Procurar a cura
Fazendo de Nova Iorque o seu centro de operações desde 2008, André Matos (Lisboa, 1981) acaba de lançar na Robalo Music o terceiro disco a solo, “Earth Rescue”, dando continuidade a uma série de registos que já contava com os excelentes “Múquina” (2016) e “Nome de Guerra” (2017). Mas, avisa-nos, há já um quarto volume gravado, completando a tetralogia.
Neste novo álbum, o guitarrista continua a explorar os confins do mais solitário dos contextos musicais, apenas acompanhado pela sua guitarra e por discretos efeitos eletrónicos. A música continua a exibir uma serenidade que contrasta com o bulício da vida quotidiana e não podia estar mais nos antípodas das pirotecnias (a maior parte das vezes estéreis) de tantos executantes do instrumento.
André Matos toca guitarra desde os nove anos de idade. Começou pelos blues tradicionais – cultivando uma paixão pela música de Muddy Waters, B.B. King e Albert King – e pelo rock. Os estudos formais só chegaram uns anos mais tarde, orientado por Mário Delgado, que o ajudou a focar-se no jazz e na improvisação. Terminado o ensino secundário passou pela Escola de Jazz do Hot Clube de Portugal – onde esteve cerca de um ano – e pela Academia de Amadores de Música.
No dealbar do novo milénio, recebeu uma bolsa que deu azo a mudar-se de armas e bagagens para Boston, a fim de estudar nos prestigiados Berklee College of Music e New England Conservatory, onde foi aluno de nomes sonantes como Hal Crook, Dave Santoro, Mick Goodrick, Ed Tomassi, Jerry Bergonzi, George Garzone, Danilo Perez e Brad Shepik.
Regressado a Lisboa, começou verdadeiramente a carreira, tocando com alguns dos mais relevantes músicos nacionais. Em 2005, lançou o seu disco de estreia, “Pequenos Mundos/Small Worlds”, com selo Fresh Sound New Talent. Seguiram-se “Rosa-Shock”, na saudosa Tone of a Pitch, em 2008, “Quare” (2010) e “Lagarto” (2012). Com a mulher, a cantora Sara Serpa, tem mantido uma parceria musical da qual já resultaram os discos “Primavera” (2014) e “All the Dreams” (2016). Juntou-se ao trompetista Gonçalo Marques e ao baterista João Pereira – o duo ¡Golpe! – para gravar “Tundra”, disco também já editado em 2020.
Perfeitamente integrado no panorama nova-iorquino, tem tido oportunidade de tocar em situações, formações e músicas distintas, com músicos de relevo como Tony Malaby, Greg Osby, Thomas Morgan, Jacob Sacks, Leo Genovese, Kris Davis, Eivind Opsvik, Billy Mintz, Masa Kamaguchi e Devin Gray, só para nomear alguns.
Vem regularmente a Portugal para matar saudades e tocar. Deste lado do Atlântico integrou diferentes formações ao longo dos anos, como o trio Lagarto (com Demian Cabaud e Colin Stranahan) e os Mikado Lab de Marco Franco, para além de projetos liderados por músicos como João Lencastre, Gonçalo Marques e Gonçalo Leonardo. Faz parte do André Carvalho Group, que gravou o recomendável “The Garden of Earthly Delights” (2019). André Matos conversou com a jazz.pt sobre “Earth Rescue” e muito mais.
“Earth Rescue” é o teu novo disco a solo. O que te atrai nesta relação de intimidade entre músico e instrumento?
Estar a solo com o instrumento é algo que todos os músicos experimentam na sua prática musical privada. Mas, salvo raros casos, dificilmente essa dimensão é transportada para fora. A minha decisão de gravar a solo surgiu de uma ideia que já andava a ser cozinhada há muito tempo. Realizar esse plano permitiu-me fazer um reiniciar da minha relação com a guitarra e com a composição. Creio que pude restabelecer prioridades, no que me atrai e no que não me interessa. O tempo dá-nos tanto a aprender. Estando só ao longo de meses e anos, mas também no preciso momento em que sou eu só no estúdio. Há um processo interior de desafio, mas de aceitação também.
