Pensar a voz
Mariana Dionísio é uma das mais ativas figuras da nova geração da cena nacional. A sua voz tem explorado diversos universos, da música contemporânea à música experimental, passando pelo jazz e pela improvisação livre. Tem desenvolvido múltiplas colaborações e parcerias, com músicos como João Almeida, Clara Saleiro, João Pereira e Leonor Arnaut - com quem se vai apresentar ao vivo no Festival Theia. Em entrevista, Mariana Dionísio fala sobre o seu percurso e os seu projetos.
Como nasceu a tua ligação com a música?
Nasceu em casa, através dos meus pais. Sempre se ouviu muita música e se incentivou a sua prática. Brincávamos muito a cantar! Uma das brincadeiras que a minha mãe fazia comigo e com a minha irmã era a de cantarmos todas a mesma nota, com a mesma vogal e fundirmos a voz numa afinação perfeita. Quando alguma de nós descia ou subia um bocadinho “fazia cócegas”. O meu tio, também músico (Dudas), incentivou muitas sessões musicais que resultaram nas crianças a fazer um concerto para os adultos no final de quase todas as reuniões de família. Até vendíamos bilhetes a troco de dinheiro de papel que distribuíamos antes do evento. Um bocadinho mais tarde, aos 6 anos, comecei as minhas aulas de piano com a Adeline, que foi importantíssima para ter desenvolvido o prazer que fazer música me dá. Acabou por se tornar uma amiga que tem acompanhado o meu percurso até hoje.
Como foi o teu percurso académico e musical?
Paralelamente ao ensino regular, estudei piano na Escola de Música do Conservatório Nacional e em 2014 comecei a Licenciatura em voz jazz na Escola Superior de Música de Lisboa. Já no final da minha licenciatura descobri as aulas de canto da professora Lúcia Lemos, que mantenho até hoje. São imprescindíveis para ir descobrindo como funciona este instrumento tão misterioso e invisível!
Quem foram as tuas primeiras referências na voz? Podes indicar disco/s favoritos/marcantes/influentes durante o teu processo de descoberta?
Curiosamente, o meu interesse em música vocal surgiu muito tarde, embora tenha passado toda a minha vida a cantarolar informalmente e cantado bastante durante o meu percurso no conservatório. Este interesse surgiu quando comecei a perceber melhor o que era fisicamente o som, como se comporta, como o percebemos, o que são as vogais, etc.. Estas questões levavam-me a fazer experiências com a minha própria voz, com instrumentos e objectos. Referências vocais resultaram de forma menos natural e mais consciente através de uma pesquisa muito específica, quando mais tarde assumi o meu interesse em trabalhar a voz.
Claro que houve vozes que me fascinaram durante o período da minha adolescência e, que por razões muito diferentes, terão tido um papel importante na maneira como penso certos aspectos na minha voz cantada. A Elis Regina, por tudo e mais alguma coisa, mas sobretudo pela maneira como usa as palavras e onde as coloca; a Barbara Hannigan, que me fez ir sentindo a voz a ressoar sem grande esforço quando a tentava imitar imediatamente após ouvi-la, ainda sem dominar qualquer tipo de técnica; a Aziza Mustafa Zadeh que me espicaçava com a sua agilidade ao cantar melodias rapidíssimas num registo enorme e uniforme em uníssono com o piano. Estes exemplos são todos de cantoras que de alguma forma terão um instrumento fisicamente parecido com o meu, cantoras que ressoavam de forma muito natural no meu aparelho vocal. Houve muito mais cantores que despertaram o meu interesse e admiração, até de forma mais consciente, e dos quais me ficaram muitas lições, mas cujas características que me entusiasmavam estavam longe de ser ferramentas que poderia utilizar sem soar artificial. Lembro-me, por exemplo, de quando andava a ouvir muito a Ella Fitzgerald e me apercebi que nunca conseguiria soar da mesma forma. A fisicalidade do seu som, para além da linguagem própria de um estilo que também não possuía, é decisiva para afastar a possibilidade da minha voz soar assim num tal contexto.
