Ricardo Pinheiro, 28 de Dezembro de 2021

Elogio da subversão

texto: António Branco / fotografia: Andrea Feliziani, Federica Tesser e SeseOlive Music Photography

Portugal é, bem o sabemos, um país de guitarristas. Também no jazz, as últimas duas décadas têm sido particularmente pródigas no surgimento de guitarristas de alto nível que desenvolveram o seu trabalho prosseguindo um vasto espetro de abordagens. Entre eles, Ricardo Pinheiro (n. 1977) distingue-se pela atividade intensa em várias frentes, como instrumentista, compositor, arranjador, musicólogo, docente e coordenador de atividades académicas em várias instituições de ensino superior. Este ano, o músico já nos brindou com um notável primeiro registo a solo, “Dança do Pólen”, no qual verte toda a elegância e maturidade da sua abordagem, dando sequência lógica a um processo de redução à essência.

O percurso discográfico de Pinheiro iniciou-se em 2010 com “Open Letter”, editado pela catalã Fresh Sound New Talent de Jordi Pujol, acompanhado por Chris Cheek, Mário Laginha, Alexandre Frazão, Demian Cabaud e João Paulo Esteves da Silva. Seguiram-se “Song Form” (2013) na saudosa Tone of a Pitch, “Cinema & Dintorny” (2015), de novo na Fresh Sound, “Triology” (Sintoma, 2014), “Is Seeing Believing?” (Challenge/Daybreak, 2016), “Radio Orchestra” (Sintoma, 2016), “Triplicity” (Challenge/Daybreak, 2018), New West Quartet “East and West” (Fresh Sound New Talent, 2019), “LAB” (AsUR Music, 2020) – editora que fundou com o baixista Miguel Amado –, “Caruma” (Inner Circle Music/AsUR, 2020) e “Turn Out The Stars: The Music of Bill Evans” (Challenge, 2021), para além do já mencionado “Dança do Pólen” (Inner Circle Music/AsUR, 2021). Na calha tem, entre outros, um novo projeto em quinteto.

Ricardo Pinheiro é licenciado em Música pelo Berklee College of Music, de Boston, e em Ciências da Psicologia pela Universidade de Lisboa. Doutorou-se em Musicologia/Etnomusicologia pela Universidade Nova de Lisboa. Ao longo do seu percurso académico, estudou, entre outros, com George Garzone, Ed Tomassi, Mick Goodrick, Jerry Bergonzi, Bill Pierce e Salwa Castelo-Branco. Foi colocado na Dean's List do Berklee College of Music, como resultado do seu sucesso académico e musical, tendo sido ainda bolseiro da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, da Fundação para a Ciência e Tecnologia e do Centro Nacional de Cultura. Foi galardoado com o prémio de investigação em Jazz Studies, Morroe Berger - Benny Carter Jazz Research Fund, atribuído pela Rutgers University e o Institute of Jazz Studies, nos Estados Unidos.

Leciona atualmente na Escola Superior de Música de Lisboa, sendo o diretor do curso de mestrado em Música. Anteriormente coordenou o mestrado em Ensino da Música e a licenciatura em Jazz e Música Moderna da Universidade Lusíada de Lisboa. No plano académico, tem apresentado inúmeras comunicações, “workshops” e artigos, em Portugal e no estrangeiro, sobre jazz, cruzando perspetivas musicológicas e históricas. Já publicou em revistas científicas internacionais da especialidade, como a Acta Musicologica da International Musicological Society, o Jazz Research Journal e a International Review for the Aesthetics and Sociology of Music. É autor dos livros “Jazz Fora de Horas: Jam Sessions em Nova Iorque” (2012) e “Perpetuating the Music: Entrevistas e Reflexões Sobre Jam Sessions” (2013), obras que ajudam a iluminar a importância dessa prática tão característica do jazz.

Razões de sobra para uma longa e reveladora conversa com a jazz.pt.

 

Um breve olhar sobre o teu percurso revela, de imediato, que és alguém multifacetado: guitarrista, compositor, arranjador, musicólogo, pedagogo... Quem é, afinal de contas, Ricardo Pinheiro?

