Culturas em colisão
Anna Lundqvist é uma vocalista e compositora de jazz de Estocolmo, Suécia. Além da sua carreira musical, trabalha em part-time como diretora artística da Vänersborg Jazz Academy, coordenadora do Yardhouse Studio (Estocolmo) e como vocalista em diversos projetos musicais. Trabalha ainda pontualmente como freelancer no ensino, em áreas como técnica vocal, jazz e improvisação, combo e composição, tanto na Suécia como noutros países, em universidades mas também noutras organizações/escolas independentes. Anna também produz e organiza os seus próprios projetos, mas também para outros músicos. Conhecemo-nos pessoalmente no Jazzahead 2022 e combinámos um encontro quando regressasse a Lisboa. Vai agora tocar em duo com o guitarrista Nuno Ferreira no Cascais Jazz Club, no dia 16 de setembro, e o Anna Lundqvist Lisboa Cinco (quinteto com Desidério Lázaro, Daniel Bernardes, André Carvalho e Joel Silva) vai atuar num espaço novo na Parede, o Drama Lounge Bar, no dia 23 de setembro. Assim, aproveitando a sua presença e antecipando estes concertos, apresentamos-lhe esta super empenhada e persistente senhora do jazz.
Qual é a principal razão para o teu interesse em Portugal, e mais concretamente Lisboa, para teres criado um projeto com músicos de jazz nacionais?
Visitei Lisboa em 2008 para ficar uns dias com um amigo sueco que aqui trabalhava; e perdi-me de amores por Lisboa... Não consigo explicar, mas foi quase como uma experiência religiosa. Uma intuição que me dizia: “Anna, deves ficar em Lisboa. Está aqui alguma coisa à tua espera”. Pode parecer tolo ou romântico, mas este sentimento foi suficientemente forte para me fazer querer perceber o que era. Levei alguns anos para o tornar real, uma vez que tinha trabalho na Suécia. Mas em 2015 disse a mim mesmo: “Chegou a hora!” Comecei a viajar para Lisboa duas vezes por ano com a esperança de conseguir construir uma rede de contactos. Como não conhecia ninguém, tive de começar do zero. Depois de um ano, consegui o meu primeiro trabalho a dar umas aulas de mestrado; conheci músicos em jam sessions e passei a ser conhecida por um pequeno grupo de músicos. Tinha conseguido construir algumas relações num novo país e assim, no final de 2019, senti-me pronta para iniciar um novo quinteto em Lisboa, o Anna Lundqvist Lisboa Cinco. Conheci alguns músicos incríveis que me impressionaram e inspiraram a escrever música nova. Depois, por causa da Pandemia, só consegui voltar a Lisboa em janeiro de 2022. Tive de recomeçar, mudar alguns membros da banda, mas aparentemente o universo sempre tinha um plano para mim. Recuperei a minha energia e agora estou muito entusiasmado com a banda, os músicos e o que trazem às minhas ideias. Soa e é incrível. Mal posso esperar para vos mostrar a todos!
Assim que iniciaste a produção este álbum, como é que estabeleceste a ligação com os músicos portugueses?
Como ainda não vivo a tempo inteiro em Lisboa (ainda), preparei a música, gráficos, arranjos e informações, enviei-os por e-mail e criei reuniões no zoom. Fizemos uns concertos fantásticos em março, no Hot Clube. Foi a nossa estreia e, através daqueles concertos e ensaios, rapidamente se criou um clima de banda com forte ligação entre nós. Eles compreenderam imediatamente a onda da minha música, e avançámos a partir daí. Sentimos que juntos encontrámos algo de bom.
Enquanto desenhaste/criaste este álbum como é que imaginaste o som e a melodia de Lisboa e depois como é que o combinaste com a tua própria música?
Esse processo – que eu não planeei desde o início - foi muito cool. Eu só escrevo o que ouço na minha cabeça. Foi sempre assim. Nunca componho para um certo tema, conceito, tradição ou intenção comercial. Deixo o meu coração e a minha vida decidirem o que vai ser criado a seguir.
Só depois de escrever para o “Lisboa Cinco” com estes músicos portugueses em mente, reparei que a música que fiz foi um pouco influenciada por eles e pelas suas origens musicais. Depois de ter tocado ao vivo com eles, comecei a aprender como construir canções que fizessem brilhar as qualidades musicais de cada um. Muitas pessoas perguntam-me "Oh, vai ser em português?" ou "vais cantar fado-jazz?". A minha resposta é sempre não. Não é disso que se trata... De todo. Trata-se de um músico sueco a fazer algo em Portugal com músicos portugueses de jazz. Ponto final. É claro que haverá sempre energias e culturas em colisão, fundindo-se para a criação de coisas novas.
