José Duarte - Inédita em Portugal, 13 de Abril de 2023

Uma semana com José Duarte... em Luanda (1972)

texto: José Andrade / Jerónimo "Gégé" Belo

Em homenagem a José Duarte, que nos deixou a 30 de março, a jazz.pt publica uma entrevista até agora inédita em Portugal, dada à estampa originalmente no semanário A Palavra, de Luanda, em novembro de 1972, aquando de uma passagem do divulgador português pela capital angolana. Conduziram a entrevista José Andrade e Jerónimo “Gégé” Belo.

 

Nota de enquadramento:

A entrevista realizou-se em Luanda, na então Avenida do Brasil, actualmente Avenida dos Massacres, num 6.º andar, onde morava o José Andrade (ZAN). José Duarte foi a Luanda passar uns dias de férias para descansar, depois da morte do filho João. Não conhecia Angola. Escolheu Luanda exactamente porque desconhecia o país e tinha muita curiosidade. A entrevista/conversa foi conduzida por José Andrade e Jerónimo Belo (Gégé Belo). Estiveram presentes: Teresa Duarte, Sílvia Belo, Domingos Coelho, António Belo, Carlos Cohen, José Andrade e Jerónimo Belo. Durante a sua estada em Luanda, José Duarte foi apresentado a várias personalidades ligadas à luta de libertação nacional e à música, designadamente Liceu Vieira Dias, o criador do Ngola Ritmos. A entrevista foi publicada em Novembro de 1972 no Semanário A Palavra, propriedade do jornalista Renato Ramos. O Semanário não tinha nada a ver com o regime colonial, que vigorava em Angola. Era bastante crítico e empregava jornalistas nacionalistas, designadamente Aires de Almeida Santos, poeta, que foi um dos presos da PIDE/DGS.

Jerónimo Belo, abril de 2023

 

Sem dúvida que a palavra “jazz”, em Luanda, representa para a grande massa populacional uma surpresa e muitas vezes, infelizmente, até talvez uma incógnita sem qualquer solução ou comparação ou igualdade. Consequentemente, continua-se a ignorar simplesmente toda a relação com o jazz e qualquer esforço da parte dos órgãos informativos desdobra-se numa fileira de zero-nulidade. Mas aconteceu que José Duarte esteve em Luanda. Incógnito para a imprensa, somente reconhecido por uma roda de amigos que, para o leitor mais ou menos assíduo de qualquer periódico local, os seus nomes nada dizem: simples estranhos dentro do panorama geral jornalístico. Pois. José Manuel Duarte é uma das grandes figuras/autoridades no país em matéria jázzica. Como se poderia deixar ao acaso, em branco, a sua presença, aliás uma presença extra-musical que o colocou brevemente no nosso burgo, não tentando uma aproximação que jamais previ? Logo, um acontecimento: para todos os jazzfans, para todos os “art lovers”.

Foi um círculo de amigos estranhos, anónimos, que conversou jazz com ele.

Uma sexta-feira à noite até ao “bom dia” de sábado convivemos – J. D. falou, relacionou, observou, até as nossas dúvidas estarem quase totalmente dissipadas.

Zé Andrade: Quais são as suas atividades de jazz na Metrópole?

J.D.: Tenho três programas de rádio: dois diários e um semanal, todos na Rádio Renascença. São transmitidos simultaneamente em ondas médias e FM e o mais antigo, que vai fazer 6 anos em fevereiro, chama-se “5 Minutos de Jazz” e tem uma audição muito grande. Já fiz dois mil e tal números. Paralelamente, escrevo de vez em quando para o Diário de Lisboa. Além disso, sou correspondente da Down Beat em Portugal e duma revista que se chama Jazz Forum, que é órgão da Federação Europeia de Jazz.

Zé Andrade: E as diretrizes que segue na programação?

J.D.: Antes de fazer referência às diretrizes que sigo nos meus programas, quero dizer que a rádio é o meio ideal para a divulgação do jazz em Portugal – põem-se uns discos e as pessoas reagem, vão-se habituando ao som, através do disco e à problemática, através do texto, que escrevo e leio. Mas ao nível da imprensa a coisa torna-se mais difícil porque não há motivação: um tipo está ou a traduzir textos estrangeiros que estão situados num contextos que não têm significado em Portugal, ou a fazer críticas de discos que não se vendem no país, ou ainda a falar de concertos que se realizaram noutros países e de correntes a que o público português está completamente alheio. Isto representa realmente uma falta de motivação e deixa de haver entusiamo.