Qual a tua ligação com o jazz?
Embora tenha ouvido muito através dos meus pais, e lhes tenha furtado alguns discos, o jazz só entrou activamente na minha vida a partir do momento em que entrei na ESML [Escola Superior de Música de Lisboa]. Não tinha tido nenhuma experiência anterior. Mas a ideia da improvisação fazer parte do programa de ensino era-me muito entusiasmante. Além disso queria agilizar o pensamento harmónico e pensei em primeiro lugar fazer provas para piano, mas apercebi-me dos prazos tão em cima da hora que achei impossível preparar-me em tão pouco tempo. Decidi tentar entrar em voz para me ir infiltrando nesse meio musical e acabei por descobrir, depois de alguma resistência, que adorava cantar, e só então a imaginar-me cantora.
Foi a meio do curso que ouvi falar do Laboratório de Música Mista da ESML, dirigido na altura pelo José Luís Ferreira e o Carlos Caires, que se propunha a misturar música acústica com electrónica através de uma improvisação pelo som. Achava eu muito estranho que durante tanto tempo fossemos eu e o Guilherme Aguiar (piano) os únicos músicos no laboratório vindos do curso de Jazz enquanto todos os outros estavam ligados à música erudita. Mas foi através deste grupo, que incentivava muito colaborações extra-curriculares, que começámos a ter contacto com alguns músicos improvisadores, sobretudo de uma geração mais velha, que tinham uma abordagem à música diferente da dos músicos vindos de uma tradição mais jazzística. Comecei a receber alguns convites de colaboração de músicos ligados à Creative Sources e a conhecer cada vez mais pessoas a pensar a improvisação de maneiras muito diferentes.
Foi nesse ambiente de descoberta e no seguimento das conversas, experiências e aulas de composição com o José Luís Ferreira que me foi surgindo o desejo de me dedicar a assuntos que hoje em dia trabalho nos meus projectos.
Passemos às tuas colaborações. Tens trabalhado com o Pedro Melo Alves, primeiro no projeto In Igma, depois no Omniae Ensemble. Como tem sido trabalhar nestes projetos?
Trabalhar nos projectos do Pedro tem sido sempre uma aventura, mas a experiência que me marcou mais foi o convite que me fez para substituir o Gileno Santana (trompete) no seu Omniae Ensemble (septeto). Quando pousei os olhos naquelas partituras diabólicas, claramente não escritas para voz, a um mês de um concerto na Casa da Música, apercebi-me de que aceitar a proposta implicava passar todo esse mês a inventar uma abordagem de estudo que me permitisse aguentar um papel para o qual não estava fisicamente preparada! Concluir esta tarefa fez-me aperceber de todo um leque de capacidades que não andava a considerar enquanto cantora, que inconscientemente reservava a instrumentistas. Uma espécie de virtuosismo escondido que, mais do que me incentivar à prática de repertório dificílimo, veio derrubar alguns dos termos que limitavam a imagem que tinha da minha proposta musical.
Tens trabalhado em duo com Leonor Arnaut, um projeto que já se apresentou ao vivo na ZDB e Festa do Jazz. Trabalham uma exploração vocal original, com uma grande amplitude de registos, e também acrescentam percussão. Como tem sido este trabalho em parceria?
Diria que para falar sobre este projecto tem que se começar por evidenciar a sua particularidade que é a de trabalhar sobre dois instrumentos muito parecidos. Esta parecença não se resume ao facto de se tratar de duas vozes, mas duas vozes muito semelhantes a nível de registo e timbre. Começámos com essa premissa e acabámos a encontrar um espaço onde exploramos a voz pelo som - antes da palavra ou da forma. Este trabalho sobre o som levou-nos a usar a palavra como um modelador, que não necessariamente veículo de eventuais mensagens, e a querer exteriorizar certas ideias vocais através de outros instrumentos, que funcionam como uma extensão. Trabalhamos então o texto sobretudo para jogar com o ritmo e sons que imprime na voz falada ou cantada e usamos instrumentos que acentuam a marca dessa impressão.
