Coração apertado
Nascida em Minsk, na Bielorrússia, Katerina L'dokova encontrou o seu destino em Portugal. Pianista, cantora e compositora, tem explorado diversos universos musicais e apresentou neste ano de 2022 o disco “Mova Dreva”, um interessante ethno-jazz que combina elementos da tradição musical bielorrussa com arranjos e interpretação jazzísticos. O álbum será apresentado ao vivo no Hot Clube, em Lisboa, no dia 9 de junho. Estivemos à conversa com Katerina L'dokova.
Porque vieste de Minsk para Lisboa? Com que idade vieste e como foi o processo de adaptação?
Desde a minha adolescência tinha vontade de ir viver para um outro país. A situação política, económica e social na Bielorrússia estava a piorar. Já tínhamos tentado anteriormente, a minha mãe e eu, quando eu tinha 7/8 anos. Ficamos na França durante oito meses, mas não conseguimos documentos e tivemos de regressar. A minha mãe teve uma oferta de trabalho em Portugal, nos Açores, como professora de piano e eu vim de seguida, com um visto turístico, mas não pude ficar por não ter toda a documentação, tive de voltar para a Bielorrússia. A embaixada mais próxima fica em Moscovo, ainda hoje em dia. São doze horas de comboio para cada lado, tive que lá seis vezes. Negaram o processo, recomecei, enfim, quando consegui o visto já não acreditava que estava a acontecer. Só queria ir embora. Em relação à adaptação, eu fui para a ilha Graciosa, tem pouca coisa a acontecer, pouca gente. Estive entregue a mim mesma. Caminhava, olhava para o sol, para o mar, dava aulas a crianças, tinha sonhos, comecei a falar português aos poucos. Depois mudei-me para o São Miguel, onde a minha mãe estava, e trabalhei lá no conservatório. Entretanto percebi que queria estudar jazz e mudei-me para Lisboa há dez anos.
Como começaste a interessar-te pela música? Como foi o processo de aprendizagem?
A minha mãe é pianista. Desde criança eu ficava nas salas onde ela dava aulas, assistia ensaios e ia aos concertos com ela. Ela gostava de ouvir vinis com música de estilos diversos, ela comprava-me vinis com contos infantis, alguns deles tinham banda sonora e canções muito fixes, eu adorava e cantava as cantigas. Chegámos a fazer musicais em casa com os filhos das amigas da minha mãe, que também eram músicos. Agora a aprendizagem...não foi imediata, não comecei a tocar aos três anos como se pensa que toda a gente de leste faz! A minha mãe começou a ensinar-me quando eu tinha cinco, mas eu ainda queria era brincar. Então aos seis ou sete fui para uma escola de música onde não gostava nada de aulas de piano, mas adorava o solfejo, a professora inventava histórias e tínhamos personagens associados aos intervalos e lembro-me que me divertia muito naquelas aulas. Depois aconteceu a ida para França e, quando regressei, aos quase nove anos, fui para uma escola onde passei dez anos e que me deu uma boa formação. Era um internato onde a maioria das crianças ficavam alojadas por morarem longe. Tinham todas as disciplinas integradas. Só as disciplinas de música eram imensas. Foi lindo, mantenho amizades de lá até hoje. Estávamos todos no mesmo barco, todos estudavam música, só o instrumento é que alterava. Partilhávamos as nossas dificuldades e descobertas, íamos juntos ao teatro, ópera e ballet para ver ao vivo as obras que faziam parte do nosso programa escolar.
Quem foram as primeiras influências no jazz?
Interessei-me pelo jazz por causa da música brasileira, bossa-nova, jazz brasileiro. A única forma de entender cifra, construção, forma de tocar, era pelo jazz. Comecei a estudar e pouco depois comecei a compor. Não era a minha intenção, nunca imaginei que era possível compor assim, de repente. O jazz levou-me ao meu caminho, levou-me à criação de música autoral. Adoro ouvir e tocar música autoral: minha e de outros autores, com os próprios autores. As influências de jazz da infância eram Ella Fitzgerald e Nat King Cole, é o que mais me lembro. Hoje em dia acho que não tenho músicos preferidos, gosto de ir aos concertos e ouvir música ao vivo. Levo aos meus ouvidos, procuro música que ouço nos festivais e aquela de que os amigos me falam.
Em Portugal há três figuras inevitáveis do piano jazz em Portugal: Mário Laginha, João Paulo Esteves da Silva e Bernardo Sassetti. Qual a tua relação com a sua música?
Estão os três numa linha subtil entre clássico, jazz e motivos tradicionais. Têm muitos ostinatos nas composições, principalmente a solo. Usam sonoridades e texturas de pianistas-compositores de música clássica. Não se classificam pelo estilo – são fusões únicas, como qualquer ser é uma mistura única de crenças, vivências e sonhos. Tenho um grande respeito pelos três. Adoro ir aos concertos do Mário e do João Paulo. O João Paulo foi meu professor na Escola Superior de Música de Lisboa e o que eu mais apreciava é a calma e o sentido lindo de humor que ele tem. Tenho seguido a sua carreira e os discos novos que aparecem. Quando ouço a música deles, vejo, sinto e reconheço Portugal.
