Hugo Raro, 1 de Junho de 2021

Energia e nervo

texto António Branco fotografia Amaral Moreira, Minima, Paulo Pacheco, Vera Marmelo

Depois de, em 2020, nos ter brindado com o mui recomendável “Connecting the Dots”, Hugo Raro acaba de lançar “Sombras da Imperfeição” (também na Carimbo, braço editorial da Associação Porta-Jazz), o segundo álbum com o seu nome na capa, gravado ao vivo a 15 de novembro de 2020, na Blackbox da Plataforma das Artes e da Criatividade, durante a edição de 2020 do festival Guimarães Jazz. Nele, faz-se acompanhar por três músicos que dão corpo a uma inusitada configuração instrumental – Rui Teixeira (clarinete baixo), Miguel Amaral (guitarra portuguesa) e Alex Lázaro (bateria e percussão) – e um artista plástico, JAS, responsável pela cenografia e pelo desenho em tempo real.

Mas o trabalho do pianista e compositor portuense tem-se vindo a espraiar por um conjunto alargado e diverso de diferentes formações e projetos, vincando os seus predicados. São exemplos os Quiabo, que venceram o Festival Juventude Jazz na Covilhã, Low Budget Research Kitchen – projeto de homenagem a Frank Zappa –, Baba Mongol, Espécie de Trio, quinteto de José Pedro Coelho, Rui Teixeira Group, Kiko and the Jazz Refugees, Coreto Porta-Jazz, o projeto Impermanence de Susana Santos Silva, Torto, Rui Teixeira Orquestra Fina, Sinopse ou o quarteto de Filipe Teixeira.

Hugo Raro nasceu no Porto em 1973. Iniciou os seus estudos musicais na Academia Parnaso, tendo passado mais tarde pela Escola de Música Silva Monteiro e pelo Conservatório de Música do Porto. Prosseguiu estudos de piano e harmonia na Escola de Jazz do Porto, entre 1994 e 1996, em paralelo com estudos clássicos. Em 1997, ingressa na Universidade de Middlesex, em Londres, onde viria a concluir, três anos depois, o BA Honours in Jazz Performance, logo regressando a Portugal.

Trabalha na relação com outras expressões artísticas, como o teatro e a dança contemporânea. A docência ocupa também uma parte importante do seu trabalho. Entre 2000 e 2003, foi professor de piano, harmonia e improvisação, na Escola de Jazz do Porto e no Instituto Orff do Porto. Atualmente é professor de piano jazz, harmonia e combo na Academia Valentim de Carvalho. Participou no projeto Jazz Trocado por Miúdos, que levou às escolas um espetáculo comentado sobre a história do jazz dirigido aos mais novos. A jazz.pt foi ao seu encontro para uma longa conversa...

 

Acaba de publicar “Sombras da Imperfeição”, o seu segundo disco em nome próprio. Como o define?

É um disco que resulta de uma residência feita no Guimarães Jazz 2020. Os temas têm menos harmonia, focam mais o lado melódico e tímbrico. O facto de não existir uma secção rítmica tradicional e os instrumentos desempenharem vários “papéis” nas diferentes partes, força e, ao mesmo tempo, permite abordar a música de outras formas, talvez mais maleáveis. Em grande parte, a música é assim para permitir que o diálogo com o desenho em tempo real do JAS flua com maior naturalidade, com o mínimo de marcações ou imposições de parte a parte, mantendo, ao mesmo tempo, uma espécie de guião. Por ter sido gravado ao vivo, mantém algo de mais orgânico, de conseguir captar e partilhar aquele momento como um todo, como um gesto só. A música do Rui, do Alex e do Miguel é deliciosa de ouvir. Os desenhos do JAS e o seu universo criativo são incríveis e, na minha perspetiva, têm tudo a ver com a música. Acho que o concerto que deu origem a esta gravação foi um momento muito bonito e tranquilo, e que isso passou para quem lá esteve naquele domingo de manhã e para o disco.

 

Na nota de apresentação do disco escreve: «Tal como as sombras não existem sem a luz também a vida só se completa aceitando as imperfeições nela e em nós existentes.» Quer explicar o conceito por detrás desta música/concerto?