Tens atuado em duo com a flautista Clara Saleiro e já se apresentaram ao vivo várias vezes. Que materiais interpretam e como tem corrido este trabalho em duo?
O projecto com a Clara consiste na interpretação de peças para voz e flauta de compositores contemporâneos e nalguma improvisação direcionada à exploração de material selecionado. O nosso objectivo acaba por ser o de misturar em concerto o material improvisado com o escrito, uma vez que ambos se prestam à investigação desta conjunção instrumental. Temos incluído peças a solo que revelam características mais específicas de cada instrumento e aproveitado as improvisações para pensar em conjunto algumas das propostas que essas peças nos parecem trazer.
Desde o primeiro ensaio, quando fizemos uma leitura em conjunto da peça que começámos por estudar ("Only the words mean what themself say" de Kate Soper), percebi que trabalhar com a Clara me traria uma satisfação imensa. Aprender peças que gosto e poder trabalhá-las minuciosamente para que as interprete como idealizo é um prazer que tenho vindo a ressuscitar dos meus tempos de conservatório. Na Clara, que tem tido esta abordagem muito mais vezes que eu, reencontrei a cumplicidade em gostar de interpretar objectos que já são por natureza muito detalhados. Aqui, o meu trabalho trata-se de uma parceria com o criador desse objecto: conta-se que o respeite nas instruções que me dá, mas acaba por me dar a responsabilidade sobre tudo o que não me dá. Esta espécie de contrato posiciona o meu trabalho numa pesquisa pelo detalhe e minúcia que não consigo controlar tão eficazmente num contexto mais livre e improvisado, mas que tem vindo a resultar numa maior atenção geral aos pequenos detalhes.
Tens explorado sobretudo o trabalho em duo. Tens o duo Lump com o trompetista João Almeida e agora estás a trabalhar com outro músico, também ligado ao jazz, o baterista João Pereira. Como têm sido estes encontros musicais?
Tenho sempre muita vontade de trabalhar em duo, acho que começo a perceber que se trata de uma necessidade, mais do que de um capricho estético. Se começar a dominar a arte do duo, pode ser que eventualmente comece a fazer soar um trio, e por aí fora...
O duo com o João Almeida é o primeiro fruto dessa vontade. Começou ainda enquanto frequentava o curso na ESML, já depois de ter algumas experiências no Laboratório de Música Mista e de ter tocado com ele algumas vezes noutros contextos. Começámos a fazer sessões em duo onde levámos muito à letra a ideia de laboratório. Estávamos oficialmente em pesquisa de um som de conjunto - como é que o trompete e a voz se podem fundir de tal forma a criar um som novo, e que o resultado final não seja a soma das partes, mas sim uma outra coisa...? Andámos a trabalhar quase que para criar um novo instrumento, procedente de uma fusão tímbrica mas também formal, esta última relacionada com a direcção que se pode levar a cabo na narrativa de um evento sonoro em contexto improvisado.
Com o João Pereira é bastante diferente independentemente da evidência dos recursos distintos que uma bateria oferece neste contexto. Embora o conjunto de ferramentas que disponibiliza para uma “fusão” com a voz seja radicalmente diferente, experimenta-se muito em sessões uma ideia de gestos de conjunto que modificam as intenções dos sons isolados – tal como uma palavra na boca de um falante modifica a saída de um som que poderia não passar de uma vogal... Mudo naturalmente a minha abordagem de forma muito específica quando me proponho a improvisar com um instrumento como a bateria - com notas não sustentadas. Cada ataque na bateria, à excepcão dos pratos e de gestos continuados que pretendem manter uma textura específica, tem uma duração muito curta e um decay rapidíssimo. De maneira que o ataque do gesto ganha um destaque que um instrumento de nota alimentada (como a voz ou o trompete) não oferece tão facilmente. Ainda que mantenha a atenção a assuntos como este que me interessam pensar em conjunto, tocar em concerto com o João tem sido uma experiência de liberdade formal muito prazerosa. É tudo muito solto. Saiem-nos sambas, narrativas estapafúrdias em voz falada, canções improvisadas e mesmo uma atitude que desconhecia em mim no palco. É muito divertido.