Sou um apaixonado por música, pelo conhecimento e pelo mundo que nos rodeia. Ao longo do meu percurso, tenho seguido vários ímpetos que me têm levado a debruçar-me sobre os campos da Psicologia, das Ciências Musicais e do Ensino. Este caminho tem tido sempre como pano de fundo a criação musical e a improvisação. Acima de tudo, sou alguém que procura aprender e dialogar com o belo. Gosto de lidar com os mais variados tipos de desafios e de partilhar vivências. Para além de músico, investigador e professor, sou também pai, o que constitui uma importantíssima fonte de inspiração.

 

O teu disco mais recente, “Dança do Pólen”, foi a estreia a solo. Que necessidade sentiste de dar este passo rumo ao mais solitário dos contextos? Teve algo a ver com a situação pandémica e o recolhimento a que esta obrigou ou era algo que já estava nos teus planos?

Nos últimos 12 anos tenho tocado e gravado com os mais variados tipos de grupos: orquestras e ensembles (Orquestra de Jazz do Hot Clube de Portugal, o Ensemble de Andrew Rathbun ou o Remix Ensemble com Peter Erskine), duos, trios, quartetos, quintetos, etc. Senti que era hora de assumir a total responsabilidade criativa e performativa que um registo a solo exige, assim como explorar conceitos que adotam a guitarra enquanto instrumento único e multifacetado. Até há cerca de um ano e meio, confesso que não tinha ainda equacionado com seriedade a possibilidade de trabalhar a solo. Creio que, mesmo que de forma inconsciente, a pandemia acelerou a minha vontade para, em recolhimento, explorar novas fronteiras do meu imaginário guitarrístico. Contudo, este disco é também uma humilde homenagem à vida e à força da natureza.

 

Neste disco abordas, de uma forma que me parece mais vincada do que nos anteriores, os cruzamentos entre os universos do jazz, da música portuguesa e lusófona e da música improvisada.

Podemos dizer que sim. Este disco é importante para mim também por espelhar uma certa conciliação com e entre as minhas muitas influências. É um disco muito pessoal, através do qual não procuro soar a um estilo ou segmento estético particular. Assumo, sem qualquer tipo de reserva, o meu “background” variado, que passa não só pelo jazz tradicional e contemporâneo, como também por outras formas de música improvisada e experimental, música portuguesa, brasileira, erudita, música para cinema, pop, rock, ou mesmo o heavy metal. Podemos dizer que este disco expõe, sem reservas, as várias facetas artísticas e humanas de Ricardo Pinheiro, que se pretende constituir enquanto músico capaz de vestir diversas roupagens aparentemente distantes e conciliá-las de forma harmoniosa e direta.

 

É um filão que pretendes continuar a explorar?

Sem dúvida. Continuarei a desenvolver uma busca pessoal (e coletiva, no caso dos projetos em conjunto) pelos confins do íntimo criativo, por forma a explorar novas formas de conceber e de experienciar a música. Esta constante procura é também resultado de um processo de amadurecimento e de experiências com as quais a nossa vivência nos vai confrontando.

 

Como surgiu a oportunidade de coeditares o disco pela Inner Circle Music - tal como o anterior, “Caruma” –, liderada pelo reputado saxofonista Greg Osby?

Eu e o Greg temos vários amigos em comum, entre os quais o saxofonista David Liebman e o acordeonista João Barradas. Conheço a INCM já há vários anos e gosto muito do projeto da editora, pelo que apresentei uma proposta para a edição do disco “Caruma”. Esta etiqueta é reflexo de uma visão profunda de Greg Osby sobre a música e o papel dos músicos no processo de composição, gravação e de edição dos seus trabalhos. A INCM promove trabalho ativo e autónomo por parte dos músicos ao longo deste processo, servindo enquanto plataforma de partilha de experiências e de trabalho em equipa, tendo critérios artísticos como pilares fundamentais desse relacionamento. Por volta dessa altura (2020), eu e Miguel Amado tínhamos acabado de criar a nossa etiqueta, a AsUR. Achei que, pelo facto de existirem inúmeros pontos de contacto entre a filosofia das duas etiquetas, seria interessante juntarmos esforços. A partir desta associação entre a INCM e a AsUR foram já editados dois álbuns: “Caruma” (2020) e “Dança do Pólen” (2021). Posso adiantar que há um novo trabalho em quinteto a ser preparado.