A música brasileira foi importante no teu percurso. Como foi o teu processo de descoberta da música brasileira?
Ainda em Minsk, chegavam vários discos novos à nossa casa. Entre eles estavam Madredeus e Jobim. O disco do Jobim era uma das escolhas mais frequentes para quando tínhamos visitas. Na altura eu não sabia que estavam a cantar em português, e não podia nem imaginar que um dia ia falar português. Quando vim a Portugal pela primeira vez, fez-se luz de que a língua era a mesma. Arranjei mais discos do Jobim para ouvir e aprender português. Cantava juntamente com os discos. Houve um dia quando arranjei partituras e tentei tocar as canções dos discos. Conseguia fazê-lo só com a partitura, e mesmo assim não estava nada à vontade. O som dos acordes jazzísticos era tão prazeroso. Eu ficava encantada. Algum tempo depois quis estudar para saber fazer aqueles acordes bonitos.
Em 2016 surgiu disco “Ledok”, que mistura jazz, clássica e melodias tradicionais. Como surgiu esta música?
Quando comecei a compor, as minhas primeiras composições eram para dançar as danças tradicionais europeias. Eu conheci as danças em São Miguel, no festival Dançarilhas. Depois fui ao festival Andanças em 2011/2012 e nunca mais parei de dançar. As primeiras melodias que nasciam na minha cabeça eram para ser dançáveis. Eu começava a ter uma ideia e dançava até completar uma secção. Assim nasceram várias composições que deram origem ao projeto “Ledok”, totalmente dedicado às danças tradicionais europeias. A única diferença é que, em vez de dançar ao som de música e instrumentação tradicional (concertina, violino, gaita), o “Ledok” propõe dançar com um som menos tradicional e com instrumentação diferente.
Publicaste em 2019 “Travessia”, mais ligado à poesia e tradição portuguesa, com o João Neves. Como nasceu este projeto?
Eu e o João estudamos juntos. O projeto nasceu por causa de um convite para um concerto. Decidimos que seria uma boa ideia fazermos arranjos e composições novas. Para mim foi um lindo processo de descoberta da música e poesia portuguesa. Comecei a procurar música tradicional, conheci o Tiago Pereira d’A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria que nos convidou para o festival Bons Sons. Mostrei o projeto ao centro Musibéria, que nos convidou para gravar lá. Dediquei este álbum a Portugal. Em 2019 eu via Portugal assim.
Um outro projeto diferente é o “Katavento”, entre a música brasileira e o jazz, contando histórias. O que te levou a este universo musical?
Já gostava da música brasileira e fui descobrindo a música que se faz atualmente em várias regiões, música original, cantautores. A cena cantautora de Minas Gerais é uma viagem! Quando ouvi pela primeira vez as composições de jovens de lá, fiquei boquiaberta. Fez-me tanto sentido, achei que eu poderia ter escrito aquela música. Quer dizer, eu no meu estado muito inspirado, talvez num estado transcendental e superior! Posteriormente cheguei a conhecer algumas dessas pessoas que ouvia. Fiz uma tour em Minas (com o projeto “Katavento”) em 2016, em 2017 toquei com a banda do Gustavito e a Bicicleta (cantautor de Minas Gerais) no Canadá e no FMM Sines. E convidei o António Loureiro (multi-instrumentista e compositor de Belo Horizonte - Minas) para a produção musical do meu último álbum, “Mova Dreva”.
Voltando ao “Katavento”. Foi no final de 2015 que começaram a surgir canções em português, com letra. Até me nasciam com o português do Brasil! De repente estive a compor muito e num espaço de dois meses e meio fiz muitas composições que deram para fazer um concerto inteiro. Este projeto ainda não tem um álbum, mas espero conseguir fazê-lo.
No disco “Mova Dreva” fazes uma abordagem original, combinando melodias tradicionais da Bielorrússia com jazz. Como chegaste a esta música?
Como dediquei a “Travessia” a Portugal, achei que estava na hora de procurar a minha raiz bielorrussa. Deparei-me com um vazio em relação à tradição, costumes, música e canções da Bielorrússia. Fiz uma investigação maioritariamente pelos livros feitos com o material das expedições nos anos 1960 e gravações das mesmas (faixas com canções e exemplos instrumentais). Foi das melhores coisas que fiz. O processo, a caminhada, fizeram e continuam a fazer-me tanto sentido. A cultura pagã, a cultura tradicional, está completamente colada à natureza, aos seus ciclos, à beleza de que vemos ao nosso redor, à forma de sentir e tratar a natureza e o próximo. É uma filosofia da vida cheia de amor e carinho. Hoje sei um pouco mais sobre os meus antepassados e vejo tantas semelhanças com as tradições de outros países. Isto leva-me a confirmar cada vez mais que somos todos da mesma terra, somos aquecidos pelo mesmo sol, amamos e choramos as mesmas coisas.