De que forma relacionas “Earth Rescue” com os dois anteriores registos a solo, “Múquina” (2016) e “Nome de Guerra” (2017)? Musicalmente, completa-se aqui uma trilogia…
Quando parti para gravar o “Múquina”, a minha intenção foi sempre, e ainda é, fazer uma tetralogia, não sei bem porquê – aliás, já tenho uma gravação feita para o quarto. O “Múquina” teve um carácter de mistério, porque não sabia ao que ia. Tinha algumas ideias e composições, mas no fim só algumas entraram. Os dois seguintes foram, talvez, diferentes, pois já tinha a experiência do primeiro. Todos têm literalmente a mesma coordenada: foram gravados no estúdio da Valentim de Carvalho, em Oeiras. Tenho de fazer esse reconhecimento, porque é o espaço que associo a este processo. Sinto que o “Earth Rescue” é absolutamente a continuação natural da minha experiência.
O disco tem uma duração total de menos de meia hora, sendo que a peça mais longa pouco passa dos quatro minutos. A opção pela concisão tem alguma razão especial?
A duração não é um parâmetro que tenha para mim demasiado pensamento. Como ouvinte, neste momento, possivelmente teria dificuldades em ouvir um disco de guitarra solo durante uma hora, não sei. Assim como um disco de quinze minutos me faria querer mais. Mas enfim, a verdade é que foi assim que aconteceu, e foi assim que ficou. Este disco, como os outros dois, foi gravado num só dia. Essa limitação alimenta-me. A ideia do que fizer nessas horas será o que fica. Como nos outros dois discos, para esta sessão trouxe várias coisas diferentes, algumas não chegaram a ser tocadas, outras foram gravadas, mas acabaram fora. Outras ideias vêm no momento: improvisações que surgem aqui e ali. Nos meus planos, guardo sempre algum espaço para criar coisas de raiz, ou para alterar uma ideia ou tema. Uma perspetiva que tento preservar e que creio que se tem mantido nestas três gravações é a de flexibilidade: aceitar mudar de rota a meio do voo, não me agarrar a um só mapa. Aliás, algo que me aborrece bastante é repetir-me, por isso, muitas vezes, até mais tarde na reinterpretação das composições, vou naturalmente para caminhos que me soem novos.
A tua música continua a ter uma vertente lírica e contemplativa que lhe confere uma grande beleza. É neste perímetro estético que te sentes melhor enquanto criador?
Tendo alguma dificuldade em definir as coisas assim, aceito que se possa dizer que o que faço tenha uma vertente lírica e contemplativa. É a minha expressão, eu sou uma pessoa contemplativa; não sei se é o que todos os músicos procuram, mas eu procuro a cura. O nosso sofrimento tem de ser canalizado de alguma forma. O tónico que me cura as feridas é assim que sai: umas vezes lírico e calmo, outras vezes confuso e disperso. O conceito de perímetro é interessante. Na mesma linha, uma ideia que me atrai é a de liberdade dentro de uma limitação. Há uma questão que nos persegue, enquanto músicos de jazz. Falo do ritmo, o que os músicos referem “ter um bom tempo”. Neste processo de tocar a solo, abro espaço para que o tempo seja maleável. Sophia Rosoff, com quem (eu a Sara) tivemos algumas aulas já no final da vida dela, falava que mesmo sem tempo (rubato), o ritmo é fulcral e parte da raiz, literalmente da base da nossa coluna vertebral. Sem querer entrar em ideias demasiado técnicas, sinto-me significativamente confortável dentro desse “perímetro”.
Em certas peças, como “1984”, julgo perceber uma certa atmosfera portuguesa, se for possível definir tal coisa... É tua intenção incorporar essa dimensão ou ela surge naturalmente?
