Joana Raquel, 14 de Dezembro de 2022

Já tinha falado de fragilidade?

texto: Nuno Catarino / fotografia: João Dias

2022 revelou-se um ano particularmente rico para a cantora e compositora Joana Raquel. Editou em fevereiro o disco “Ninhos” (projeto em parceria com Miguel Meirinhos) e em julho lançou “Membrana” com o seu projeto 293 Diagonal (duo de voz e saxofone, com Daniel Sousa). Tem trabalhado em diversas parcerias e colaborações e ainda estreou ao vivo um novo projeto, um quarteto chamado Senda. A cantora já se apresentou ao vivo este ano nos festivais Porta-Jazz e Theia e vai agora levar o seu disco “Ninhos” à Festa do Jazz (dia 18, domingo, às 17h30, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa). Antecipando este concerto, estivemos à conversa com Joana Raquel, que nos fala sobre o seu percurso, ideias e projetos. 

 

Podes começar por falar sobre o teu percurso na música? E como surgiu a ligação ao jazz?

Comecei a estudar música com onze anos na escola de música da filarmónica da vila de onde sou natural, Ançã, perto de Coimbra. Alguns anos depois comecei a aprender oboé, que foi o meu primeiro instrumento. O maestro da filarmónica, Rui Lúcio, era o diretor do Curso Profissional de Jazz do Conservatório de Música de Coimbra e incentivou-me a ir fazer as provas em canto. Na altura eu sabia que queria seguir música, mas não tinha nenhum contacto com o jazz até então. Foi durante esses três anos que me afeiçoei a esta música. Depois do 12.º ano acabei por concorrer ao ensino superior e entrei na ESMAE onde concluí a licenciatura.

Ao longo do teu percurso académico, quem foram os professores/as que mais te marcaram? 

Os primeiros anos a aprender jazz no conservatório em Coimbra foram muito importantes, guardo-os com grande carinho. Posso realçar a professora Luísa Vieira, a minha primeira professora de canto, o professor Rui Lúcio que foi quem me conduziu nesta direção do jazz e o professor João Mortágua, meu professor combo durante os três anos. Mais tarde houve outras pessoas que foram marcando o meu percurso como a Rita Maria com quem tive algumas aulas ou o Demian Cabaud que foi meu professor de combo na ESMAE. 

Quais foram os discos que mais te marcaram, no momento em que estavas a descobrir o universo do jazz?

Descobri, e continuo a descobrir, muita música com os meus amigos. Houve sempre o hábito de partilhar o que estamos a ouvir no momento. A lista seria muito longa e continuo ainda a descobrir o jazz. Há mesmo muitos discos que marcaram importantes fases do processo e seria difícil mencionar todos. O “For One to Love” da Cécile McLorin Salvant, mas na verdade toda a discografia dela marcou bastante uma fase para mim. Inspirou-me bastante a forma como canta e toda a sonoridade dos discos. A música do Afonso Pais e da Rita Maria que me acompanhou sempre, talvez por ser cantada em português e serem referências tão próximas. Posso referir o “Além das Horas” e o “Míope e o Arco-Íris”. O “When The Heart Emerges Glistening” e o “The Imagined Savior Is Far Easier To Paint” do Ambrose Akinmusire que me apresentaram a uma nova sonoridade e me fizeram repensar a forma de ver a música. O “Danças” da Maria João com o Mário Laginha, que foram das minhas primeiras referências, e o “Chet Baker Sings: It Could Happen to You”, que ouvi infinitas vezes quando comecei a estudar jazz. A música do Tigran Hamasyan também teve grande impacto quando a descobri. Ao responder a esta pergunta sinto que estou sempre a deixar de parte discos que foram muito marcantes para mim, mas ficam alguns. 

Quais foram as tuas primeiras referências na voz? 

Sinto que deixo sempre pessoas importantes de fora, é difícil. Na vida, os incontornáveis José Mário Branco, Sérgio Godinho, Zeca Afonso, Chico Buarque, Elis Regina ou Manel Cruz são as primeiras pessoas que me ocorrem quando penso na altura em que comecei a sentir a música e as letras de forma mais consciente. No universo do jazz acho que Ella Fitzgerald, Chet Baker, Nina Simone, Maria João, Rita Maria, Cécile Mclorin Salvant ou Sara Serpa foram referências relevantes.

E atualmente, que música tens ouvido?

 Ultimamente tenho ouvido muito Sopa de Pedra, Bala Desejo, Silvia Pérez Cruz, Chico Buarque (sempre), Lucrecia Dalt, Bruno Pernadas, Manel Cruz, Marcelo Camelo, Fiona Apple, Milton Nascimento. Também gosto de ouvir sempre a música que vai surgindo mais perto de mim, feita pelos meus colegas, há coisas incríveis mesmo aqui ao lado.