Começaram por ser apenas pensamentos soltos sobre a imperfeição e a sua inevitabilidade, a sua presença constante na nossa vida. E se às vezes essa imperfeição é visível e até cruelmente exposta, em outras fica escondida, quase impercetível, apenas se conseguindo ver na sombra do que projeta. As sombras são como que um universo paralelo poderosíssimo, mostram e escondem, transformam e modificam formas e espaços, tornam invisíveis certas coisas, ampliam tremendamente outras e até dão, erradamente, a clara impressão de algo que não está lá.

 

É um disco revelador de uma escrita elegante e sensível, de um melodismo minucioso, convocando elementos do jazz à erudita, passando pela improvisação mais livre. O seu universo musical não tem fronteiras?

Ouço e gosto genuinamente de música de estilos muito diferentes e sempre foi assim, sem catalogar ou atribuir graus de gabarito por ser mais ou menos complexa ou erudita ou profunda ou o que for. Gosto muito de conhecer música nova, gosto das primeiras vezes em que ouço algo que não conhecia e que me abana, no bom sentido. Não é algo que procure intencionalmente, mas quando acontece é uma das melhores sensações que posso ter. Felizmente, ainda há muito mais para descobrir do que o que conheço. Quando toco ou escrevo não penso nisso, mas é natural que essas influências apareçam.

 

Este disco surge um ano depois do excelente “Connecting the Dots”, em quarteto. São discos bastante diferentes…

Sim, acho que sim. Até pela sonoridade da instrumentação escolhida para cada disco. No entanto, para mim, faz tudo parte da mesma coisa. Talvez o “Connecting the Dots” seja um disco mais jazz. Foi incrível poder montar os temas com os enormes João Mortágua, José Carlos Barbosa e Marcos Cavaleiro, todos músicos de excelência que muito orgulho tenho em poder ter a meu lado. Os contributos e as ideias que todos deram para a construção estrutural dos temas foi muito valiosa e estou muito contente com o resultado final. Todo o processo de ensaios foi muito relaxado e foi tudo acontecendo muito naturalmente com o tempo necessário e total disponibilidade de todos para a música. Quando fomos para estúdio aconteceu da mesma maneira. Gravámos no Groove-Wood com Serafim Borges, que esteve também sempre na onda e tornou tudo simples e super confortável, além de misturar e masterizar o álbum com grande mestria. Na minha opinião, os temas ao longo do disco são bastante variados e com surpresas a acontecer a cada tema. Uns, mais formato canção ou “standard”, outros mais baseados na melodia, outros ainda com espaço para explorações mais livres.

 

Um dos aspetos centrais de “Sombras da Imperfeição” é a sua instrumentação, com guitarra portuguesa e clarinete baixo, que não me recordo de ter escutado juntos num contexto “jazzístico”... O que procurou alcançar com esta configuração, digamos, pouco habitual?

São instrumentos de que gosto muito individualmente e o timbre dos dois juntos é garboso. O propósito foi mesmo essa exploração tímbrica. Uma grande parte da música foi pensada nesse sentido. Juntando a bateria e a percussão do Alex, que foi unindo tudo com muito pormenor e criando ambientes muito bonitos, por vezes discretos, outras vezes enérgicos e bem à frente, sempre como participante atento e ativo na conversa. Há algum tempo que andava com vontade de experimentar uma formação nesta direção. A oportunidade surgiu e agarrei-a. E acho que correu bem.

 

A presença da guitarra portuguesa confere à música uma inevitável “portugalidade”, mas vai muito além... É deliberado?

É isso mesmo, é inevitável, essa portugalidade é inerente ao instrumento e apenas pela presença da guitarra portuguesa já estaria presente. Mas penso que a portugalidade também está sempre presente em nós como músicos, é algo a que, mesmo querendo, não conseguiríamos escapar. Apesar de todas as influências, por mais variadas que possam ser, que cada um de nós traz consigo, somos portugueses e tocamos como portugueses. Voltando à guitarra portuguesa, incluí-la num universo musical onde não é muito comum ouvi-la e comprovar que as potencialidades e possibilidades do instrumento, desde que nas mãos certas como as do Miguel, vão muito para além do contexto em que habitualmente se apresenta, é estimulante.

 

Em que circunstâncias se formou este quarteto (ou prefere tomá-lo como quinteto, dada a presença do artista plástico JAS)?