Participaste na Orquestra Galega de Liberación, que editou o disco "Meets Portugal", e que desenvolve um trabalho de improvisação dirigida em tempo real. Como foi esta experiência?
Foi muito interessante perceber como a utilização eficaz de um conjunto largo de gestos pode levar a que um grupo muito grande de pessoas, que não falam nem combinam nada previamente, colabore com tanta agilidade que permita, a quem dirige, a criação de uma peça musical em tempo real. Este encontro e o workshop que frequentei pela mesma altura com o Rodrigo Constanzo a propósito do “Cobra” do John Zorn, foram importantes para conceber os termos do projecto do ensemble vocal que tenho vindo a dirigir nos últimos meses.
Nos últimos tempos temos assistido à afirmação de novas vozes, na áreas do jazz e da improvisação - como Leonor Arnaut, Joana Raquel, Nazaré da Silva, Vera Morais - que usam a voz como instrumento, servindo-se de diferentes registos. Como vês esta afirmação destas novas vozes?
A expressão “utilizar a voz como instrumento”, comummente utilizada pela grande parte de quem pensa a emergência da voz em novos contextos musicais, leva-me a crer que ainda está muito enraizada a ideia de que a voz tem que oferecer à música o objecto de expressão extra-musical que permita contextualizar, ou materializar em palavras e intenções expressivas, algum tipo de mensagem. Ou até que o seu propósito musical está em servir-se da música para enfatizar ou adornar a comunicação dessa tal mensagem.
Quando a voz oferece uma proposta mais formal e abstracta, como o faz tão facilmente (e sem levantar tantas questões) qualquer instrumento de sopro, questiona-se quase imediatamente a sua pertinência na participação de um determinado evento. Acho que é tempo de se abraçar a ideia da conveniência em chamar uma voz simplesmente pela pequena contribuição tímbrica que poderia trazer a um contexto musical, com o mesmo requinte de quem pondera entre um trompete ou um saxofone soprano para assumir um certo papel num grupo.
A afirmação destas novas vozes aparece inevitavelmente a desbravar um caminho que deixará uma forte marca na maneira como se vai passar a olhar para o trabalho vocal. São tempos muito entusiasmantes para quem se dedica a pensar a voz!
Em que outros projetos estás envolvida? Quais os teus planos para os próximos tempos?
Para além dos projetos que mencionei acima, ando muito entusiasmada com o ensemble vocal que reuni no final do ano passado, que conta com a Leonor Arnaut, a Beatriz Nunes, a Nazaré da Silva, a Filipa Pinto, o João Neves, o Hugo Henriques e o Diogo Ferreira. Entre várias coisas, trabalhamos “peças-premissa”, ou a maneira de fazer uma improvisação soar a uma peça. Cada peça corresponde a um conjunto de ideias que a fazem ter características muito próprias e um conjunto de gestos e sinais que orientam a narrativa do evento.
Na sequência de um concerto que fiz em duo com o guitarrista João Carreiro, o qual acabou por se tratar de um requiem improvisado sobre alguns dos textos litúrgicos que o compõem, ficou decidido que registaríamos uma segunda versão dessa interpretação... Fizemos o convite a algumas pessoas, ainda não confirmadas, para se juntarem a nós dando corpo à ideia inicial e andamos muito animados com esta ideia.
Com o Guilherme Aguiar e o Lucas Xerxes, estamos a magicar uma instalação sonora.
Estou finalmente a levar a cabo as ideias que tive durante os poucos meses de aulas de composição com o José Luís Ferreira, que se entusiasmou e me incentivou calorosamente a levar a cabo os meus “oito estudos para voz preparada”.