Editaste no início deste ano o disco “Ninhos”, numa parceria com o pianista Miguel Meirinhos. Como surgiu este projeto? 

Durante a pandemia comecei algumas canções e iniciei-me na escrita de letras. Tinha várias ideias inacabadas e textos que ainda não eram música. Eu e o Miguel já costumávamos tocar juntos e fui começando a mostrar-lhe estes rascunhos que ele foi desenvolvendo comigo. Acho que nos entendemos bem a escrever, gostamos da mesma sonoridade. Mais tarde, quando decidimos gravar, sentimos vontade te convidar o João Cardita para tocar bateria e o Demian Cabaud para tocar contrabaixo, porque achámos que iam levar a música para novos lugares. Estou muito feliz com essa decisão! Há muito espaço para explorar e é sempre uma surpresa.  

Mais recentemente editaste o disco “Membrana”, com o projeto 293 Diagonal, um duo com o saxofonista Daniel Sousa, num trabalho bastante diferente do disco anterior. Como tem sido desenvolver este trabalho em duo de voz e saxofone?

No final da minha passagem pela ESMAE convidei o Dani para tocar uma canção no meu recital. Procurava uma abordagem diferente então criámos um arranjo para voz e saxofone de um tema do Charles Mingus, “Portrait”. Sensivelmente um ano depois começámos a pensar dar continuidade a esse duo e o disco foi só uma consequência. Tem sido uma descoberta, porque acho que mudámos muito os dois durante o processo, então vai sendo necessária uma adaptação. Tocar estas músicas é desafiante pela fragilidade do grupo, mas gosto disso.

Apresentaste recentemente, em Coimbra e no Porto, um novo projeto chamado Senda. Este é um quarteto com Teresa Costa (flauta), Joaquim Festas (clarinete e guitarra) e Yudit Almeida (contrabaixo). Que ideias guiam este projeto? Porque escolheste trabalhar com estes músicos? 

Já tinha falado de fragilidade? Tenho gostado dela. Depois de escrever música com o Miguel para o nosso disco, senti vontade de escrever para uma formação diferente. Escolhi pessoas geograficamente distantes e que vêm de universos bastante diferentes, mas achei que eram estas as pessoas e levei essa ideia até ao fim. Queria ter uma flauta, também pela música que ando a ouvir ultimamente e muita vontade de cantar com a Teresa Costa; o Rafael Santos toca clarinete e guitarra, essas várias possibilidades também me cativaram bastante e o contrabaixo era o “chão” que me faltava. Infelizmente o Rafael não pôde estar presente nestes dois primeiros concertos e chamei o Joaquim Festas para tocar guitarra. Agora vou querer manter os dois na banda!

Quando escrevi a música procurava canções, mas claro que a improvisação acaba sempre por ter um papel de destaque. Estes primeiros concertos foram muito importantes para testar tudo o que escrevi, mas sinto que ainda não dei por concluído o processo. Quero voltar a pensar na música e ajustar alguns pormenores. Obviamente o facto de não ter tocado com clarinete também tem influência no resultado, pois a música foi pensada dessa forma, mas fiquei muito feliz de tê-la tocado com estes amigos, todos eles muito criativos e que contribuíram imenso. 


Tens colaborado com a Capicua. Como tem sido esta colaboração e o que tens apreendido para a tua evolução/música?

Começar a cantar com a Capicua foi saltar da minha zona de conforto para um novo universo musical. E foi uma ótima decisão! Alarguei a minha forma de ver a música, mas foi sobretudo importante na forma como passei a encarar a escrita de letras. Foi muito inspirador para mim e comecei a prestar muito mais atenção às palavras. Foi um grande empurrão para me começar a aventurar mais nos meus textos. 

Já te apresentaste ao vivo num duo com a Nazaré da Silva. Como correu essa atuação? Há perspetivas de continuarem a parceria?

A colaboração com a Nazaré aconteceu de forma bastante inesperada. Surgiu a partir de um convite para cantar no Café Dias em que acabei por decidir convidar alguém de Lisboa para vir comigo. Na altura tinha ouvido o disco da Nazaré há pouco tempo e decidi fazer o convite. Acho que nunca tínhamos falado antes, mas pareceu-me que tínhamos algumas coisas em comum. Cantámos músicas dos nossos discos, uma música do José Mário Branco e alguns momentos de improvisação. Acho que correu bem! Gostei muito de cantar com ela e tenho muita vontade que se repita. 

Ao longo do teu percurso tens trabalhado sobretudo música original, em formações originais. Qual a tua ligação com os standards? Vês-te a trabalhar num projeto a interpretação de standards de jazz, por exemplo?

