Esse lado espontâneo
Violoncelista com formação clássica, Raquel Reis tem vindo a descobrir progressivamente o mundo da improvisação. Em paralelo com a sua ligação à Orquestra Gulbenkian, tem um duo com o contrabaixista André Carvalho, integra o trio Üryan (com Tiago Santos e Gulami Yesildal) e participou no disco "Mt. Meru" de André B. Silva, entre outras colaborações e parcerias. Um dos seus projetos mais originais é trio Herse, com Sofia Sá (voz) e Clara Lacerda (piano), um grupo que se estreou no Festival Theia e que vai agora atuar na Festa do Jazz (dia 18, domingo, às 19h00 no Picadeiro do Antigo Museu dos Coches). A antecipar este concerto, estivemos à conversa com a violoncelista.
Como nasceu a tua ligação à música?
Desde pequena, tive o privilégio de poder ouvir música de todo o mundo e géneros musicais em casa, com um pai com excelente e muito abrangente gosto musical. Mais tarde, através da paixão pelo violoncelo, fui descobrindo que a música era o que mais me cativava, sempre senti uma grande vontade de me poder expressar através da música e tive a sorte de ter excelentes professores que me incentivaram a concretizar e aprofundar essa ligação com 'a minha voz do violoncelo'.
Como foi o teu processo de aprendizagem? Podes indicar professores/as ou momentos mais marcantes?
Julgo que foi mesmo muito importante a minha ligação afetiva, aos dez anos, com a minha primeira professora de violoncelo, Isabel Boiça. Desde cedo parecia que "tinha jeito" e, com ela, desenvolvi um gosto enorme em aprender música e em expressar-me através dela. Já na adolescência ficava horas a ouvir os concertos de violoncelo, que eram o meu refúgio. Paulo Gaio Lima e Hans Jensen foram os meus outros mestres com quem aprendi muitíssimo e criei as minhas "fundações".
Quais foram as tuas primeiras referências no violoncelo?
Jaqueline du Pré, Yo-Yo Ma, Pieter Wispelwey, Steven Isserlis.
Integras a Orquestra Gulbenkian desde 2007. Como tem sido esta ligação?
É uma relação já longa, de altos e baixos, com os quais tenho aprendido muito. É um orgulho pertencer à Orquestra Gulbenkian e tocar com grandes maestros como David Zinman e Kiril Petrenko e solistas como Pinchas Zukerman e Jean-Guihen Keyras, entre muitos outros. Tenho estado atenta ao impacto que tocar numa grande orquestra tem tido em mim durante tantos anos e noto que cresci bastante em termos musicais (desenvolvi muito o meu ouvido, o conhecimento das grandes obras da música clássica ocidental e a capacidade de tocar num ensemble tão grande, que é algo muito difícil). Em termos humanos, tenho desenvolvido também a capacidade de trabalho em equipa, a cooperação, as relações com os colegas. Julgo que estar na Orquestra Gulbenkian, sem dúvida um lugar privilegiado em Portugal, também me tem feito crescer como cidadã e pessoa.
Ao longo do teu percurso musical, tens estado sobretudo ligada ao universo da música clássica, mas ultimamente tens explorado a improvisação livre. Como descobriste o universo da improvisação? E o que te fascina neste universo?
Vinda do universo da música clássica, apercebi-me que o estudo e a prática desta música se torna muitas vezes talvez demasiado analítico e intelectual. Dvorák, Mozart ou Mahler, todos eles fazem citações de música popular nas suas obras. Por que razão, nós, "músicos clássicos”, não conseguimos tocar com a espontaneidade e a alma de um músico cigano? Sentia (e sinto) que me faltava algo como instrumentista. Na sequência de um workshop que fiz em Creta sobre música tradicional daquela ilha, comecei a interessar-me e admirar imenso a tradição oral, o tocar de ouvido, a música popular, que se presta a muito improviso. Cativa-me esse lado espontâneo, menos intelectual. Julgo que a improvisação livre veio de uma necessidade minha de expandir os meus horizontes, de me desafiar e de me libertar da partitura, de perceber que música existe dentro de mim, com toda a minha bagagem musical - talvez a nossa "identidade musical" seja toda a música que ouvimos, não só a que tocamos e estudamos. Lembro-me de ir a uma jam session e ficar em pânico por não conseguir participar, não conseguir dialogar com os outros músicos sem partitura. Percebi que a minha maneira de tocar está muito moldada pela maneira como aprendi a tocar, que foi a ler. E que a partitura é apenas um registo de uma ideia, de uma experiência sensorial. A improvisação, sobretudo a livre, abre espaço para o que acontece no momento, sem uma proposta a priori. É um longo caminho de descoberta e exploração.
Participaste no workshop “Som Crescente”, promovido pela ZDB e dinamizado pelo Peter Evans. Como foi esta experiência?
Foi maravilhoso conhecer o Peter Evans e conversar com ele sobre improvisação e de que maneira ela pode ser transversal aos géneros musicais.