 

No disco “Caruma” trabalhaste com dois cantores, Theo Bleckmann e a brasileira Mônica Salmaso. Com que desafios te deparaste para equilibrar a tua guitarra (e os efeitos que frequentemente lhe acoplas) e estas duas vozes tão idiossincráticas?

Foi uma experiência muito especial e enriquecedora. Quando ouvi o resultado final, senti que a música tinha ganho outra dimensão, atingindo novos patamares de profundidade e de significado. A Mônica e o Theo fazem parte do leque dos músicos que mais admiro em todo o mundo. Cada um, à sua maneira, trilhou novos caminhos no âmbito da sua área criativa, sendo uma referência no campo da música brasileira e do jazz e da música improvisada, respetivamente. Uma vez que geralmente perspetivo a melodia enquanto pilar central das minhas composições, no disco “Caruma” utilizei a voz de Theo Bleckmann como uma camada adicional que complementa a amálgama contrapontística construída pela guitarra. A ideia é, por vezes, criar um efeito de “shimmer”, ou seja, uma desintegração oitavada da reverberação da guitarra. No caso de Mônica Salmaso, privilegiei a voz enquanto principal foco da canção, isto é, tentei não atrapalhar a mensagem da letra e a melodia da voz com a guitarra. Diria que, ao final de contas, foi muito fácil e natural casar a minha guitarra com as vozes destes músicos extraordinários.

 

As atmosferas sonoras intimistas que desenvolveste em “Caruma” e em “Dança do Pólen” parecem estar diretamente relacionadas com a tua convivência diária com a bela e sempre enigmática paisagem natural da serra de Sintra, onde resides. De que modo esta envolvente inspira e molda o teu trabalho quotidiano?

É certo. Tenho, ao longo dos últimos anos, desenvolvido uma relação muito próxima com as paisagens que envolvem o meu quotidiano. Não dispenso passeios diários pela serra ou pelas arribas das praias. Estes momentos quase diários de reflexão têm sido extremamente importantes enquanto fonte de inspiração para a criação artística. Na verdade, posso afirmar que a natureza que me envolve tem desempenhado um papel fundamental na construção e no amadurecimento de um caminho estético pessoal e na procura por sonoridades que me completam enquanto pessoa.

 

A tua música adquire, amiúde, uma dimensão diria cinematográfica, como se de bandas sonoras para filmes imaginários se tratasse... Estás atento a outras formas de expressão artística e trazes elementos delas para o que fazes?

Sim, claro. Interesso-me muito por música para cinema e também por outras formas de expressão artística, tais como a pintura, a escultura e a arquitetura. Por razões familiares e também por estar ligado à Escola Superior de Música de Lisboa, o teatro e a dança são também constantes fontes de inspiração. Por outro lado, também me interesso por aspetos do conhecimento e das ciências sociais e humanas. Todos estes universos são fundamentais para o meu processo criativo.

 

Em “Turn Out The Stars”, juntamente com o contrabaixista Massimo Cavalli e o baterista Eric Ineke, revisitaram e celebraram o imenso legado de Bill Evans. É evidente a afinidade para com a música original, mas também um desejo de a interpelar criativamente...

O disco “Turn Out The Stars” surgiu do meu interesse e enorme prazer em abordar também repertório de jazz mais “tradicional” (o que quer que isso signifique). É extremamente gratificante exprimir-me neste contexto, sendo esta também uma importante dimensão da minha personalidade artística e musical. É um universo que me influencia muito e que acaba por estar também presente nos trabalhos de natureza mais contemporânea com os quais estou envolvido. Por outro lado, para além de remeter para um conjunto de referenciais históricos, este repertório permite também procurar uma potencial frescura que emana das inúmeras possibilidades de reconfiguração que se levantam. Fizemos este disco com enorme prazer e tivemos a oportunidade de o tocar em vários festivais em Portugal e em Itália (Ancona Jazz Festival e Sille Jazz, em Treviso, por exemplo). Este disco tem também sido alvo de dezenas de críticas excelentes, publicadas em revistas/jornais como Jazz Journal (Reino Unido), Le Soir (Bélgica) ou The Times (Reino Unido).

