O futuro que interessa
Carlos Azevedo é nome especialíssimo no panorama jazzístico nacional, que ele próprio ajudou a construir, e em várias frentes: pelas obras marcantes que compôs ou arranjou, nas áreas do jazz e da música erudita, pelas centenas de alunos que formou, pelo piano que escutamos nos discos e concertos de uma das orquestras de jazz mais relevantes da atualidade, a Orquestra Jazz de Matosinhos (OJM), cuja direção musical partilhou ativamente com Pedro Guedes desde 1999 até ao momento, recente, em que saiu da formação.
Em todo este rico e plurifacetado percurso, só ficam a faltar mais discos que ostentem o seu nome na capa. Contribuindo para colmatar essa lacuna, pela mão da infatigável Carimbo, editora da Associação Porta-Jazz, surge agora “Serpente”, disco onde é acompanhado por músicos também eles centrais no ecossistema do jazz portuense (e nacional), como o guitarrista Miguel Moreira, o contrabaixista Miguel Ângelo e o baterista Mário Costa. Um espelho de como a sua mundividência sonora também frutifica em configurações instrumentais de dimensão mais reduzida.
Nascido em Vila Real, em 1964, Carlos Azevedo prosseguiu desde cedo estudos de piano, tendo ingressado em 1982 no Conservatório de Música do Porto, onde frequentou os cursos superiores de Piano e Composição; foi por esta altura que brotou o seu interesse pelo jazz. Quatro anos volvidos viria a tornar-se o primeiro aluno inscrito na Escola Superior de Música do Porto (atual Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo, ESMAE), concluindo aí o curso de Composição. Uns anos mais tarde parte para Sheffield onde em 1996 terminou o Mestrado em Composição na Universidade da cidade britânica, orientado por George Nicholson, a que se seguiu o Doutoramento.
Ainda em meados da década de 1980, na qualidade de professor de piano, inaugurou também a célebre Escola de Jazz do Porto. Como músico de jazz, liderou o seu trio, escrevendo arranjos e colaborando como pianista em diversos projetos. No virar do milénio foi protagonista de outro momento histórico, a criação da primeira licenciatura em Jazz do país, na ESMAE, onde foi professor de Análise e exerceu funções diretivas como Vice-Presidente entre 2002 e 2011.
Definindo-se acima de tudo como compositor, Carlos Azevedo tem desenvolvido prolífica atividade neste domínio. A suíte “Lenda”, obra escrita para decateto, foi apresentada nos festivais de jazz do Porto (1999), Nantes (2000) e Guimarães (2001), dando origem ao seu primeiro álbum em nome próprio, editado pela Culturporto em 2000. A parte mais significativa do seu trabalho enquanto compositor e arranjador tem tido como destinatária a OJM, muito embora não se esgote aí; tem recebido encomendas de outras formações importantes como a Brussels Jazz Orchestra ou a European Youth Jazz Orchestra. Em 2003 foi finalista do Concurso Internacional de Composição da Brussels Jazz Orchestra, tendo sido galardoado com o primeiro prémio no ano seguinte.
De entre as suas obras no campo da música erudita avultam “5 Movimentos Sobre o Mar” (2006) para quarteto de cordas e piano, “Verazin” (2009), para quarteto de cordas, e “Crossfade” (2010), para orquestra sinfónica, orquestra de jazz e solista. O Drumming – Grupo de Percussão encomendou-lhe “Drumming the Hard Way” (2003) e “Poema”, para nove instrumentistas, de 2007, foi encomenda do Ministério da Cultura – Delegação Regional da Cultura do Norte. Em parceria com o libretista Carlos Tê, estreou em 2012 a ópera “Mumadona”, inspirada na figura de Mumadona Dias, condessa do Condado Portucalense e a mulher mais poderosa do seu tempo no noroeste da Península Ibérica, uma encomenda de Guimarães – Capital Europeia da Cultura.
Em CD estão publicadas, entre outras, as obras “Nem Sempre o Mar é Azul”, composta em 1998 para orquestra de cordas (Orquestra Sinfónica da Póvoa do Varzim sob a direção de Osvaldo Ferreira, edição da Numérica, 2003), “Jazzi Metal”, para quinteto de metais (Royal Scottish Academy Brass, sob a direção de John Wallace, edição da Deux-Elles, 2003) e “Sunflower”, para quarteto de saxofones (Apollo Saxophone Quartet, edição da Quartz, 2004), entre outras compilações de compositores portugueses do século XXI.
