Eugénia Contente, 27 de Abril de 2023

A energia certa

texto: Nuno Catarino

Natural de Ponta Delgada, Eugenia Contente descobriu a música no seio familiar. Inicialmente fascinada pelos “guitar heroes” Yngwie Malmsteen e Steve Vai, descobriu mais tarde Jimi Hendrix e Stevie Ray Vaughan e passou pelo Hot Clube de Portugal. Agora, a guitarrista acaba de editar o seu disco de estreia, “Duckontente”, onde revela música fogosa sempre ligada à eletricidade. Antecipando a sua atuação no festival Amadora Jazz (13 de maio), Eugénia Contente fala-nos sobre o seu percurso.

 

Como é que nasceu a ligação com a música e com a guitarra?

A partir dos meus pais. Os dois tocam piano e o meu pai também toca guitarra. O meu primeiro contacto com a guitarra acontece aos 9 anos. Até lá, sentava-me ao piano a tentar imitar as coisas que os ouvia tocar.

Podes falar um pouco sobre o teu processo de aprendizagem musical? E consegues indicar quais foram os professores e momentos de aprendizagem mais importantes ao longo do teu percurso?

Os primeiros acordes foram-me ensinados pelo meu pai. Lembro-me ainda das folhas com os esquemas do braço da guitarra, com os pontinhos, onde os dedos tinham que estar para formar certo acorde. Depois, entrei numa fase autodidata até aos 18 anos, quando começo a ter aulas com o Miguel Mascarenhas. Ajudou-me muito a abrir os horizontes da improvisação e a direcionar o meu estudo. Sinto que, a partir daqui, comecei a perceber a margem de progressão que podia haver e a entusiasmar-me cada vez mais com as possibilidades deste universo. Um ano mais tarde, o Hot Clube de Portugal foi dar um workshop de jazz ao Teatro Micaelense. Participei e ficou cimentada a certeza de que queria estudar e saber muito mais sobre jazz. Defini aqui o objetivo de me inscrever na Escola do HCP.

Nasceste em Ponta Delgada, mudaste-te para Lisboa em 2010. Esta mudança foi importante para a tua evolução e aprendizagem?

Foi, muito. O leque de oferta cultural é incomparável. Em Lisboa, podia ir ouvir música ao vivo todos os dias. Em São Miguel, não era bem assim. Mas, ainda por cima, quando me mudei para Lisboa, vivia muito perto do Hot Clube. Ia lá 3 ou 4 vezes por semana, absorver o máximo que conseguia daquela música, que queria tanto aprender. Isto tudo em paralelo com um curso de arquitetura. A verdade é que, nesta altura, dediquei-me mesmo muito à guitarra. Ia para as minhas aulas da faculdade com um caderno que só tinha apontamentos sobre teoria musical e harmonia e só queria chegar a casa para ir tocar mais um bocado. Organizava os meus dias em função daquelas horas que eu queria estar a tocar.

Quem foram os/as guitarristas que mais te marcaram e influenciaram, particularmente nos primeiros tempos? 

Por influência do meu irmão mais velho, os primeiros guitarristas que ouvi foram nomes como Yngwie Malmsteen e Steve Vai. Guitar heros, com uma abordagem super técnica ao instrumento. Isto com 10 anos, enquanto os meus amigos ouviam Vengaboys. Mais tarde, ouvi muito Jimi Hendrix e Steve Ray Vaughan, que me fizeram perspectivar a música de uma forma muito menos mecânica. Já entrava feeling, já entrava som, já era sobre uma canção e não sobre a quantidade de notas dadas por segundo. Hoje em dia, guitarristas como Isaiah Sharkey, Oz Noy, Mark Lettieri e Cory Wong dizem-me muito.

Que discos (recentes) tens ouvido mais ultimamente?

Colei no “Something to say, do Cory Henry. Fora este, Twisted Blues Vol.1, do Oz Noy e Tsar Bomba, dos Kung Fu. Mas também sou fã de ir numa viagem longa de carro e deixar o algorítmo da plataforma digital decidir o que vai acontecer. Tanto vou a ouvir Cole Porter, como Buarque, como The Black Keys e fico toda feliz. 

Como surgiu o Eugénia Contente Trio? Que características pretendes imprimir à música deste projeto?

Tocar a música dos outros é uma ótima aprendizagem. Fi-lo e continuo a fazê-lo, de muito bom grado. Mas, a certa altura, senti que tinha coisas para dizer e que queria criar um espaço onde a liberdade era total, sem estar a pensar que tinha que estar a cumprir com o que alguém idealizou. E ver as próprias ideias a ganhar forma é, de facto, especial. Ver que faz sentido para mais pessoas é incrível. Acho que, talvez fruto de todas estas influências, a identidade do meu trio é associada a algo bastante enérgico, frenético e gosto de achar que é dentro de um universo “dançável”, também.