 

No projeto LAB, cuja liderança partilhas com o baixista Miguel Amado, juntaram esforços a dois dos mais interessantes jovens músicos da nova geração do jazz nacional, o saxofonista Tomás Marques e o baterista Diogo Alexandre. Parece haver uma tendência crescente para surgirem projetos que quebram barreiras, sejam elas estéticas ou geracionais. Como vês esta situação?

No campo artístico faz todo o sentido quebrarem-se barreiras, sejam elas do foro estético ou geracional. O que é facto é que tanto o Tomás como o Diogo trazem consigo um conjunto de novas propostas musicais muito interessantes, que me inspiram e desafiam. Temos muitas referências estéticas e históricas em comum, mas também são constantemente trazidos para cima da mesa novos elementos que abrem outros caminhos e que nos obrigam a encontrar soluções muitas vezes fora da nossa zona de conforto. Trabalhar neste contexto é altamente motivador e enriquecedor.

 

O quarteto com John Gunther, Cavalli e Bruno Pedroso é para retomar?

Sim. Na verdade, estamos neste momento a planear a vinda do John a Portugal no próximo ano de 2022. Iremos tocar no Hot Clube em abril e eventualmente gravar novo registo. O John é um músico excecional, da geração de Chris Cheek, e é diretor do departamento de jazz da Universidade do Colorado Boulder. Estamos muito contentes com o resultado musical do nosso disco de 2019 para a Fresh Sound Records (obteve cinco estrelas no Jazz Journal) e estamos ansiosos por gravar o próximo.

 

A tua abordagem à composição e à prática instrumental privilegia melodias, harmonias e texturas sóbrias e elegantes, sem recurso às pirotecnias tão usuais noutros guitarristas. Como te definirias enquanto guitarrista e que tipos de influências assumes?

É uma pergunta de difícil resposta. A melodia desempenha um papel primordial na minha forma de ver e de experienciar a música. Por outro lado, é a harmonia que acaba por dar o sentido final às melodias, atribuindo-lhes um determinado tipo de cor e de significado. As texturas servem para fazer de “cama” às duas componentes anteriormente mencionadas. Pode não parecer, mas sou um guitarrista que padece, como tantos outros, de uma propensão para “pirotecnias técnicas”. Fico feliz por essa minha faceta, aparentemente, não surgir de forma óbvia nos registos editados. A meu ver, a técnica deve ser utilizada enquanto recurso para fazer música e não como finalidade em si mesma. Não sei bem como definir-me enquanto guitarrista, se bem que espero soar a mim mesmo nos distintos projetos dos quais faço parte. Assumo várias influências musicais provenientes do universo da música erudita, do jazz, da MPB, da música portuguesa, do rock, da pop, da música para cinema ou do heavy metal, conforme já disse.

 

E o teu método de trabalho? Há um processo prévio de reflexão, porventura temática, ou a inspiração joga cartadas decisivas no momento de criar?

Nesse aspeto, sou uma pessoa relativamente pouco metódica. Tudo nasce de forma natural, sem pressões ou “receitas”. Há música que surge de forma mais imediata e música que demora algum tempo a amadurecer. Acima de tudo, procuro melodias que me digam algo, ou seja, que me auxiliem a “pintar” um determinado ambiente, estado de espírito ou significado mais espiritual. Posso afirmar que quase sempre penso em “modo canção”. Adoro uma boa canção: uma bela melodia conjugada com uma boa harmonia. Um antigo professor meu do Berklee College of Music dizia que as melhores harmonias não são aquelas que são esperadas, mas aquelas que se tornam inevitáveis depois de ouvidas. Não poderia concordar mais com esta afirmação.

 

As tensões e complementaridades entre composição e improvisação, entre o escrito e o criado em tempo real, são importantes para ti ou tendes a privilegiar algum dos pratos desta balança?