No jazz integrou também, entre outros projetos, o Ensemble Super Moderne, formação “all-stars” na qual se cruzou com a dupla rítmica que pontifica em “Serpente”, o contrabaixista Miguel Ângelo e o baterista Mário Costa.
A jazz.pt deu-lhe a palavra.
Acaba de sair “Serpente”, o teu novo disco em quarteto. Qual a razão para um disco do Carlos Azevedo em nome próprio ser uma absoluta raridade?
Porque estive ligado a outros projetos que ocuparam muito do meu tempo, nomeadamente a Orquestra Jazz de Matosinhos. Muito do meu tempo nos últimos 20 anos foi ocupado a compor, fazer arranjos e gravar discos com a OJM. Gravei com diferentes projetos, escrevi bastantes obras na área da música “erudita”, pelo meio fiz o Doutoramento em Composição... andei bastante ocupado.
Fala-nos um pouco da gestação deste disco. Os confinamentos pandémicos interferiram?
Este disco foi preparado durante a pandemia, embora já estivesse previsto. Com exceção do tema “Balada”, todos foram escritos com vista à gravação deste projeto. A ideia foi criar um conjunto de temas contrastantes entre si que formassem um todo coerente.
O disco é muito variado em termos sonoros, espelhando horizontes musicais alargados. Para a tua música confluem elementos do jazz, claro está, mas também, e muito, da música erudita, do rock. É deste cruzamento de referências que brota o “eu” criativo?
Sem dúvida que todos estes elementos fazem parte do meu universo. Quando era adolescente para alem da música “erudita” eu ouvia muito rock progressivo e Frank Zappa. O jazz apareceu mais tarde, por volta dos 25 anos. A minha formação foi toda realizada na área da música “erudita” e em especial na Composição.
O quarteto completa-se com Miguel Moreira na guitarra, Miguel Ângelo no contrabaixo e Mário Costa na bateria. Quando se formou este quarteto e como é trabalhar com estes músicos?
Eu trabalhei com o Mário Costa e o Miguel Ângelo no grupo Ensemble Super Moderne, com o qual gravamos um disco, portanto a secção rítmica surgiu de forma natural quer pela amizade como pelo facto de serem músicos que admiro. As composições que estão no disco foram pensadas desde o início para um quarteto com guitarra. A escolha do Miguel Moreira acontece por achar que é o tipo de músico que encaixa bem no universo que concebi para este projeto.
Em que medida as composições estão fechadas na tua cabeça quando vais para estúdio? É evidente que todos eles contribuem de forma efetiva para o cômputo sonoro...
No caso deste disco eu diria que mais de 90% das composições estavam fechadas, embora a rapaziada tenha dado algumas sugestões que aproveitei para incorporar. Claro que os ambientes criados para as improvisações, têm muito do que foi surgindo durante os ensaios e sugerido por todos.
Das peças novas gravei na memória a atmosfera caleidoscópica do tema-título, a delicadeza de “Balada” – que é muito mais do que isso –, a maior intensidade de “Mafarrica” ou a energia jazz-rock de “Fratura”. Queres falar-nos um pouco destas peças?
É difícil falar em particular da cada composição... “Serpente” foi a primeira que escrevi e parte da vontade de fazer uma peça em que a guitarra é protagonista. A “Balada”, conforme já referi, foi a única peça que já existia, e foi uma escolha que tomei no fim de ter tudo escrito. Acho qua a decidi incluir porque achei que faltava uma música com uma sonoridade “frágil”. “Mafarrica” é construída a partir de um ostinato que se vai transformando... foi uma espécie de desafio que lancei a mim próprio, construir algo que tem na sua origem uma ideia muito simples. “Fratura”, imagino que seja a minha ligação de adolescente ao rock.
De entre os mesteres a que habitualmente te dedicas – pianista, compositor, arranjador – qual preferes, ou são vertentes, de certo modo, indissociáveis na tua abordagem global à música?
São todas estas vertentes que fazem o que sou. Desta forma não consigo decidir qual a mais importante. Se fosse obrigado a abandonar uma... a escolhida seria de arranjador. O denominador comum acho que é a composição.