A atmosfera portuguesa é outro rótulo que aceito (o que posso eu fazer?). O “1984” é o ano em que a minha irmã nasceu. Do próprio dia tenho uma muito vaga memória. Por isso, o tema carrega uma certa nostalgia. Não penso em incorporar mais ou menos essa dimensão, mas é inevitável. Sou muito influenciado pela memória que carrego comigo quando estou em Nova Iorque. É sobretudo uma memória dos espaços. De Lisboa, de Sintra. Uma memória literária, contida em Pessoa, Camilo ou Agustina. Mas é também uma memória das pessoas, da minha família, de amigos.
Outra das peças de que gosto particularmente é “Carlos”, com o seu suave dedilhado, quase uma canção de embalar... Quem é o Carlos?
O Carlos é o meu pai. Há composições, como esta, que me saem de uma forma quase inteira, um gesto longo, completo, que me aparece claro e vívido. Curiosamente, não tinha pensado nela como canção de embalar.
Já a peça que dá título ao disco e “Universe of Possibility” parecem, de certa forma, devedoras de algum do trabalho de Pat Metheny, uma das tuas principais inspirações. Concordas?
“Universe of Possibility” foi um dos primeiros temas que fiz, há 20 anos. Foi baseado num livro do maestro Benjamin Zander com o mesmo título, que é um bocadinho “feel good/self help”, mas na altura teve impacto. Claro que ouvi muito Pat Metheny, sobretudo entre os meus 16 e 20 anos, mas nessa altura eu partia de um lugar completamente diferente. Contraditoriamente, e apesar de antigo, sinto que esse tema continua perto daquilo que sinto. Já o “Earth Rescue” é mais recente, é hiper-simples, de tal maneira que qualquer um dos meus alunos principiantes poderia tocá-lo. Nos últimos anos procuro música desprovida de demasiada informação e detalhes, sobretudo na composição. Sinto que esse tema, na sua delicadeza, é um gesto em bruto sem grandes adornos, e isso atrai-me. Enfim, a meio deste processo, não quero definir um caminho como exclusivo, e isolar-me numa fórmula. Quero estar aberto a todas as possibilidades.
Fala-nos um pouco da preparação e gravação deste disco…Há algum conceito subjacente ou as peças foram surgindo sem ligação umas com as outras?
A preparação começa mesmo por marcar a data. Depois as coisas vão surgindo, alguns temas e ideias já estavam no ar, outros vou criando à medida que a data se aproxima. A grande diferença em relação ao primeiro álbum (“Múquina”) é que, no segundo e no terceiro, já vinha à partida com uma visão mais concreta do que poderia ser o disco, ou ainda, mais claramente, do que não desejaria. Depois, tendo uma quantidade de material gravado, sinto que tudo vai ao lugar. com a distância do tempo, deixando a poeira assentar, inicio o processo de seleção. Às vezes preciso de títulos para faixas e recorro ao meu filho! O conceito está sempre presente, embora nem sempre verbalizado. A equilibrada soma das partes resulta num todo consistente e claro, é essa a minha esperança.
Na tua música equilibras com elegância composição e improvisação. Como é o teu processo criativo?
Composição e improvisação são um só rio que se pode navegar de diferentes formas. Seja como for, vamos sempre desaguar ao mesmo mar ou a outro rio! Para mim, um dos pontos que me puxam para tocar a solo é, como já disse, a possibilidade de decidir mudar de rumo a qualquer momento, pelo que essa relação entre a improvisação e composição se esbate. Claro que é muito possível isso acontecer num contexto de banda, mas é preciso confiar nos músicos com quem tocas, e quando assim é, acontece magia pura. O meu processo criativo acontece por fases distintas. Como te referi, ter uma data limite ajuda-me bastante na produção. Não necessito de condições especiais para compor. No entanto, sinto que os lugares novos e estimulantes, ou o estar cercado pela natureza, têm um impacto forte na nossa imaginação.
O título do disco parece aludir a preocupações ambientais com o planeta. Vivendo tu num país governado por alguém que não acredita nas alterações climáticas e que desmantelou muitas das políticas ambientais, este é um posicionamento pessoal quanto a estas matérias?