Boa pergunta! A composição é fundamental no meu processo criativo, mas a improvisação também é fulcral no âmbito desse mesmo processo. Algumas composições nascem da improvisação. Por outro lado, a improvisação é aquilo que permite reconfigurar as composições e que faz com que o momento da performance possa ser ainda mais especial ou único, principalmente quando estamos a improvisar e a interagir com outros excelentes improvisadores. A improvisação dá vida à composição. Por sua vez, as composições podem lançar interessantes desafios à improvisação e estimular o desenvolvimento de novas competências improvisativas. Diria que ambos são igualmente importantes componentes do processo criativo e que se complementam por igual.

 

Desafiar o cânone

 

O ambiente familiar ou escolar em que cresceste foi fértil para o teu crescimento enquanto músico?

Nenhum dos meus familiares mais próximos era músico. O meu pai ouvia muita música, maioritariamente Beatles e alguma música erudita. O meu avô não dispensava um bom disco de Sinatra, nem um bom filme com Gene Kelly ou Fred Astaire. Desde muito cedo senti-me enfeitiçado pela música e pelos instrumentos musicais. Comecei por tocar órgão, mas rapidamente me fascinei pela guitarra.

 

O que ouvias então?

A minha adolescência ficou marcada por uma obsessão pelo rock, heavy metal, grunge, punk e hardcore, e pela minha passagem por algumas bandas de garagem. Tentávamos imitar os discos e as poucas cassetes de vídeo às quais tínhamos acesso. Com a minha banda mais séria gravei e atuei em Portugal e em Inglaterra. Foi uma época mágica, durante a qual fazer música significava entrar numa outra dimensão... no país das maravilhas. Sempre que atravesso uma fase menos profícua ou de menor motivação, procuro retomar esse estado de espírito de fascínio que me conduziu até aqui.

 

Em que circunstâncias se deu o início do teu percurso de aprendizagem formal? Há algum professor, ou episódio, que te tenha marcado particularmente?

No final da minha adolescência senti a necessidade de estudar música formalmente. Tinha de perceber porque é que certos acordes soavam bem com outros e por que razão certas melodias tinham um carácter tão especial. Em 1997, ingressei na Escola do Hot Clube, recentemente relocada no edifício da Standard Eléctrica em Alcântara. Foi também um período mágico, durante o qual descobri muitas coisas que me eram completamente estranhas. Passado uns tempos desisti da universidade e dediquei-me a 100% à música, decidindo estudar em paralelo na Escola de Música do Conservatório Nacional. No ano seguinte, decidi ingressar na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa. Foram tempos muito exigentes, durante os quais frequentei simultaneamente três cursos, o que me levou a desenvolver uma tendinite que levou quase 20 anos a superar (quase) na totalidade.

 

Foste para os Estados Unidos, estudar em Boston. O que procuraste que não encontravas cá, para além da existência de uma licenciatura em jazz, e o que de mais relevante guardas desses tempos?

No período que antecedeu a minha mudança para Boston estava a frequentar a escola do Hot Clube, a escola de música do Conservatório Nacional e a licenciatura em Psicologia, na Universidade de Lisboa. Como cheguei praticamente ao fim do meu percurso no Hot Clube e apesar de estar a gostar muito do curso de Psicologia, o próximo passo lógico foi continuar a estudar jazz. Contudo, na altura não havia ainda licenciaturas em jazz no país, pelo que optei por ir viver para Boston. Já conhecia o Berklee College of Music, e felizmente tive a possibilidade de realizar o sonho de lá estudar. Foram tempos muito marcantes, tanto do ponto de vista académico como também do ponto de vista artístico e pessoal. Em Boston conheci professores e colegas muito inspiradores e imiscui-me na música e na cultura do jazz norte-americano (que, por sinal, é em si mesmo muito diversa). Foi uma fase muito marcante, que me permitiu tocar e ouvir muita música, e, mais tarde, procurar também uma certa “portugalidade” nas minhas composições. Durante esse período contactei com professores e colegas como George Garzone, Mick Goodrick, Lionel Loueke, Kendrick Scott, Walter Smith III, Al Crook, Jerry Bergonzi, Bill Pierce, entre muitos outros.

