Amaro Freitas, 11 de Abril de 2022

Olhar o passado, entender a história

texto: Nuno Catarino / fotografia: Jão Vicente

Natural de Recife, Pernambuco, Amaro Freitas é um pianista original que vem desenvolvendo um percurso interessante, sobretudo ao leme do seu trio, com Jean Elton (contrabaixo) e Hugo Medeiros (percussão). O grupo já editou três aplaudidos registos – “Sangue Negro” (2016), “Rasif” (2018) e “Sankofa” (2021) – música fresca onde o jazz abraça elementos da tradição musical brasileira. Antecipando as atuações do trio no Auditório de Espinho (29 de abril) e no Cineteatro Louletano (30 de abril), o pianista pernambucano falou com a jazz.pt: sobre o seu percurso e sobre o seu disco mais recente. 

Como é que um jovem de Recife se começa a interessar pelo jazz?

Quando recebi um DVD do Chick Corea Trio foi o primeiro contato que eu tive com o jazz aos 15 anos, aquilo mudou minha vida e eu disse “é isso que quero fazer, viver de música instrumental, ser um pianista de jazz”. Fazer arte no Brasil não é fácil. Foram várias barreiras diferentes para chegar até aqui. Eu moro no nordeste do Brasil e fui criado na periferia da zona norte de Pernambuco. Não tive estrutura na minha adolescência, então tive que trabalhar para poder bancar os estudos já com meus 18 anos, na periferia o que é considerado trabalho tem muita mais a ver com o trabalho braçal do que trabalhar com arte, então tive um pouco de resistência da minha família quando falei que queria ser pianista. Trabalhei muito tempo tocando em restaurantes e o próprio mercado musical desacreditava que era possível viver de música instrumental morando aqui em Recife e fazendo música autoral. Durante a produção do meu primeiro disco eu fui tentando entender ao máximo como poderia fazer um trabalho excelente mas não existia um roteiro ou um caminho que explicasse o passo a passo de como um artista independente da cena instrumental pode seguir, fui descobrindo isso sozinho na vivência da faculdade e na troca com vários amigos músicos.  

Como foi o seu processo de aprendizagem no piano? Quem foram as primeiras influências mais importantes no piano? 

A paixão pelo piano surgiu ainda criança, quando meu pai comprou um teclado e começou a me ensinar. Venho de uma família muito musical, então esse ambiente também colaborou para meu desenvolvimento no piano na música. Algumas das minhas principais influências brasileiras são Naná Vasconcelos, Moacir Santos, Hermeto Pascoal, Johnny Alf, Don Salvador, Tom Jobim entre outros. E minhas influências internacionais são Chick Corea, Thelonious Monk, Cecil Taylor, Oscar Peterson, Vijay Iyer, Craig Taborn, Gonzalo Rubalcaba, Michel Camilo, Erik Satie, Yann Tiersen, Olivier Messiaen, Béla Bartók e Chopin, entre outros.  

A sua música soa a um cruzamento de jazz com elementos da tradição musical brasileira. Como desenvolveu a sua música, que resulta muito original? 

Eu nunca paro, estou em constante processo disciplinar de estudo e foco. Para mim uma composição é o retrato da percepção que eu vou ter relacionado a uma experiência da vida, ou seja, viver é a minha inspiração. Dentro do processo criativo é impossível absorver tudo que nos chega e descodificar essas informações rápido, e já ir criando um roteiro sonoro com isso, é impossível ser tão rápido assim quando o propósito é mergulhar de forma profunda e não só na superfície. Geralmente entre um disco e outro eu levo dois, três anos para chegar em um lugar maduro com as músicas, um lugar novo, um lugar que me tire da minha zona de conforto. E mesmo depois da gravação, quando vamos vivendo as músicas em apresentações do trio, elas ainda continuam crescendo e crescendo com se fossem um ser vivo.

“Sankofa” é o seu terceiro disco. Que ideias pretendeu apresentar neste mais recente trabalho? 

Sankofa é um símbolo que significa olhar para o seu passado, para os seus ancestrais, entender sua história, entender que você é continuidade de várias pessoas que vieram antes de você e lutaram para que hoje você exista em sua plenitude. Entendendo melhor sua origem, sua história, você pode ter um olhar mais panorâmico sobre sua vida, seus desafios, sua missão. Dessa forma pode seguir voando para o futuro e com a compreensão do seu passado trazer um melhor mundo para as próximas gerações, entendendo que do mesmo jeito que o posicionamento dos nossos ancestrais foram importantes para vida que levamos hoje, o nosso posicionamento a nossa postura é importante para as gerações futuras. O disco fala sobre ancestralidade, celebração e orgulho de todos que resistiram fortemente para que hoje eu e você estivéssemos aqui. Quando penso em Tereza de Benguela, quando penso em Baquaqua, ou em Vila Bela, Milton Nascimento… Sankofa abraça todas esses lugares e personagens. Sankofa fala sobre olhar para nossa ancestralidade, mas também entender que o futuro é ancestral e ao mesmo tempo é minha responsabilidade cuidar do presente para que esse futuro seja real, um dia eu serei um ancestral de alguém e foi em Sankofa que os meus olhos abriram e foi nesse nome que eu encontrei minha missão nesse terceiro disco autoral. 