É inevitável que a nossa expressão, seja ela musical ou qualquer outra, traduza as impressões do que nos rodeia na esfera social e política. É o que sempre aconteceu com todos os artistas – olhemos para a história do jazz, por exemplo. É claro que me preocupo com as questões ambientais e é claro que me deprime o contexto político do país no qual sou residente. O que mais me assusta é que o homem (este mesmo, mas também a humanidade) não vai parar, na sua incessante ganância de poder. E não vejo mesmo solução para amenizar esta alienação a que estamos sujeitos, consumindo desenfreadamente até sufocarmos. Encontro-me muitas vezes titubeante entre o positivismo que quero transmitir ao meu filho, que o futuro será risonho, e o pessimismo que a informação que nos chega todos os dias, distorcida e ácida, me traz.
Falemos de coisas positivas, então. A capa do disco é uma bela fotografia da autoria do teu irmão, o fotojornalista José Sarmento Matos. Interessa-te a complementaridade entre sons e imagens?
Claro que sim. Todas as fotografias, desde o “Múquina”, são do Zé. Esta do “Earth Rescue”, em especial, já a tinha na mira há algum tempo. Tem uma grande força, imensos ângulos de onde se pode partir ou chegar. De certa forma, a fotografia do meu irmão tem informado e formado a minha música. Em todos os três discos, as imagens do Zé são perfeitamente complementadas com o “design” subtil e belo da Maria Bouza. A Maria é a responsável visual da editora Robalo, na qual se inserem os três álbuns a solo.
Tanto tocas de forma “natural” como utilizas algum processamento eletrónico do som da guitarra. Sei que tocas maioritariamente com um conjunto reduzido de guitarras. Os instrumentos têm “personalidade”?
Eu quero acreditar que sim. Este disco teve a novidade de ter sido gravado com uma guitarra que adquiri há pouco tempo, e que é um pouco única no som que produz e no que se sente quando se toca. É uma guitarra japonesa dos anos 1960 que foi reconstruída por um “luthier” daqui, um instrumento que nunca foi de alta qualidade e que estava praticamente na sucata. Foi resgatada do triste fim que poderia ter tido e tem agora uma nova vida! Na Valentim de Carvalho, Nelson Carvalho tem vários instrumentos interessantes e, para este disco, toco também baixo elétrico, que gravei por cima de dois ou três temas, e ainda guitarra acústica, que adicionei. Também estas decisões foram tomadas no momento. Em relação aos efeitos no som da guitarra, são possibilidades que tenho explorado ao longos dos anos. Mas não consigo nunca assentar numa fórmula e algumas vezes acabo por tocar direto ao amplificador. Mas são ferramentas que podem inspirar e que podem fazer parte do todo. Também gosto de utilizar a guitarra de uma forma que não soe a guitarra, embora não tenha feito muito isso nos discos a solo.
Não sendo de todo o teu caso, a guitarra é um instrumento muitas vezes associado a exibicionismos técnicos. Qual é o papel que atribuis à técnica?
É um clichê, mas é assim: a técnica permite-nos executar o que desejarmos. Praticar um instrumento serve para trabalharmos o som de cada nota que tocamos. Em cada nota pomos aquilo que queremos. Exibicionismos raramente me atraem se não forem escolhas naturais e construtivas para o que se queira transmitir.
Defendes aquela ideia de que a proficiência técnica é que permite fazer escolhas mais assertivas, incluindo a opção por prosseguir abordagens menos convencionais?
Não sei se apoio essa ideia. Diria mesmo que, hoje em dia, acredito na ideia oposta. Muitas vezes sinto que a proficiência técnica nos leva para caminhos mais convencionais. Sinto isso sobretudo na guitarra do jazz e da música improvisada. Trabalha-se muito o exterior e dá-se pouca importância à substância, ao nosso âmago, ao que nos define. Para fazer escolhas assertivas não é necessário ser muito proficiente e sobre isso poderia dar uma quantidade de exemplos de músicos de que gosto. No meu caso, sinto que tive de fazer muitas escolhas diferentes ao longo do tempo, mais ou menos assertivas, para apurar o que quero transmitir. Claro que há uma base, uma fundação, que podemos desenvolver mais ou menos e que nos suporta nas escolhas que fazemos. É um processo muito pessoal.