A minha orientação nos “5 Minutos” é basicamente semelhante para os três programas, mas é uma intenção de pura divulgação ao som, ao nível do disco. Não devo impor gostos pessoais e por outro lado acho que nem devo cair em extremos de jazz de museu nem de jazz de moda. Apesento, por exemplo, dez trompetistas, dez estilos, a violência nos Estados Unidos, álbuns inteiros faixa a faixa. O texto, que considero importante, a maior parte das vezes tem pouca relação com a obra origina, onde a música há-de valer por si mesma, sendo por tal um complemento, uma opinião pessoal.

Zé Andrade: Segundo entendi, não há qualquer discriminação entre este ou aquele artista de jazz, mesmo quando se trata, por exemplo, de um Dave Brubeck...

J.D.: Dave Brubeck nunca entrou em nenhum dos meus programas. Há um critério mínimo básico que está sujeito aos meus princípios musicais. Brubeck é um mau músico de jazz, de fortes influências europeias que não têm efetivamente a negritude mínima necessária.

Zé Andrade: Então como é que se explica a união Dave Brubeck-Gerry Mulligan?

J.D.: As conceções jazzísticas de Gerry Mulligan são dignas de todo o respeito, têm valor musical. A união Brubeck-Mulligan é comercial, cíclica: Brubeck faz uma música que vende e vende a música que faz, e a partir desse ciclo não avança. O ser bom pianista, que é, nada tem a ver com o ser bom músico de jazz.

Zé Andrade: Qual a razão da não aceitação do jazz em determinadas regiões de África?

J.D.: A música da América tem grande base em África, a “Mãe África”, como diz Dizzy Gillespie. De África partiram, para dois continentes, negros que foram para a América do Norte e América do Sul onde originaram dois tipos de música totalmente distintos. Claro que esses tipos de música, nem são música africana, nem música americana, até porque toda a música folclórica dessas regiões fora esmagada. Assim, a música africana originária encontrou outras culturas, com uma simultânea adaptação. O que é interessante observar é que em África a aceitação desses dois tipos de música é completamente distinta. Enquanto que o samba na América do Sul tem fartas possibilidades de ser aceite, o jazz nem por isso. Foi-me explicado que na costa ocidental de África predominam, a Norte, os instrumentos de sopro, e, mais para o Sul, a percussão. Fundamentalmente, o jazz ganhou em contacto com os anglo-saxónicos um ar muito mais sofisticado, enquanto que o samba continuou a ser uma música bastante popular. O “samba do morro”, a batucada, e não a bossa-nova que foi um movimento “cool” no jazz dos Estados Unidos, isto é, uma opção, uma opinião branca sobre a música negróide. Digamos que o “samba do morro” está para o blues e canções de trabalho como a bossa-nova para o cool e essas correntes da West Coast.

 

Entrevista a José Duarte (jornal A Palavra, Luanda, 1972)

 

Zé Andrade: A corrente free jazz origina por parte dos observadores, uma analogia com o caos...

J.D.: A liberdade musical entendida ao nível do free nada tem a ver com caos. É capaz é de ser um alheamento das regras estruturais que essas pessoas dominavam e hoje confundem com caos. O jazz, realmente, não é uma música fácil. Há tanta dificuldade em ouvir Ornette Coleman como Fletcher Henderson ou os grandes boppers dos anos 40. Já tive oportunidade de tocar discos de jazz antigo, de jazz moderno e de jazz contemporâneo. Julguei que se reagiria mal ao duplo quarteto de Ornette Coleman, mas foi precisamente o contrário: é uma música mais de acordo com a época em que vivemos... [passagem ilegível]

Zé Andrade: E a música de Miles Davis do disco “In a Silent Way”, onde situá-la?

J.D.: A música de Miles Davis para quem define será rock-jazz... mas para mim só a define assim quem usa umas grandes viseiras; quem não sabe quem é Miles, quem só conhece Miles a partir de “Bitches Brew” ou quem conhece Miles quando foi à ilha de Wight, porque doutro modo ter-se-á de dizer que Miles Davis permanece o mesmo dos tempos antigos, a mesma sonoridade, o mesmo grito. Agora modificou-a com o wah-wah, mas continua a mesma intenção de sons e fraseado. Simplesmente a atmosfera rítmica, essa música de encantamento que é hoje a obra dele... é uma opção diferente, o homem está enamorado por esse tipo de música. Dá-me a impressão é que Miles já esteve melhor do que está, quando se acompanhava de Jack DeJohnette, Chick Corea, Herbie Hancock e Ron Carter. A presença de Miles sempre esmaga os sidemen e por outro lado também os catapulta. Só se descobre que Wayne Shorter é um grande músico e um grande compositor quando está ao lado de Miles Davis.