Tem trabalhado sempre em trio com Jean Elton e Hugo Medeiros. Que características procura nestes músicos?

Eu tive muita sorte em encontrar esses caras. São músicos incríveis, cada um traz um universo de possibilidades, isso colabora muito para o resultado final da nossa música. O facto de todos entenderem a importância do trabalho, do estudo em particular e o estudo coletivo, de provocar um ao outro a sair da sua zona de conforto e estender também essa vivência para falar de outras coisas do dia-a-dia. Isso cria uma ligação tão forte que é fundamental para o som que levamos aos palcos.

Até agora gravou três discos em trio. Tem planos de explorar outros formatos? Um solo de piano? Ou outras formações mais alargadas? 

Tenho sim, o mais próximo é fazer um disco piano solo com influências do piano preparado e utilizar a voz como instrumento também. Já estou há dois anos construindo esse novo trabalho. Acredito que em alguns anos estaremos trazendo ele para o mundo. 
 

Além da sua própria música, tem colaborado com outros músicos, como Lenine, Manu Gavassi, Larissa Lisboa... O que tem retirado destas colaborações?

Colaborar com outros músicos sempre nos traz algum tipo de aprendizado. Cada um traz suas vivências e experiência de mercado de vida, essas trocas são muito enriquecedoras. Uma coisa em comum em todas essas figuras é a disciplina, a dedicação para ter um trabalho excelente. 

Nos últimos anos o jazz tem ganhado nova força, com músicos e projetos como Sons Of Kemet, Kamasi Washington ou Nubya Garcia, que cruzam géneros e chegam a públicos mais alargados. A sua música também se acaba por fazer isto... Sente que o jazz contemporâneo está a viver uma fase interessante? 

Sim, acredito que estamos conectados à energia contemporânea, a energia de agora. Tem uma frase que eu acredito muito quando escuto o compositor e cantor Lirinha falar “o artista é a representação poética das dores e alegrias do seu povo”. O jazz é uma bandeira, um estado de vida que permite aos músicos do mundo todo que se conectem com suas influências territoriais, com seu lugar de fala, suas tradições. Acho que esse movimento liberto de fazer música e contemporânea tem aproximado muito mais pessoas para o jazz. 

O Amaro Freitas é um dos poucos músicos de jazz brasileiros que tem tocado em Portugal e começa a ser reconhecido pelo público português, mas é um caso raro. Aqui em Portugal não conhecemos muito jazz do Brasil. Que músicos poderia recomendar para o público português que goste de jazz? 

Fico muito feliz com essa construção que estamos fazendo em Portugal, por sempre está tocando em alguma cidade e ter uma conexão tão bonita com as pessoas. Poderia recomendar o Henrique Albino, Spok Frevo Orquestra, Jazz das Minas, Salomão Soares e Vanessa Moreno, Hamilton de Holanda, Hermeto Pascoal e Grupo, Orquestra Rumpilezz, Mestrinho ou Nelson Faria, entre outros. 

Já veio tocar a Portugal. Tem conhecimento de músicos da cena jazz portuguesa? 

Conheço alguns, quero conhecer mais e tenho vários amigos brasileiros que atuam na música da noite em Portugal. 

O que poderemos esperar das atuações em Espinho e Loulé?  

Estamos muitos empolgados com esses shows, sempre tivemos uma boa recepção em Portugal, então estamos um pouco ansiosos com muita votante de se conectar com as pessoas daí. 

Quais os projetos que tem planeados para os próximos tempos?

Um projeto piano solo, com uma banda europeia, com uma orquestra. Estamos desenhando o melhor momento para cada um desses projetos.

 

 

Para saber mais

https://www.amarofreitas.com

https://amarofreitas.bandcamp.com

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Duke Ellington’s Songbook

Sunset Jazz - Café 02 - Vila Nova de Santo André

25 Março

Mário Laginha com Orquestra Clássica da Madeira

Assembleia Legislativa da Madeira - Funchal

25 Março

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25 Março

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25 Março

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25 Março

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Auditório ESPAM - Vila Nova de Santo André

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Auditório de Espinho - Espinho

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26 Março

João Madeira, Carlos “Zíngaro” e Sofia Borges

BOTA - Lisboa

26 Março

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Cascais Jazz Club - Cascais

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