazer isto bem, penso imenso nisto. Mas eu sei que temos é que seguir os nossos instintos e continuar com o que achamos que está certo naquele dia. E se for assim somos tão mais produtivos. “Don’t sweat it” era o que eu teria feito menos. Eu ter-me-ia preocupado menos e suado menos.
Última pergunta, John, e obrigado por este tempo e esta conversa tão boa: quão importante foi o Manfred Eicher (diretor e produtor da ECM, editora para a qual Scofield gravou em 2006 e para onde se mudou novamente em 2020) para a tua música?
Manfred... bem eu recomecei a trabalhar com ele agora. Fiz uns discos nos anos 80 como sideman, como o grupo do Marc Johnson (Bass Desires) que o Manfred produziu. Foi quando o conheci, no estúdio. E fiquei a admirá-lo. Ele parecia ser o único produtor que queria captar as partes criativas e pô-las em disco. Não se preocupava com mais nada. E isso, na altura, era incrível. E agora voltei a trabalhar com ele novamente – finalmente – o meu terceiro disco na ECM vai sair em Setembro deste ano. Ele é um grande amigo da música criativa e conseguiu ser tão bem-sucedido com isso, o que é admirável.
[Risos] Que resposta tão correta! Obrigado. Obrigado também pela conversa. Um bom dia e uma boa tour europeia. Vamos estar lá.
Apareçam no final nos camarins para dar um olá. Fico à espera.
Não tinhas acabado com as partys?