Quinteto, sem dúvida! Formou-se a partir do convite da Porta-Jazz para liderar o projeto do Guimarães Jazz 2020, fruto da parceria que a associação mantém com o festival. Esse projeto parte da premissa de ser multidisciplinar através da colaboração com um artista de uma outra área criativa. Em relação à banda, eram vontades antigas trabalhar com estes músicos. A intenção de trabalhar com o Miguel, que conheço há anos, estava na calha desde há muito e tudo se conjugou para que fosse possível agora. A escolha do clarinete baixo, instrumento dos favoritos, segue a mesma linha, e já vinha a marinar há tempos e o Rui, parceiro de muitas outras aventuras e que sempre admiro ouvir no clarinete baixo, era o músico certo para o fazer. Quanto ao Alex, que sempre adorei ouvir mas com quem não tinha tocado, a vontade era igualmente enorme de fazer com que isso acontecesse. Conheci o JAS através de Susana Santos Silva, e quanto mais descobria o seu trabalho mais desejo tinha de poder trabalhar com ele. Foi tudo muito fácil desde o primeiro momento. Tudo fluiu de forma muito natural e criativa.

 

O que recorda do concerto? Quando ouviu a gravação, esta surpreendeu-o de alguma forma?

Recordo-me da coragem e da capacidade de contornar os obstáculos de toda a direção e produção do Guimarães Jazz que, numa altura em que as restrições apertavam devido à pandemia e a realização do festival era, de certa maneira, uma incógnita, conseguiram superar todas as dificuldades e levar a bom porto a realização do festival com o sucesso que lhe é reconhecido por todos. Recordo também que, devido às restrições da altura, o concerto aconteceu num domingo às 10h30 da manhã e que a sala esteve quase esgotada, com a lotação possível, o que foi uma surpresa; que o concerto teve energia e nervo, apesar do horário, e que saímos todos bastante satisfeitos e com uma noção muito aproximada do que se tinha passado, o que fez com que não tivéssemos grandes surpresas ao ouvir a gravação.

 

O espetáculo teve cenografia e desenho em tempo real. Qual o propósito de explorar esta sinergia entre diferentes expressões artísticas?

É muito recompensador o processo de criação de diferentes expressões artísticas debruçadas sobre o mesmo objeto, e também de como se vão influenciando até chegar ao resultado final, neste caso do concerto desenhado que deu origem a este disco. Quando falei com o JAS e lhe fiz o convite para participar no projeto, a ideia de que lhe falei era desenho na areia, também em tempo real, que tinha visto em espetáculos que ele fez e adorei. Na primeira vez que nos encontrámos para falar sobre o concerto, deu imediatamente em “brainstorming” enérgico e ele teve logo muitas e boas ideias para o que podíamos fazer. Por exemplo, em vez de desenhos na areia, ele sugeriu que o fizéssemos de modo diferente, com os desenhos a acontecer em janelas que poderiam ser sobrepostas e com os mesmos jogos de luzes (e sombras) a acontecer, que foi o que se verificou no concerto. E a música que estava a surgir foi-se também enquadrando à medida que a construção do concerto ganhava forma. No concerto aconteceu a mesma coisa. A música e o desenho foram-se influenciando na conversa que ia acontecendo, sendo por vezes o JAS a reagir ao que a banda ia dando, outras vezes a banda a seguir a direção do desenho, tal como acontece sempre num concerto de jazz entre todos os intervenientes. O facto de termos o JAS em palco, além de ser fortíssimo visualmente e muito bonito cenograficamente, foi também para assumir o quinteto. Foi como se tivéssemos no palco um instrumento que ninguém conhecia ou tinha ouvido e fizéssemos um concerto juntos.

 

Como se posiciona esteticamente enquanto músico?

Não penso nisso. Vou fazendo música de acordo com o meu gosto. E é algo transitório, que se vai alterando ao longo do percurso. Comigo tem sido assim e espero que assim continue.

 

Quer falar-nos do seu processo de trabalho enquanto criador? É prolífero ou avaro no momento de colocar a música no papel?

Depende dos dias e da música em questão. Alguns temas são mais difíceis ou exigentes que outros. Precisam de mais tempo para amadurecer ou se mostrarem, mas em geral aponto as primeiras ideias sem grandes considerações e trabalho-as a partir daí. Mas também acontece existirem outras que precisam de estar quase concluídas na minha cabeça antes de as conseguir colocar no papel.

 

O que mais pesa na sua balança: o lado rigoroso de compositor ou a espontaneidade fundamental a um improvisador?