Zé Andrade: Mas a grande percentagem das composições nos discos de Miles não são da pena de Wayne Shorter?

J.D.: Pouca gente se preocupa com isso. O nome do génio está à cabeça, é o quinteto de Miles Davis e ninguém se lembra de perguntar de quem é a composição.

Zé Andrade: E os discos de Wayne Shorter, “Super Nova”, “Schizofrenia” e “Weather Report”?

J.D.: Conheço todos eles e são ótimos. O “Weather Report” é sintomático, com Zawinul, na linha de Miles ou vice-versa, mas “Super Nova” tem uma graça! Maria Booker, cabo-verdiana que vive na América e grande amiga de Wayne Shorter, canta um samba de Jobim, em português, com um fio de voz monocórdico do mesmo tipo de “Insensatez”. A certa altura comove-se por estar rodeada de Shorter e outros grandes músicos e naquele ambiente – isto está bastante bem reproduzido! – falha-lhe a voz, cala-se com um soluço, fica tudo em suspenso até se ouvir o grito do sax soprano de Wayne Shorter! É o clímax quando todos entram a desmanchar!

Gégé Belo: Quando se pensa em jazz é associado à negritude. Verifica-se contudo que as pessoas que concebem jazz, brancas, fazem parte duma elite bem colocada na esfera social...

J.D.: Muito obrigado! Todos os grandes génios do jazz são músicos negros: Armstrong, Ellington, Parker, Coltrane. Mas acho que o jazz vive sob uma exploração branca. Tive oportunidade, há um mês e tal, quando fui até Varsóvia ao Congresso dos Críticos e Jornalistas Europeus da Federação Europeia de Jazz, denunciar essa situação e chamei-lhes a atenção para o facto de todos sabermos muito de jazz e sermos todos brancos e europeus. Se se não condiciona jazz na sua produção, condiciona-o na divulgação e referem-no a uma sensibilidade que é branca, apesar de haver casos onde existe uma intimidade com a expressão negra. Recentemente e com os novos movimentos da música negro-americana, tem-se verificado que críticos e escritores, não músicos, que divulgam jazz, são da raça negra, como LeRoi Jones, por exemplo. O jazz não é música popular nem mesmo entre os negros americanos, porque é música duma minoria mesmo negro americana. A verdadeira música negra americana popular é o rhythm´n´blues e a soul music. Aretha Franklin, Ray Charles, James Brown e a partir daí...

Gégé Belo: Mesmo entre os negros americanos há uma divisão no aspeto da audição?

J.D.: Sim, o que já não tem a ver muito com a classe em sentido social, mas com certo tipo de virtuosismo, de sensibilidade, de características artísticas, ou seja, o jazz é uma música de músicos.

Gégé Belo: Não haverá uma relação entre essas classes de audição e uma consciência política, ideológica?

J.D.: O jazz contemporâneo tem muito disso. No jazz antigo a própria música era um bocado ao nível político imediato. Claro que ao ser música duma raça, era música engagé, mas hoje em dia, as classes politicamente preparadas dentro da sociedade negra estão mais próximas da arte, logo mais próximas do jazz.

Gégé Belo: Michelangelo Antonioni utiliza música de jazz para preencher os seus filmes. Há uma relação muito grande entre jazz atual e a velocidade fremente das grandes metrópoles base dos seus trabalhos?