Consideras-te, hoje, um “músico de jazz” ou entendes que o teu trabalho vai além das fonteiras do género (elásticas, bem o sabemos)?
Acho que sou um músico que também é um músico de jazz.
A chamada “tradição” do jazz tem algum peso na música que fazes hoje?
Claro que tem, é a partir do estudo da tradição que nos tornamos livres. Eu continuo a adorar fazer concertos onde toco standards.
O teu trabalho está naturalmente muito associado à Orquestra Jazz de Matosinhos (OJM), que codiriges musicalmente desde 1999, reconhecida como uma das mais relevantes big bands de jazz da atualidade. Que balanço fazes deste um quarto de século de trabalho conjunto?
Eu saí recentemente da Orquestra. O balanço é muito bom, tive a oportunidade de tocar e fazer arranjos para grandes músicos. Acho que a minha faceta de arranjador só acontece porque estava na OJM.
Queres destacar alguns episódios desta história que te tenham marcado particularmente?
Em particular diria que foi o primeiro CD que gravamos com o Chris Cheek, depois ter feito arranjos da música do Kurt Rosenwinkel. Mais recentemente ter escrito arranjos e gravado o disco “After Midnight”, com Rebecca Martin e Larry Grenadier [N. da R.: recenseado na jazz.pt aqui].
A OJM agrega um extraordinário conjunto de músicos, grande parte deles líderes dos seus próprios projetos. Para além dos aspetos logísticos e de compatibilização de agendas, naturalmente, quais são os principais desafios que se colocam ao trabalho quotidiano de uma formação desta natureza?
Acho que o desafio principal é o ecletismo dos diferentes projetos que obrigam a ter que saber estar em linguagens muito diferentes.
O trabalho que tens desenvolvido na OJM exibe à saciedade o interesse que nutres/nutrem pela história do jazz – sejam movimentos, músicos ou discos específicos – e por lhes insuflar nova vida. A riqueza desta história é um manancial inesgotável. Qual são para ti as principais mais-valias destas revisitações criativas?
Como compositor e arranjador não existe melhor escola do que fazer parte de uma Orquestra onde se pode tocar e estudar partituras dos grandes Mestres. É sem dúvida uma experiência insubstituível...
Tremenda evolução
Voltemos ao princípio. Nasceste em Vila Real, longe da atividade cultural dos grandes centros. Havia música na tua infância?
Havia, e muita. O meu pai estudava piano e composição no conservatório e a minha avó materna tocava muito bem piano clássico.
O piano foi a escolha natural?
Foi uma vez que era o instrumento que existia em casa.
Consegues precisar em que momento descobres o jazz? Foi uma espécie de epifania instantânea ou, como diz o célebre slogan de Pessoa para uma marca de refrigerantes, primeiro estranhou-se e depois entranhou-se?
Eu descobri o jazz muito tarde, tinha 24 anos. Por esta altura comecei a ouvir uns discos do Bill Evans e fiquei completamente rendido. Decidi que queria tocar aquele tipo de música.
Queres falar-nos das tuas referências artísticas e musicais que consideras fundamentais para hoje seres quem és?
Bill Evans, obviamente, e depois são tantos que nem sei por onde começar. Eu estudei composição e piano no conservatório e mais tarde tirei o Curso de composição na ESMAE. Penso que a música clássica foi uma componente muito importante na definição da minha personalidade musical. Claro que a escrita para orquestra de jazz também me influenciou bastante, a partir de autores como Sammy Nestico, Duke Ellington, Thad Jones, Bob Brookmeyer, Maria Schneider, etc.
Foste o primeiro aluno inscrito na Escola Superior de Música do Porto (atual Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo – ESMAE), em 1986. Como foram esses tempos?
Foram muito bons, mas estranhos, porque a escola só tinha sete alunos e, portanto, não tive muita oportunidade de ouvir as minhas peças tocadas. Mas foi sobretudo importante no estudo da composição, orquestração e análise musical. Foi importante ter escutado muita música do século XX e a descoberta de autores como Berio, Ligeti, Karlheinz Stockhausen, etc.
Completaste o Mestrado em Composição na Universidade de Sheffield. Foi uma necessidade que sentiste e que não conseguias suprir cá? Em que medida esta fase foi importante para o teu trabalho futuro?