Conseguir encontrar o equilíbrio entre os dois é a minha busca constante. Dito isto, para mim, conseguirmos pôr-nos na música que tocamos, tentar acrescentar alguma coisa e torná-la, de certa forma, nossa é o que faz valer a pena. Ou seja, acho que a balança pesa mais para o lado da espontaneidade do improviso, mas depois de dar o passo de tentar perceber e respeitar a intenção e o carácter do que está no papel.

 

Sente o chamado da improvisação livre – que podemos entender como aquela sem quaisquer estruturas pré-estabelecidas – ou as referências estão sempre lá a determinar, em “backoffice”, o que toca a cada instante?

As referências estarão sempre presentes de alguma maneira, mas tento que não o estejam conscientemente, não mais do que o que não consigo controlar. Sim, sinto esse chamado e é algo que quero continuar a destapar. Gosto dessa descoberta musical, dos diálogos que acontecem quando fazemos música sem as bases que um tema ou uma grelha harmónica proporcionam. Pode ser totalmente livre sem qualquer elemento predefinido, mas também pode ter um ponto de partida ou de chegada conhecido, e a música acontecer a partir desse ponto ou até lá chegar. Ou, a improvisação pode acontecer tendo por base uma série de notas ou uma textura ou um jogo de dinâmicas ou ritmos sugeridos, o que faz com que haja um fio condutor ao longo do improviso, só que esse fio não é, provavelmente, tão evidente ou formatado em grelha. Gosto muito dessas experiências.

 

Que contextos prefere para expor o que tem para dizer musicalmente: a intimidade de uma pequena formação (como tem feito nos seus discos) ou formações mais alargadas?

Gosto de tocar em ambos os contextos, ambos me satisfazem de maneiras diferentes. A pequena formação potencia mais a individualidade de cada um. Estamos mais expostos, mas, por outro lado, temos também mais espaço para conversar e fazer a viagem juntos, mais atentos ao pormenor de cada momento. E como somos menos na conversa, se calhar, ouvimo-nos todos melhor. Numa formação mais alargada há habitualmente necessidade de ter tudo mais organizado para que todos se entendam e a música possa chegar a quem a ouve. E esse papel de tocar para o grupo mesmo que tenha menos liberdade para improvisar, é algo de que também gosto muito. 

Sempre o piano

 

Nasceu no Porto, cidade que alberga uma pujante cena de jazz e outras músicas improvisadas, que vem de há muito. De que forma se integra neste ecossistema criativo?

Felizmente, tenho o privilégio de me manter ativo e participar e fazer coisas com alguns dos muitos músicos dessa cena. Tenho também presente que, como menciona, este meio criativo não é recente, muitos músicos foram fazendo música e experiências mais ou menos arrojadas desde há muito. Esse caminho que percorreram é ganho nosso, facilitaram-nos a possibilidade de poder fazer a música que queremos e encontrar parceiros perto para a concretizarem connosco. Espero poder contribuir para que essa cena se mantenha viva e cada vez mais efervescente, agora e no futuro.

 

Quais são as suas referências basilares?

As minhas referências basilares assentam no facto de sempre ter gostado de vários estilos de música. Dentro disso, são muitas para estar a enumerar. Até porque, certamente, me esqueceria de mencionar uma série de nomes fundamentais.

 

Há alguém em particular, nos planos nacional e internacional, com quem gostasse de trabalhar e ainda não o tenha feito?

Sim! Bastantes! Espero que, pelo menos, algumas dessas parcerias possam acontecer.

 

Está atento ao que se passa, compra música? O que tem escutado nos últimos tempos?

Vou tentando manter-me a par. Os discos que mais tenho comprado nos últimos tempos são de músicos portugueses. A minha “playlist”, que não tenho escolhida nem definida, é sempre bastante variada em estilos e vai incluindo ou acrescentando músicos e bandas novas sem deixar de manter as referências mais antigas, a que volto amiúde.

 

E além da música, o que mais o influencia?

Leitura, cinema, o silêncio, os outros, o não fazer nada, as pessoas que me estão próximas, a vida...

 

Voltemos ao princípio de tudo. Como entra a música na sua vida?