Neste disco trabalhas com os músicos António Loureiro, Paulo Bernardino, Diogo Duque e João Fragoso. Porque escolheste estes músicos?
Começarei pelo João Fragoso. Estudámos juntos e eu pedia-lhe para tocar em todas as coisas que inventava. Não poderia haver uma escolha mais natural. Já fizemos muitos concertos juntos, alguns deles em duo: tocamos canções nossas, música para dançar as danças tradicionais europeias, arranjos. O João tem os seus projetos também de música tradicional. Aprecio as ideias musicais dele, já não lhe preciso explicar quase nada e gosto de partilhar música com ele.
Conheci o Paulo também na Superior [ESML]. Queria um instrumento de sopro com um som mais tradicional e achei que o clarinete seria o ideal. O Paulo tanto toca de uma forma mais tradicional, como facilmente usa eletrónica e efeitos.
O Diogo Duque também conheci na Superior. No álbum “Travessia” pareceu-me que a “Jangada”, composição que abre o álbum, precisava de um trompete. Quando penso em trompete, não imagino outra pessoa, nem outro som. A forma de tocar do Diogo é tão dele. Acho que muito da música que escrevi fica bem no trompete.
O António Loureiro, para além de músico neste álbum, foi também foi a pessoa que mais me ajudou na produção musical. Eu tinha concorrido para apoio fonográfico da GDA e ganhei. Logo que tive este apoio escrevi ao António. Já gostava da música dele e achei que seria a pessoa ideal para fazer a produção musical. Ele fez todo o trabalho remotamente a partir de São Paulo: gravou bateria, teclados, efeitos, preparou as faixas todas para seguirem para a mistura e masterização.
Depois deste disco, quais são os teus próximos planos com este projecto “Mova Dreva”?
Este projeto fez-me enraizar. Agora, o que mais quero é fazê-lo voar. Para começar estou a organizar uma tour com concertos de lançamento. O primeiro será no Hot Clube no dia 9 de junho. Depois vamos tocar em Leiria, Coimbra, Almada, Lisboa novamente, talvez alguns festivais. Quero muito que “Mova Dreva” viaje para outros países também. Tenho ido às feiras de música como Womex, WestWayLab, Jazzahead para aprender mais do negócio da música e conhecer festivais que trabalham com música como esta. Tem sido um processo complicado, muita coisa a aprender e muitas exigências. É um trabalho constante, para o qual gostava de ter ajuda.
Além destes projetos já referidos, em que outros estás envolvida?
Faço pontualmente concertos infantis com os Mundos da Música, música para teatro com o Nuno Cintrão e companhia de teatro Byfurcação, toco com cantautores maioritariamente do Brasil, fiz agora uma série de concertos com a Yuliia Holub, cantora da Ucrânia que faz arranjos jazzísticos de canções tradicionais ucranianas, também faço parte da direção da Pradmova, uma associação cultural e educacional de bielorrussos em Portugal, onde organizo encontros de cantigas tradicionais, dou aulas particulares e na escola do Hot Clube e tenho o meu projeto a solo, com música de todos os projetos para os quais componho. E espero que amanhã surjam coisas novas.
Tens explorado mundos musicais muito distintos. Como consegues trabalhar em simultâneo estes universos tão diferentes e particulares?
A música é linda. Dá-me uma felicidade grande quando penso que aconteceu tornar-me música. Não acho que os mundos sejam assim tão distintos, todos nós temos tantas faces. Vejo esses universos como estações do ano ou celebrações diferentes da mesma terra.
Quais são os teus planos para os próximos tempos?
Hmmm, o conceito de planos ficou vago nestes últimos dois anos… Tenho muitos, quero sempre tudo! Sei que quando queremos muito, quando caímos dói mais, então é preciso planear com mais calma. No entanto sonho muito e continuo a querer sempre tudo! Planos mais próximos são fazer um ou dois novos videoclipes, estou a fazer uma série de podcasts sobre a música de Leste para a Rádio Olisipo, escrever a tese, arranjar mais concertos com “Mova Dreva” e a solo, continuar a dar aulas de português para bielorrussos que estão a chegar à Portugal... e a lista não acaba!
Uma questão para além da música: sendo oriunda de um país próximo do conflito, como estás a sentir esta guerra na Ucrânia?
Está a doer muito. Qualquer conflito, qualquer guerra, independentemente do lugar onde acontece não tem justificação, não tem propósito, não tem desculpa. Sinto que nós, seres humanos, não estamos a aprender com a nossa própria história e isso deixa-me extremamente triste. Os valores estão trocados. O poder corrompe e tenho pensado que conseguir ser coerente consigo próprio, conseguir manter a consciência e o bom senso é das maiores sabedorias e conquistas. Os bielorrussos estão há vinte e oito anos a lidar com este governo insano e estão a lutar ao lado dos ucranianos com esperança e crença de que isto tudo termine brevemente para os dois países. Estou há três meses com o coração apertadíssimo. Por cá fiz concertos solidários, comecei a dar aulas de português aos bielorrussos que têm chegado da Ucrânia e da Bielorrússia e aos poucos vamos ajudando com o que conseguimos.