O mestrado foi importante (obrigatório) para prosseguir a carreira de Professor na ESMAE. Na altura nem se colocou a hipótese de estudar em Portugal pois não exista mestrado em Composição. Claro que ter ido para Inglaterra estudar foi por si só uma experiência incrível.
Desde então tens-te movimentado com igual à-vontade nos universos do jazz e da música erudita, escrevendo para as mais variadas formações, desde instrumento solista a orquestras, de jazz ou sinfónicas. Tens, ainda assim, preferência especial por algum destes formatos?
Não tenho preferência embora gostasse de escrever mais obras para orquestra sinfónica.
Compuseste a música para a ópera “Mumadona”, com libreto de Carlos Tê. Trabalhar nesta área é algo que continua a estar no teu campo de interesses?
Depois desta ópera escrevi mais uma em parceria com três colegas. É sem dúvida um género que gostaria de repetir, embora seja muito difícil em Portugal, porque é um género que custa mais dinheiro e envolve muitas áreas.
Há cada vez mais compositores associados ao jazz a trabalharem nessa interface híbrida entre o jazz e a música erudita. Acompanhas o que se vai fazendo em Portugal? Há alguém cujo trabalho queiras destacar neste domínio?
Acho que destacaria o trabalho de Pedro Moreira, Daniel Bernardes e Luís Tinoco que, embora não toque jazz, tem jazz dentro de si.
A cena nacional do jazz e da música improvisada atravessa um período de assinalável fulgor criativo, com muitos jovens e menos jovens músicos e grupos a surgir, desenvolvendo atividade num amplo espetro estilístico. Como vês a evolução registada nos últimos anos?
Poderia dar uma resposta longa... a diferença é abismal e a evolução é tremenda. Não sei se Portugal consegue tomar conta de tanta gente.
Queres destacar alguns músicos mais jovens na cena do Porto que tenham despertado a tua atenção e cujo trabalho deveremos compulsar?
Esta sexta-feira [o passado dia 24 de junho] escutei na Universidade de Aveiro um trio incrível constituído por Afonso Silva (saxofone), Ricardo Alves (guitarra) e Eduardo Carneiro (bateria). No último Festival Porta-Jazz tive a oportunidade de escutar um duo maravilhoso com a Vera Morais (voz) e Hristo Goleminov (saxofone). Mas claro que estou a ser injusto porque existem muito mais como por exemplo: Miguel Meirinhos (piano), Hugo Caldeira (trombone), Joana Raquel (voz), Hugo Ferreira (guitarra) Pedro Jerónimo (trompete), João Cardita (bateria), etc.
Por falar em Porta-Jazz. Esta associação, fundada em 2010, é uma peça fundamental no fervilhante panorama do jazz que se faz em Portugal e não somente na zona do Porto. Como olhas para o seu trabalho?
A obra da Porta-Jazz fala por si penso que com mais de 70 CD editados e centenas de concertos realizados. É, sem dúvida, um dos acontecimentos mais importantes do panorama jazzístico do Porto.
Não obstante as colaborações que remontam ao passado e que nunca cessaram, parece-me que se está a verificar atualmente uma maior aproximação entre as cenas jazzísticas de Lisboa e do Porto, com vários projetos e músicos muito ativos em ambos os ecossistemas...
Nunca me interessou falar desse assunto porque Portugal é muito pequeno e eu sempre trabalhei com músicos das duas cidades. Na verdade, no início da minha atividade a cena de Lisboa foi muito mais importante no meu desenvolvimento, quer pelo facto de tocar muitas vezes no Hot Clube, bem como tocar mais com músicos de Lisboa.
Fundaste o primeiro curso superior de Jazz em Portugal, em 2001, na ESMAE, e o teu percurso é indelevelmente marcado também por uma intensa atividade docente. Isto dá-te uma autoridade especial para analisar o estado atual do ensino da música, em geral, e do jazz, em particular, em Portugal...
Não dá autoridade, mas, sim, conheço muito por dentro o desenvolvimento do ensino da música em Portugal, porque participei na sua construção.
Se tivesses uma máquina do tempo à disposição (uma das peças do disco novo chama-se precisamente “Time Machine”) para quando a programavas e porquê?
Para o futuro porque é o que sempre me interessa.