Continuo a cantar standards com regularidade. É um sítio onde gosto sempre de voltar. Ouço muito e gosto de cantar essas canções! Continuo a descobrir muita coisa incrível e gosto de ir aprendendo temas novos. Costumo juntar-me com amigos e tocamos canções e às vezes em jam sessions.

Nos últimos tempos temos assistido à afirmação de novas vozes, nas áreas do jazz e da improvisação - como Nazaré da Silva, Vera Morais, Filipa Franco, Mariana Dionísio - que exploram diferentes registos. Como vês esta afirmação destas novas vozes?

É muito bom poder caminhar rodeada de pessoas que me inspiram! Felizmente há muita gente à minha volta a fazer coisas de que gosto muito! Acompanho com entusiasmo o trabalho delas, são todas muito diferentes e criativas. Estamos a desprender-nos da expectativa do que deve ser o papel da voz, neste caso no jazz, e eu acho isso muito importante.

Tens estado ligada à Porta-Jazz e os teus discos foram editados pelo Carimbo Porta-Jazz. Como tem sido a tua ligação à associação e como vês a importância da sua ação na cena do Porto e em Portugal?

A Porta-Jazz tem uma importância gigante na comunidade do jazz no país, mas sobretudo no Porto. Ter um sítio com concertos regulares, de braços abertos para receber a música que se vai fazendo e ainda editá-la em disco. Foi muito importante no meu percurso e uma grande ajuda no momento de lançar a minha música.

O jazz tem sido historicamente, e continua a ser, um universo musical predominantemente masculino. Ao longo do teu percurso, tiveste momentos em que sentiste discriminação em função do género? Sentes que estamos a assistir a uma evolução ou ainda falta mudar muita coisa?

A minha consciência neste e outros assuntos tem vindo a ser aguçada e há muita coisa em que tenho pensado, a fundo, mais recentemente. Também com base nas minhas vivências.

Felizmente, durante o meu percurso estive quase sempre rodeada de colegas que nunca me fizeram sentir nenhum tipo de constrangimento, mas vou dando de caras com situações ou relatos menos felizes.

Embora já algum caminho tenha sido percorrido e o número de mulheres no jazz tenha aos poucos vindo a aumentar, há ainda coisas a fazer.

As mulheres representam ainda uma minoria neste universo! Devemos questionar-nos porquê! E as que existem estão ainda bastante associadas “à cantora”, embora haja já bastantes mulheres a tocar outros instrumentos, penso que a maioria esteja ainda ligada à voz.

Acho que um dos problemas está assente nas expectativas, expectativas desatualizadas do papel que devemos desempenhar ou da forma como nos devemos apresentar. Para além da abordagem tradicional é muito válido, e necessário até, sair disso. Assumir um registo mais exploratório e assumir uma postura menos decorativa em palco. Questionar as ideias do que devemos ser, que muitas vezes já não encaixam. Quando subo a palco para cantar a minha música, isso deveria ser o foco! E não o meu vestido. 

Para finalizar: que projetos tens planeado para os próximos tempos?

Depois do disco com o Miguel, que foi mesmo muito importante para mim, por me iniciar à séria na escrita de música e por me ter levado a muitas descobertas como cantora, senti vontade de fazer algo sozinha. Tudo pensado por mim, e assim surgiu este projeto Senda. Acho que vou continua a desenvolver essa música. Tenho continuado a escrever com o Miguel e pretendo dar continuidade aos projetos em que tenho trabalhado.

Agenda

23 Setembro

Quarteto de Desidério Lázaro

Jardim Botânico - Lisboa

23 Setembro

Oblíquo Trio

Jardim Luís Ferreira - Lisboa

23 Setembro

Bernardo Tinoco / João Carreiro / António Carvalho “Mesmer”

Jardim da Estrela - Lisboa

23 Setembro

Ana Luísa Marques “Conta”

Porta-Jazz - Porto

23 Setembro

Igor C. Silva, João M. Braga Simões e José Soares

Arquipelago – Centro de Artes Contemporâneas - Ribeira Grande

23 Setembro

Rodrigo Santos / Pedro Lopes

Jardim Luís Ferreira - Lisboa

23 Setembro

Al-Jiçç

Centro Cultural da Malaposta - Odivelas

23 Setembro

José Lencastre, João Hasselberg, João Carreiro e Kresten Osgood

Cossoul - Lisboa

23 Setembro

Ricardo Jacinto "Atraso"

Centro Cultural de Belém - Lisboa

23 Setembro

Tcheka & Mário Laginha

Teatro Municipal Joaquim Benite - Almada

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