 

Já falámos da tua licenciatura em Ciências da Psicologia. Cruzarás, de alguma forma, ainda que subliminar, os universos da música e da psicologia no teu trabalho enquanto músico e compositor? Na qualidade de docente e musicólogo admito aprioristicamente que sim...

Se esse cruzamento existe, não é certamente consciente. Gostei muito de estudar Psicologia, mas fi-lo com o intuito de alargar os meus conhecimentos académicos nessa área, não tendo chegado a exercer atividade. Dito isto, admito que de uma forma subliminar alguns resquícios desse universo possam eventualmente manifestar-se no campo artístico. Relativamente à minha formação em Musicologia, já é diferente. Em primeiro lugar, a investigação e a docência (não apenas na área do instrumento, mas também nas áreas da história do jazz e das metodologias da investigação, entre outras) fazem parte do meu dia-a-dia. As leituras e os projetos de investigação com os quais estou envolvido estão presentes de forma mais tangível na minha música. Não obstante, e conforme já referi, o meu processo de composição e de improvisação é muito pouco organizado. Penso principalmente em melodias...

 

Dado que te moves em todos estes planos, em que medida a “tradição” do jazz, o grande “acquis” acumulado durante mais de um século, é importante para ti hoje em dia?

É muito importante. Mas não enquanto cânone. É muito relevante, tal como a tradição da música erudita, da música portuguesa, da brasileira, da pop e do rock. Para mim, são referências artísticas e não normas. Gosto de perspetivar a tradição do jazz enquanto um conjunto de atitudes perante a música e não enquanto conjunto de ingredientes que a música tem obrigatoriamente de ter. Podemos dizer que sou músico de jazz, porque me identifico com o jazz enquanto forma de viver a música. Dou importância à criatividade, à interação entre os músicos no decurso da “performance”, aos significados intermusicais, à ligação entre música, cultura, sociedade e política, à espiritualidade e à sublimação do ser humano. Creio que o jazz é a plataforma perfeita para se experienciar a música e o processo criativo desta forma.

 

E ousas questioná-la, subvertê-la...

Certamente. É essencial fazê-lo. A tradição do jazz demonstra a importância de se questionar e subverter o cânone. Ao longo deste percurso de mais de um século, temos assistido a um interessante processo de subversão do cânone. O que hoje é apelidado de subversivo, será perspetivado amanhã como cânone. A subversão é essencial para o futuro e a vitalidade do jazz.

 

Admito que possa ser um exercício difícil, por se tratar de pares: quem são os teus três guitarristas favoritos e porquê?

É um exercício muito difícil, ainda por cima por eu ser muito exigente em relação a guitarristas. Há guitarristas destacados com os quais nunca consegui verdadeiramente estabelecer uma ligação estética. Por outro lado, inevitavelmente, há outros que perspetivo enquanto referência. Vou referir três (supostamente pertencentes ao universo do jazz – “whatever that means”) e mais um (do universo da música lusófona). Poderia mencionar muitos mais. Estes têm em comum o facto de elegerem a melodia como elemento primordial da improvisação. Jim Hall é um músico muito especial que articulou de forma harmoniosa e sempre inspirada os estilos de Charlie Christian e de Wes Montgomery, conjugando-os com o futuro da guitarra jazz. Com o passar dos anos, a sua música foi ganhando cada vez mais profundidade. Recomendo, por exemplo, “The Invisible Hand”, de Greg Osby. Bill Frisell, guitarrista que reinventou o papel e o som da guitarra no jazz, mesmo no contexto dos “standards”. Demonstrou que a guitarra pode (e deve) ser utilizada para questionar o cânone e criar novos ambientes e espaço musical. Na música de Frisell, a melodia encontra-se em primeiro lugar! Kurt Rosenwinkel, músico que desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento da guitarra jazz dos últimos 25 anos. É também alguém que privilegia a melodia e que possui uma sonoridade com corpo e muito destacada. Guinga, um dos mais geniais músicos que conheço. É um compositor inspiradíssimo, um guitarrista muito especial e um grande cantor. A sua música, em todas as suas dimensões é, talvez, a que mais me completa. Pura melodia! Puro génio! E em Português!