Como é que que foi a resposta dos media e agentes portugueses e não portugueses?
Ainda é tudo muito recente, tanto o meu trabalho como a construção do meu networking em Portugal, por isso ainda não cheguei a esse ponto de poder contar com uma resposta dos media e dos agentes musicais. Mas é claro que estou à procura de agenciamento em Portugal, alguém interessado em trabalhar comigo e com a minha música. Na Suécia é tudo um pouco diferente do resto da Europa, uma vez que não temos a mesma tradição com o agenciamento e com a contratação. Pelo menos não no jazz. Temos uma ou duas entidades em todo o país e elas estão maioritariamente a trabalhar o agenciamento do jazz comercial. O resto de nós faz o seu próprio trabalho de promoção e somos excelentes empreendedores! Sou frequentemente questionada sobre este assunto em reuniões e feiras como Jazzahead e Womex. Eu reservo os meus próprios concertos, conduzo o autocarro da digressão e escrevo as minhas próprias músicas. Que tal em termos de “woman power”, hahaha?!
Estás envolvida em diversas colaborações musicais multiculturais. Como vês ou testemunhas as questões de género no jazz?
Ainda é um assunto, sim. E há uma diferença enorme entre a Suécia, Portugal e Itália, onde também estou às vezes. Na Suécia está na ordem do dia há mais de 15 anos e mesmo que as cenas e as escolas não sejam iguais a 50/50, a atitude já mudou. Não é está certo que os homens devam ter todos os concertos, os principais empregos e assim sucessivamente. Os prémios na música são igualmente distribuídos por todos os sexos e as revistas de jazz escrevem igualmente sobre todos os músicos. Temos trabalhado afincadamente - tanto homens como mulheres - nestas questões. Músicos, escolas, organizações e também o governo. Esta é a única solução para isto, bem como contra o racismo. Temos de estar juntos nisto para fazer a mudança e temos que também querer a mudança - de verdade. O negócio da música é apenas um espelho de toda a sociedade. Pessoalmente posso dizer que tive uma sorte incrível. Sempre fui apoiada pelos meus professores masculinos e músicos masculinos. Tenho o respeito que mereço pelo meu trabalho e também tive esse tipo de educação da minha mãe, que tudo é possível desde que trabalhes arduamente e acredites em ti. Não sou um objeto. Eu sou o sujeito.
O meu pai suicidou-se quando eu tinha 12 anos, por isso a história que os homens são o género mais forte nunca foi verdade para mim.
Pode ser apenas devido à minha perceção seletiva que - independentemente da pandemia - algo parece ter mudado em relação ao passado e tu começaste a aparecer mais em eventos e meios de comunicação internacionais. Há mesmo “notícias de última hora” na tua carreira ou é só o impulso natural do tempo?
Achas? Eu já cá ando há algum tempo, mas sim, tudo parece ter acelerado desde 2021. Todos querem voltar ao normal, construir e reconectar-se. Foi importante eu ter estado muito ativa durante a pandemia, a criar visibilidade nas redes sociais. Quando as fronteiras se abriram, fui a primeira a ir apanhar o autocarro para o aeroporto. Tinha tanto para fazer. Para começar o Anna Lundqvist Lisboa Cinco novamente passou a ser prioridade na minha agenda!
Como lidaste com os fardos artísticos e sociais da pandemia, enquanto música escandinava?
No início, fui muito naive e pensei: "Isto vai desaparecer tudo nuns meses". Fiz planos, escrevi música nova e estava muito positiva no primeiro semestre. Só em outubro de 2020, quando estava mesmo tudo fechado (como todos sabem, lidámos com a pandemia de forma um pouco diferente na Suécia) é que me bateu forte. Fiquei muito deprimida, perdi completamente a minha inspiração e, pela primeira vez, fiquei com medo. Tudo o que tentei escrever, praticar ou fazer não funcionou. Senti-me como se tivesse perdido o meu propósito e a minha vida e perguntei-me: “A minha música foi-se? Será que alguma vez vou conseguir recuperá-la e recuperar disto?” Talvez pareça parvoíce, mas estava mesmo perdida.
Felizmente recuperei a tempo da reabertura do mundo!
Economicamente, recebi um enorme subsídio estatal (daqueles que se ambiciona, mas raramente acontece) pouco antes da pandemia, e por isso tinha algum dinheiro para viver. Tinha também um trabalho em part-time como diretora artística numa academia de talentos, por isso tinha dinheiro para a renda de casa e para comer. Sinto-me afortunada, pois muitos dos meus amigos tiveram de vender as casas, voltar para a escola ou procurar outros empregos. Alguns até optaram por não voltar ao negócio da música.
Tem agendadas sessões de gravação durante a tua digressão em Portugal?