J.D.: Primeiro, que eu saiba, Antonioni nunca utilizou jazz em filmes. A música de “Blow Up” é de Herbie Hancock, mas que relação haverá com os discos, ou com a música que fez ao lado de Miles Davis? Antonioni sempre fez filmes sobre a evasão, sobre a alienação e as relações do jazz com o cinema têm sido infelizmente a esse nível. Repare-se que o jazz aparece no cinema geralmente como um comentário: ou é uma casa onde se vende a droga e em fundo vêem-se uns músicos a tocar, ou uma história onde se tem de ir a um bairro negro e lá estão eles a executar jazz... É sempre com um ar de caricatura e nunca como elemento ativo do filme. Antonioni confundiu a essência do jazz e como a considera uma música abstrata, fica muito a calhar nos seus filmes. Polanski recorria a um grande pianista de jazz polaco, compositor, mas a opção dele em relação ao jazz é comentário à vida moderna. Joseph Losey recorre muito ao músico inglês Johnny Dankworth. Os seus filmes versam a luta de classes e aí o jazz já me parece mais bem situado. Mas de qualquer maneira o jazz é sempre utilizado como instrumento intencional e raramente como arte, exceto... nos filmes de John Cassavetes, nos filmes de Shirley Clarke que é uma realizadora negra americana. O jazz aqui já não é uma banda sonora complementar, mas elemento de ação integrante da obra cinematográfica. No próprio filme de verão “Sait-on Jamais”, com o Modern Jazz Quartet, a música é muito bem escolhida, faz parte do “décor”, aquilo é tudo uma aristocracia decadente... e há umas rosas velhas...uns tons baços... fica muito bem nele e música do Modern Jazz Quartet.

Gégé Belo: Mas a música do Modern Jazz Quartet não é de tradição europeia?

J.D.: Isso deve-se ao profundo amor que John Lewis tem pela cultura musical ocidental. Tive oportunidade de falar com ele em Lisboa, e embora ele fale pouco e não tenha que explicar a sua música, é um homem que tem grande paixão por cordas e por expressões clássico-europeias, enquanto que a opinião de Milt Jackson, para mim o único músico desfasado do grupo e o único que vibra fisicamente com a música que se está a produzir em palco – a participação física que é essencial na música negra e no jazz em particular – Milt Jackson diz que aquilo é uma manobra de levar a aceitação do jazz a um certo tipo de sensibilidade.

Zé Andrade: Então há um choque entre Lewis e Milt Jackson?

J.D.: Há sempre. E a razão importante da sua união é o problema da sobrevivência.

Zé Andrade: Mas não sobreviverá Milt Jackson como vibrafonista em qualquer parte do mundo?

J.D.: E se eu lhe disser que Charlie Haden e outros músicos que estiveram na Metrópole contaram-me o que “fazem” por ano? Charlie Haden “faz”, em média, três mil dólares por ano. E porquê? Porque é um homem que não quer contemporizar com estúdios, com música comercial. Só quer a sua música. Porque apesar de estarmos em 1972 os grande dramas de sobrevivência dos músicos dos anos 40 repetem-se.

Gégé Belo: Há pouco fez uma relação entre a droga e o jazz quando se falou em cinema. Alguns músicos como Eric Dolphy, Wes Montgomery, John Coltrane, que morreram vítimas de droga... E essa relação?

J.D.: Acho que o consumo de droga altera, não digo piora nem melhora, altera simplesmente a capacidade criadora. Temos um exemplo flagrante que é Stan Getz. A sua obra é totalmente diferente do período em que se drogava. [passagem ilegível] E Getz era muito mais lírico, extra-terreno flutuava muito mais ao improvisar. Hoje em dia é um tipo mais terra-a-terra. É evidente que toda a alteração à constituição do artista motiva alterações na sua produção artística.

 

Foi um encontro de amigos. Durou muito, até ao dia em que voou “direct to Lisbon”. De 15 para 16 [de novembro de 1971] José Duarte acompanhou-nos ainda jazzicamente, aclarando montões de dúvidas, apontando directamente uma linha para além de qualquer divagação assimilatória. Mas, ironicamente, já começamos a usar termos dele, uma terminologia que julgo precisa. Hoje, acabando este trabalho que poderá ser importante para os curiosos, para qualquer leitor, para o simples construtor de palavras cruzadas e mais directamente para o jazzfan, verifico que outro tanto ficou por dizer... e J.D. já aterrou na Portela.

Encontro de amigos, um novo amigo que se reencontrará, os velhos amigos que continuam a ouvir o grande Coltrane, o “velhinho” “The Sidewinder” de Lee Morgan ou mesmo um Tony Williams popizante.

Zé Andrade

 

Nota: Esta entrevista foi publicada originalmente no jornal A Palavra, de Luanda, em novembro de 1972, e estava até agora inédita em Portugal. A jazz.pt foi fiel ao texto original, procedendo apenas a pequenos ajustamentos e atualizações. A jazz.pt agradece a Jerónimo Belo a cedência desta entrevista.

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