Trabalhas no trio Herse, com Sofia Sá e Clara Lacerda, um grupo que se estreou no festival Theia e vai agora atuar na Festa do Jazz. Como nasceu e como desenvolvem a vossa música?
É muito recente o trabalho com a Sofia e a Clara, ainda estamos a conhecer-nos musical e humanamente, explorando a música das três, sempre com muito espaço para improvisar e criar juntas. Estou grata à Rita Maria por nos ter proposto tocarmos juntas, no âmbito do Festival Theia.
Tens também trabalhado num duo de cordas, com o contrabaixista André Carvalho. Como surgiu o projeto e como é a vossa música?
O projeto com o André Carvalho ainda está numa fase muito inicial. Ambos temos uma admiração pelo trabalho e pelos caminhos musicais de cada um e o que nos move é a curiosidade comum pela improvisação livre. De que maneira o nosso percurso musical, todas as experiências de palco, estudo e estúdio, e toda a música que ouvimos nos molda? A nossa proposta tem sido percebermos como podemos explorar esses elementos e trazê-los para o palco, com o mínimo de antecipação do que vai acontecer, geralmente com propostas de elementos visuais (fotografia, pintura) que possam servir como "tema".
Tens trabalhado num duo de improvisação de música e dança, desenvolvido em tempo real, com a bailarina Mariana Lemos (sei que trabalharam em duo, mas também já se juntaram com a Maria da Rocha e o João Valinho). Como tem sido este trabalho?
O trabalho com a Mariana é muito exploratório e uma novidade para mim, porque estou a comunicar e a criar com uma artista que se exprime através do corpo, uma linguagem que vem do movimento. Eu própria como violoncelista me tenho questionado sobre o corpo que toca violoncelo, que no fundo, também é um corpo que se exprime. E como adoro dança e dançar, muitas vezes acabo por ir para além do "corpo que toca violoncelo", tentando encontrar o meu corpo que dança a tocar violoncelo. Parece um pouco abstrato, mas esta exploração tem me levado a conhecer mais sobre o corpo de violoncelista (que tem as suas lesões e movimentos restritos) e expandir as minhas pesquisas sobre corpo, movimento e música.
Participaste no disco “Mt. Meru” de André B. Silva (Clean Feed), numa exploração musical muito original. Como foi a participação neste disco?
Foi um encontro totalmente inesperado, com músicos incríveis que eu já conhecia, mas com quem nunca tinha tocado, numa semana intensa de ensaios e gravações no Porto. A música do André e muito particular, com uma linguagem muito original e carismática, achei genial a maneira como ele conseguiu combinar timbres e texturas, com um ensemble de instrumentos tão inusitado. Adorei a experiência.
Em que outros projetos estás envolvida?
Tenho um outro projeto de que gosto muito, com o meu trio Üryan, com Tiago Santos (percussão) e Gulami Yesildal (voz, saz, oud). Juntos tocamos e arranjamos música tradicional da Turquia, maioritariamente da tradição sufi, que é um repertório e uma sonoridade que me apaixonam e onde exploro também a improvisação. Trabalhar com músicos de outros universos musicais dá-me um enorme prazer.
O universo musical é predominantemente (e historicamente) masculino. Ao longo do teu percurso, sentiste discriminação em função do género? Sentes que estamos a assistir a uma evolução ou ainda falta mudar muita coisa?
Só há poucos anos comecei a pensar e a observar sobre o que é ser mulher e mulher artista. Retrospetivamente, e em termos pessoais, é muito difícil saber se alguma vez não fui ou fui convidada para um projeto musical ou um concerto, por ser mulher. Talvez tenha estado sempre muito focada nas minhas competências e só agora esteja atenta a esta realidade. Fora do meu universo experiencial, mas na minha área, não posso deixar de reparar na óbvia predominância dos homens em lugares de liderança (maestros, chefes de naipe, solistas, agentes) e na quase nula inclusão de obras de mulheres compositoras nas programações dos concertos por todo o mundo - Hildegard von Bingen viveu no século XI e a seguir a ela a lista de mulheres compositoras de relevo com obras de grande interesse é infindável! Há muito para desencobrir neste domínio. De mencionar também os recentes escândalos de assédio sexual e abuso de poder em muitas orquestras internacionais e escolas de música tornados públicos, que claramente sempre aconteceram neste meio, sendo que, aqui sim, já tive experiências pessoais desagradáveis. Sem dúvida que vivemos numa era em que o patriarcado ainda está muito presente na nossa (homens e mulheres) maneira de pensar, educar e agir. Sigo e apoio total e ativamente os movimentos para a igualdade de género e julgo cumprir o meu papel enquanto mulher na contribuição para uma sociedade mais equilibrada. Acredito que consigamos ser uma sociedade mais justa e humanizada, através do diálogo, do questionamento, da educação, da cultura, da literacia emocional e da saúde mental.
Quais são os teus planos para o futuro?
Continuar a crescer enquanto música, pessoa e cidadã do mundo, conseguir exprimir-me mais livremente em termos de improvisação, continuar a aprender dentro do meu trabalho na Orquestra Gulbenkian, continuar a explorar outros géneros musicais.