 

Foquemo-nos agora na dimensão do ensino e da aprendizagem do jazz. Como vês a proliferação de escolas de jazz – aos vários níveis de ensino – que se verificou em Portugal na última vintena de anos? Este facto traduziu-se, pelo menos, numa melhoria do nível médio da qualidade dos músicos, de jazz e não só. Que análise fazes deste panorama?

O ensino formal do jazz em Portugal tem-se desenvolvido exponencialmente nas últimas décadas. Apesar de ter começado “pelo telhado”, ou seja, por licenciaturas, está a desenvolver-se muito a nível do ensino secundário. Os programas de mestrado e doutoramento são também uma componente importante da formação em jazz em Portugal. É um facto que o número e o nível médio dos músicos de jazz no nosso país têm acompanhado este crescimento, o que se traduz no facto de ser muito provável não conhecermos todos os músicos de alto nível em Portugal, nomeadamente aqueles que pertencem a meios com os quais poderemos eventualmente não ter tanto contacto. Há também um conjunto de músicos não nacionais que vêm residir para Portugal e que enriquecem em muito o nosso panorama musical. Sou adepto da ideia de que o ensino ajuda a criar atalhos e a desenvolver as potencialidades artísticas dos alunos. Creio também que é fundamental complementar-se o trabalho académico com trabalho de “estrada” ou seja, é fundamental que os músicos contactem com as mais variadas facetas da indústria da música.

 

Enquanto professor e responsável pela coordenação de atividades académicas em várias instituições de ensino superior, o que consideras ser verdadeiramente essencial transmitir aos alunos?

Esta é uma “million dollar question”! O professor tem a enorme responsabilidade de dar ferramentas aos alunos para que estes possam encontrar a sua voz e uma direção num contexto especialmente competitivo e difícil. Creio que, acima de tudo, o professor deve fomentar o desenvolvimento de um pensamento artístico e crítico rigoroso, a capacidade de trabalho, de resolução de problemas e de adaptação a diferentes contextos criativos, e formar também eticamente os seus alunos. Acima de tudo, o ensino e a aprendizagem constituem uma oportunidade única para se debater, questionar e aprofundar temas que promovam o desenvolvimento de um conjunto de competências fundamentais para a atividade profissional, intelectual e filosófica de um músico.

 

Existirá o perigo de uma certa formatação académica que de alguma forma possa tolher o desenvolvimento da personalidade criativa dos alunos ou pensas que esta é uma falsa questão? Dependerá de existência de professores que alarguem, ou não, os horizontes?

Creio que esta ideia é um mito. Uma possível “formatação” pode acontecer em qualquer contexto – académico e não académico. Não obstante, o professor tem o dever de não castrar artisticamente o aluno, dando-lhe espaço e ferramentas para desenvolver o seu potencial e a sua linguagem.

 

A mimetização dos mestres será uma fase inescapável no processo de aprendizagem?

Creio que, até certo ponto, sim. Mas defendo que não há uma forma estandardizada de “mimetizar”, ou seja, que a “mimetização” pode assumir diversas formas. Os músicos devem, acima de tudo, desenvolver competências para ouvir, entender e analisar aquilo que estão a ouvir. Todos têm diferentes referências e estas podem influenciá-los de diversas formas. Finalmente, creio que o conceito de “mestre” levanta um conjunto de problemas. Trata-se de uma construção que os músicos e a indústria vão edificando ao longo dos anos e que resulta de um conjunto de ocorrências mais ou menos fortuitas e de estéticas particulares. A ideia de que um grupo fechado de músicos se constitui como referência universal resulta da simplificação de uma realidade altamente rica e complexa.

 

Queres mencionar alguns jovens músicos portugueses que tenhas descoberto e te tenham surpreendido nos últimos tempos?

Todos os dias me surpreendo com jovens músicos que vão aparecendo. Na Escola Superior de Música de Lisboa, onde leciono, sou regularmente confrontado com músicos muito especiais, que evidenciam um enorme potencial artístico e, por vezes, uma maturidade muito fora do vulgar. Os jovens músicos serão sempre uma inspiração para os mais experientes, uma vez que muitas vezes contribuem para trilhar novos caminhos criativos, desafiando os cânones instituídos. É sempre um desafio tocar com Tomás Marques e Diogo Alexandre.