Em casa dos meus pais sempre se ouviu muita música. Ainda tenho comigo três cartuchos que se ouviam na aparelhagem deles: Duke Ellington, Oscar Peterson e Bach. Comecei a tocar piano aos cinco anos. Depois de uns anos a estudar exclusivamente repertório clássico, apareceu o interesse de tocar outros estilos de música, de bandas que ouvia, e comecei a tentar tirar de ouvido temas de que gostava e a tocá-los. Quando encontrava uma parte mais difícil de ouvir ou tocar, substituía-a por algo que conseguisse ouvir e executar, ia improvisando, até chegar ao que estava no disco ou na cassete. Pouco depois vieram as bandas de garagem, mais ou menos a sério, sempre no rock e, sempre que possível, com solos e espaço para improvisar. Acho que raramente tocava os temas da mesma maneira, fossem originais ou versões. Continuei a estudar música clássica, mas foi a liberdade que encontrei nessas minhas procuras e, mais tarde, no jazz que me fizeram querer ser músico.

 

E a escolha do piano como alfaia de trabalho? Alguma vez cogitou dedicar-se a outro instrumento?

Foi sempre o piano.

 

Recorda-se da circunstância em que estabeleceu os primeiros contactos com o jazz?

Recordo-me de ouvir os tais cartuchos que existiam em casa dos meus pais. Lembro-me também de ter ouvido Duke Jordan, Chet Baker, Miles ou Weather Report, mas nem sei bem em que circunstâncias. Quando terminei o 12.º ano entrei em Engenharia Civil na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, mas estava um pouco desmotivado com aquilo, queria era continuar a estudar música mais a sério. Tinha conhecido Filipe Teixeira numa banda. Ele também queria continuar a estudar música e tomámos essa decisão mais ou menos ao mesmo tempo, o que foi muito fixe porque íamos conhecendo música juntos. Cada disco ou banda que um conhecia, passava logo ao outro. Um dos primeiros que me lembro de ter ouvido foi o “Money Jungle”, com Charles Mingus, Duke Ellington e Max Roach. Além disso, estudávamos os dois na Escola de Jazz do Porto, eu com Pedro Guedes, ele com Alberto Jorge, e tocávamos juntos os temas que estávamos a estudar nas aulas. Íamos a concertos sempre que podíamos, no Splash, B-flat, no Heritage, no Festival de Jazz do Porto...

 

Fez o seu percurso formativo com um pé no jazz e outro na música clássica. Esse equilíbrio é importante para o que faz hoje?

Sim, a aprendizagem na música clássica deu-me imensas ferramentas. Talvez uma das mais importantes fosse o ficar a conhecer o instrumento, para que ao descobrir o jazz pudesse focar-me mais no estudo do estilo. Mas também foram muito importantes as bandas de rock, pop, funk, fusões variadas e o começar a tocar em banda, e tirar temas de ouvido e conhecer outros mundos musicais e outras possibilidades de tocar piano.

 

Estudou três anos em Londres, na Universidade de Middlesex. O que guarda de mais marcante desse período?

Primeiro que tudo, o viver noutro país e a adaptação que foi necessária a nível pessoal, com tudo o que isso implicou, para que tal acontecesse da melhor maneira possível. Só por aí, já teria sido uma aprendizagem que vale a pena. E, ainda para mais, em Londres, uma cidade histórica mas cheia de vida, com um andamento altíssimo. Depois, o entrar num ambiente de escola, a estudar um curso estruturado, com muito mais alunos do que estava habituado a contactar no Porto, com experiências e gostos muito diferentes. O convívio com essas diferentes realidades e a partilha pessoal e musical que daí veio foram importantíssimos na minha formação como pessoa e músico. Tive também professores excelentes, tais como Stuart Hall, Eddie Parker ou Rob Townsend, entre outros, que me “abriram a cabeça” e me deram a conhecer e despertaram o interesse para música de todo o mundo, e de como todas essas influências poderiam ser absorvidas pelo jazz.

 

Tem gravado e tocado ao vivo, por exemplo, com o Coreto, os Baba Mongol, com o grupo Impermanence de Susana Santos Silva, formações com universos sonoros muito distintos, por vezes recorrendo a sintetizadores. Agrada-lhe essa dimensão camaleónica de ter de ser adaptar a diferentes contextos? 

Agrada-me muito. Gosto desses desafios. É muito estimulante poder explorar esses mundos e brincar com esses músicos nesses universos que imaginam, aos quais sozinho não chegaria, e de poder contribuir, modestamente, para que a música aconteça. E esses projetos que menciona são todos muito provocadores em criatividade e originalidade, o que ainda atiça mais a vontade de poder participar na música que fazem.

 

Em que outros projetos está atualmente envolvido?