No teu grupo, Eugénia Contente Trio, tocas com Gabriel Salles Silva (baixo) e Luís Delgado (bateria). Porque escolheste tocar com estes músicos?

Toquei durante muito tempo numa banda de covers, chamada Safarah, residente no bar Tokyo, com estes dois músicos e amigos. Crescemos musicalmente juntos e temos uma ligação muito grande e orgânica em palco. Para mim, fez todo o sentido avançar com isto com eles ao meu lado. Acho que têm a energia certa para a música que escrevo.



A antecipar o disco, lançaste dois singles, “Rubber Duck” e “Django Avishained”. Esta última é uma homenagem “mista” a Django Reinhardt e a Avishai Cohen (contrabaixista)?

Precisamente. “Django”, por remeter, de certa forma, à esfera do Tarantino e “Avishained” porque os kicks do solo de bateria são inspirados no tema “Smash”, do Avishai.

Além do teu trio, tens tocado com vários grupos e projetos. Em que projetos tens estado mais envolvida?

Toco na banda da Ana Bacalhau e na banda do Ivandro. No ano passado, fiz também a tour do Bispo, fiz umas datas com o Leo Middea e gravei os álbuns de Nico Drums & Blues, Mila Dores e Fábia Maia.

Participaste na peça de teatro “Ensaio de Orquestra” de Tonan Quito, a acompanhar a Orquestra do Hot Clube de Portugal. Como foi esta experiência? É algo que te interessa, a par da música, estar no palco a fazer teatro? E a ideia de criar música para teatro?

Foi muito interessante, como experiência isolada. Não acredito que seja a minha praia e não sei se não será um bocado doloroso para um ator a sério ver-me a tentar debitar texto. Mas dei o meu melhor, isso é certo. O mais incrível foi dar por mim, no meio da Orquestra do Hot, no meio do CCB, a tocar música escrita pelo Filipe Melo. Foi mesmo emocionante para mim estar no meio de tantos craques, que me fartei de ouvir no Hot Clube, quando vim viver para Lisboa. Só tenho a agradecer ao Filipe e ao Gonçalo Marques por me terem incluído na aventura. Já fazer música para teatro, parece-me mais realista e mais próximo daquilo que eu acho que faz sentido para mim.

O universo musical é predominantemente masculino (particularmente com guitarristas, as referências são sobretudo masculinas). Ao longo do teu percurso, sentiste discriminação em função do género?

De facto, há uma grande falta de representatividade de mulheres instrumentistas, quando comparado com o universo masculino. E é provável que isso venha de razões estruturais mais profundas. Por outro lado, não ter nenhuma referência feminina a tocar guitarra não se traduziu, felizmente, num desencorajamento para o fazer. E o que eu já senti foi que, de repente, estavam a olhar para um alien, porque não estavam habituados à imagem de uma mulher a fazer o que seria, pelo menos, mais “normal”, se fosse feito por um homem. Ou seja, o culto do “para mulher, até toca bem!” existe e é uma desgraça. Como se fosse muito surpreendente termos capacidades semelhantes de produzir música ou de dominar um instrumento. Como se ser mulher fosse impeditivo. Pois, não me parece que seja. Houve outros casos em que fui descartada como opção por motivos logísticos. Exemplo: “mas, sendo rapariga, vai ter que ter um quarto à parte e isso já são despesas a mais, por isso não a vamos chamar”. Por outro lado, já fui chamada para muitos projetos por ser mulher. Porque queriam uma banda só de miúdas. E aqui dá a volta. Porque o conceito é quase “nem interessa bem se tocam, desde que visualmente se cumpra o objetivo”. E é uma zona cinzenta, porque idealmente seríamos chamadas pelo nosso desempenho primeiro e por outras razões, que não têm a ver com música, em segundo plano.

Como vês o atual panorama do jazz em Portugal?

Acho que há cada vez mais malta nova a tocar muito bem. Olho para músicos como o Rodrigo Correia, Tomás Marques, Diogo Alexandre e impressionam-me sempre. Estão ali ao lado das grandes referências do jazz nacional e não há gap nenhum. O nível está muito alto! 

Quais são os teus planos para o futuro?

Idealmente, o sonho passaria por ir em tour internacional com a minha música. Alargar o formato, quem sabe. Quero continuar a compor, gravar e tocar ao vivo, rodeada de amigos e músicos incríveis, com quem quero aprender e evoluir. 

 

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