 

Publicaste dois livros muito interessantes nos quais refletes em torno das “jam sessions” e do seu papel ao longo da história do jazz. Consideras que essa prática mantém a sua importância e vitalidade no nosso tempo, ou que, de alguma forma, esta se tem vindo a esbater?

Sim, tenho publicado artigos científicos e livros sobre o tema da “jam session”, entre outros assuntos, tais como alguns contextos políticos e sociais e a sua relação com a performance e a história do jazz. Tenho-me também debruçado sobe o difícil debate em torno da definição de jazz e as suas fronteiras. Em relação à importância das “jam sessions” em contextos contemporâneos, acho que esta prática pode assumir várias configurações. As “jam sessions” tradicionais continuam a existir em muitos circuitos e não se cingem apenas a repertório tradicional. Por outro lado, outro tipo de sessões com e sem público são também comuns no universo do jazz. Creio que a vitalidade do jazz é também resultado destas várias práticas performativas, sejam elas de carácter mais tradicional (em clubes de jazz) ou informal (em salas de ensaio e outros espaços alternativos).

 

Há alguém com quem gostasses especialmente de tocar, em Portugal e no estrangeiro, sem que ainda tenhas tido essa possibilidade?

Sim, claro. Há muitos músicos inspiradores no mundo com os quais gostaria de tocar e gravar. Tive a sorte de tocar e gravar com alguns que muito admiro, tais como Peter Erskine, Tim Hagans, David Liebman, Chris Cheek, Mônica Salmaso, Perico Sambeat ou Theo Bleckmann. Fiz recentemente uma sessão em duo com Carlos Bica. Adorei.

 

Um artigo a teu respeito foi publicado no número de novembro da prestigiada revista japonesa Jazz Guitar Magazine. Sinal do que o teu trabalho é conhecido e valorizado no extremo oriente...

É verdade. Fiquei muito contente com essa publicação, especialmente por ter tido destaque ao lado de guitarristas como Kurt Rosenwinkel e John McLaughlin. Sabe sempre bem vermos um artigo de três páginas sobre a nossa carreira publicado numa revista internacional da especialidade. Contudo, ainda há um longo caminho para percorrer.

 

Pode saber-se o que tens em agenda para os próximos meses?

Tenho várias gravações e concertos agendados, entre os quais se destacam uma gravação com o quarteto de Desidério Lázaro em janeiro e um importante concerto do projeto Ricardo Pinheiro/Miguel Amado LAB no Festival Até Jazz. Este evento conta, no seu cartaz, com nomes como Mike Stern e Dennis Chambers, Dave Weckl e Billy Cobham. Irei também atuar no Hot Clube com o projeto com John Gunther. Estou também a trabalhar na edição do meu próximo disco em quinteto e em outros projetos que irão ser oportunamente divulgados.

 

Se Wes Montgomery e Derek Bailey se encontrassem para um café no olimpo dos guitarristas, o que diriam um ao outro?

Vamos fazer um duo?

 

Para saber mais

https://www.ricardopinheiro.com

Agenda

02 Abril

Zé Eduardo Trio

Cantaloupe Café - Olhão

02 Abril

André Matos

Penha sco - Lisboa

06 Abril

Marcelo dos Reis "Flora"

Teatro Municipal de Vila Real / Café Concerto Maus Hábitos - Vila Real

07 Abril

Jam Session hosted by Clara Lacerda

Espaço Porta-Jazz - Porto

08 Abril

Greg Burk Trio

Espaço Porta-Jazz - Porto

08 Abril

Carlos “Zíngaro”, Ulrich Mitzlaff, João Pedro Viegas e Alvaro Rosso

ADAO - Barreiro

12 Abril

Pedro Melo Alves e Violeta Garcia

ZDB - Lisboa

13 Abril

Tabula Sonorum

SMUP - Parede

14 Abril

Apresentação do workshop de Canto Jazz

Teatro Narciso Ferreira - Riba de Ave

14 Abril

Olie Brice e Luís Vicente

Penha sco - Lisboa

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