Tenho participado em diversos projetos, como o álbum “Assombroso” dos Torto, na Orquestra Fina e o álbum “Valsa Torta”, no último álbum de Jorge Coelho, “Lay Claim to the World as a Sphere of Your Own Agency”, em alguns programas com a Orquestra Jazz de Matosinhos, nomeadamente com Peter Evans, entre outros, mas, nestes últimos tempos, tudo parou por causa da pandemia. Tenho-me dedicado mais à composição e ao estudo. Agora já se começa a sentir, de alguma forma, uma tímida volta à normalidade. Por outro lado, tento colaborar e espero poder continuar a fazê-lo, dentro daquilo que me é possível, na Porta-Jazz, que tão importante e fundamental é no nosso meio.

 

Uma fatia importante da atual visibilidade do Porto em matéria de jazz fica a dever-se à frutuosa atividade da Associação Porta-Jazz e ao seu braço editorial, a Carimbo. Como analisa o trabalho da associação e como caracteriza o papel que esta tem desempenhado na promoção do jazz?

Penso que a Porta-Jazz tem vindo a desempenhar um papel determinante no desenvolvimento e no crescimento da cena jazzística no Porto e talvez até mais além. Pelos discos que edita, pelos concertos que organiza, pelo Festival Porta-Jazz, que é hoje o grande festival de jazz da cidade, pela oportunidade que dá aos músicos de poder apresentar o seu trabalho, pelo reforçar de uma comunidade com base no Porto, mas que não se confina à cidade, convidando músicos de fora para residências, “workshops”, concertos, etc., pelas parcerias que tem vindo a estabelecer com outras associações e festivais, o que possibilita que projetos do universo Porta-Jazz possam apresentar o seu trabalho lá fora. Com a sua formação, a Associação Porta-Jazz veio comprovar que já existia a matéria-prima, ou seja, os músicos e a boa música que faziam. O que faltava era um meio mais amplo, abrangente e borbulhante para poderem desenvolver a sua música e sítios onde a pudessem tocar. Com o dinamismo que veio trazer à comunidade, conseguiu também espevitar outros músicos, incluindo as novas gerações que, cada vez mais, se apresentam com propostas originais.

 

Não obstante tudo o que tem sido feito para aproximar musicalmente Lisboa e Porto, o que falta ainda fazer?

Não estou a par do que tem sido feito, mas musicalmente acho que não falta nada. Nem sinto essa necessidade. Somos um país muito pequeno geograficamente e também não temos de ser todos iguais e pensar de forma igual. Cada vez mais temos esta música a acontecer por todo o lado e facilmente podemos assistir a um concerto em qualquer parte do país, a distância é curta.

 

Tem também desenvolvido atividade docente. O que tenta veicular de fundamental aos alunos com quem trabalha?

Além de tentar passar-lhes as ferramentas para que possam perceber e tocar a música, e enfatizar a importância do rigor e da rotina necessárias no estudo, tento incentivá-los a que encontrem e alimentem a sua própria voz.

 

De que forma o confinamento impactou a sua vida de músico?

Foi tremendo. Tal como a todos sem exceção, músicos e não músicos. Concertos desmarcados, tudo posto em “standby”...

 

Pode antecipar os seus próximos passos?

Acreditando que esta fase de desconfinamento veio para ficar, gostava de ter estes projetos a tocar o mais possível. Também tenho estado a trabalhar em algumas coisas novas para os Baba Mongol que espero se materializem em breve.

 

Para saber mais

https://portajazz.wordpress.com/musicos/hugo-raro-piano/

Agenda

25 Março

Duke Ellington’s Songbook

Sunset Jazz - Café 02 - Vila Nova de Santo André

25 Março

Mário Laginha com Orquestra Clássica da Madeira

Assembleia Legislativa da Madeira - Funchal

25 Março

The Rite of Trio

Porta-Jazz - Porto

25 Março

Sofia Borges (solo) “Trips and Findings”

O'culto da Ajuda - Lisboa

25 Março

George Esteves e Kirill Bubyakin

Cascais Jazz Club - Cascais

25 Março

Katerina L’Dokova

Auditório ESPAM - Vila Nova de Santo André

25 Março

Kurt Rosenwinkel Quartet

Auditório de Espinho - Espinho

26 Março

Giotto Roussies Blumenstrauß-Quartett

Cantaloupe Café - Olhão

26 Março

João Madeira, Carlos “Zíngaro” e Sofia Borges

BOTA - Lisboa

26 Março

Carlos Veiga, Maria Viana e Artur Freitas

Cascais Jazz Club - Cascais

Ver mais