A gravação do nosso álbum será feita no início de 2023. Algumas gravações acontecerão neste outono, tanto em Lisboa como em Estocolmo, mais para documentação, marketing ou, se houver magia, talvez para o lançamento de um single de apresentação do projeto. Quero gravar o álbum todo em Portugal, mas assinei com uma editora discográfica sueca.
Qual é a tua opinião honesta sobre a cena do jazz em Portugal? Por exemplo, quão distante está da cena jazzística nórdica, tanto em termos artísticos como de reconhecimento?
Excelente pergunta! Vai ser difícil de responder sucintamente! Posso começar com as coisas mais óbvias. O governo sueco apoia os trabalhadores da cultura, o que inclui músicos e compositores, digressões e gravações. Até os clubes têm apoio. Tenho a possibilidade de me candidatar a dinheiro para trabalhar em Portugal e apoiar os meus músicos portugueses (viagens, alojamento, alimentação). Somos apoiados para criar e ser criativos, mas também há vozes políticas que querem que a cultura tenha um certo papel na sociedade, nem sempre livre, sendo importante apenas por ser “cultura”.
Quando olhamos para a maioria do público sueco de jazz, percebemos que muitas vezes só querem ouvir um certo músico, ou um certo tipo de jazz e isso limita possibilidades para quem trabalha com música criativa e original.
Em Portugal, e noutros países, há um interesse diferente pela música e cultura: "Olha, há um clube de jazz. Vamos ver se é bom!". Talvez uma atitude mais aberta ao momento e sem receio de arriscar duas horas de vida para eventualmente descobrir algo novo. Os suecos tendem a ter mais medo do desconhecido, na maioria das coisas da vida.
Artisticamente, diria que as diferentes culturas dos dois países também espelham as expressões e dinâmicas na cena jazzística. Penso que a portuguesa é muito excitante. Exploram-se todas as expressões do jazz de forma livre. Estou feliz por estar em expansão e espero que venhamos a ver mais músicos e grupos de Portugal nos palcos do norte da Europa. É claro que tem de haver financiamento do governo. Os músicos não podem fazer tudo sozinhos. Há aqui muitos músicos espantosos que contêm um elevado nível de musicalidade e inovação. O governo deveria saber que a vida jazzística em Portugal é – musical e criativamente muito – rica.
A Suécia é um país maior. O jazz sueco tem muita tradição. Muitos músicos americanos foram viver para a Suécia, e houve também músicos suecos que conseguiram notoriedade num contexto internacional. Há um equilíbrio entre músicos que se mantêm fiéis à tradição clássica e outros que, como eu, começaram tradicionalmente mas quiseram desenvolver uma música própria (embora ainda referenciando o tradicional). Temos um meio grande – e em crescimento - para o jazz com formas mais livres e experimentais, mesmo estando constrito num número de clubes, festivais e cidades específicas – Gotemburgo, por exemplo, na costa ocidental, é comunidade muito forte para as formas mais livres.
Para o sueco médio é muito importante conseguir arrumar pessoas e coisas em "caixas" pré-etiquetadas. Temos muitas regras (escritas e não escritas), temos uma estrutura burocrática muito pesada e uma sociedade stressada assente na ideia de ser bem sucedido. Por vezes estas questões afloram no modo como agimos, como construímos as nossas carreiras e como nos comportamos. Geralmente os suecos são um pouco reservados, inseguros e muitas vezes fecham-se em pequenas comunidades que constroem, onde se sentem seguros e em que confiam. O que tem sido para mim mais difícil, como sueca, é tentar construir uma plataforma em Portugal, num país com falta de estruturas; e eu estou habituada a uma certa ordem e organização da sociedade sueca.
Claro que isto seria diferente se eu vivesse cá, porque depois das minhas viagens e períodos de residência em Portugal, está tudo mais planeado. Dito isto, estou extremamente impressionada com a competência dos músicos portugueses, preparados para qualquer coisa em qualquer altura. Assim que desisto de alguma coisa, recebo milhares de ideias e sugestões dos membros da minha banda sobre como ultrapassá-la. É difícil explicar, mas adoro realmente a diversidade das duas culturas. Vai ser tão interessante ouvir o que a banda pensa da Suécia quando fizermos a digressão sueca em Novembro...
Gostaria de abrir uma porta para novos projetos, como por exemplo um cantor português acompanhado por músicos suecos, como o Lisboa Cinco?
Espero que haja mais oportunidades para os músicos portugueses irem à Suécia e fazerem mais colaborações no futuro. Estamos muito abertos a isso e estamos sempre interessados em novos contextos criativos. Digo sempre aos meus amigos portugueses para me dizerem caso achem que os posso ajudar de alguma forma a irem à Suécia. O meu sofá está sempre disponível para convidados e o café é gratuito (bebemos muito café na Suécia).