Pluralidade de cores
Continuas a estudar a coluna vertebral da guitarra no jazz? É importante para ti conhecer os caminhos que outros trilharam no passado?
Adoro a guitarra no jazz. Gosto dessa pesquisa. Uma grande parte da minha aprendizagem é a aprender canções e os detalhes que os grandes guitarristas trazem para essas canções. Há fases em que gosto de me dedicar a um músico só durante uma semana ou um mês.
Transportas essa dimensão “histórica” para a tua música ou ela está presente apenas no plano da preparação de base e da solidez de referências?
Quero acreditar que transporto essa dimensão do passado, mas também do presente, dos músicos com quem interajo e que me ensinam mesmo sem saberem. Eu vivo nesse ambiente, que não é exclusivamente sonoro, é também de vivências, e é nesse ambiente que me expresso.
És atraído pela improvisação livre, sem base pré-definida?
Sou atraído e tenho mesmo um caso amoroso com a improvisação livre. Mas cada vez menos estabeleço esses limites, ou uso essas palavras. Não é uma decisão imposta, é simplesmente assim que me sinto. O meu desejo é sempre tocar com os músicos que vivem os momentos dessa forma. Desde que me mudei para Nova Iorque que tive a sorte de poder ouvir e tocar com frequência com pessoas cujas vivência e música ultrapassam em larga escala esses moldes tão definidos. Essa pluralidade de cores é o que mais me atrai.
Vives em Nova Iorque desde 2008. A tua música seria diferente se vivesses em Portugal ou noutra parte do mundo?
Não sei se seria ou não diferente. É inegável que o percurso de cada um define as escolhas e oportunidades que vamos tendo. Sinto que nesta cidade se impõe um pragmatismo e uma capacidade de produzir que é muitas vezes estimulante, mas também, de tempos a tempos, esgotante. Tenho a sorte de poder dosear esta energia mantendo meio pé em Portugal.
Quais são as tuas principais referências em matéria de guitarra solo?
Não tenho uma referência particular de guitarra solo. Claro que, estando recentemente mais sensível ao tópico, tenho ouvido muitas coisas diferentes: Marc Ribot, Bill Frisell, Ryan Dugre, Derek Bailey, Eduardo Falu. Enfim, esta é uma lista completamente aleatória de guitarristas com discos a solo de que me lembrei neste momento. Há vários artistas que me influenciam num aspeto textural, como por exemplo Brian Eno ou Jon Hassell. Mas falando de guitarristas, e já que não falei de muitos nomes até agora, aproveito para fazer uma homenagem à espécie rara que é o guitarrista português. Os guitarristas em Portugal põem muita qualidade e intenção no que fazem. Sem querer colocar todos no mesmo saco, pois cada um tem um percurso distinto, estes e outros que me possam falhar foram e são inspirações: Mário Delgado, António Pinto, António Sousa, Pedro Madaleno, Sérgio Pelágio, Ricardo Pinheiro, André Fernandes, Nuno Ferreira, Afonso Pais, Francisco Pais, Nuno Costa, Bruno Santos, André Santos, Luís Lopes, Pedro Branco, João Carreiro, André Silva, Eurico Costa, AP, Filipe Duarte, Norberto Lobo, João Firmino, João Freitas, João Pedro Espadinha, Bruno Pernadas.
Já falámos de fotografia. És influenciado por outras artes? Que atividades fora da música te interessam mais?
Interessam-me sobretudo a literatura e o cinema no dia-a-dia. Já várias pessoas me referiram o caráter cinematográfico dos meus álbuns a solo. Há um lado visual que me alimenta. O movimento, o sentimento de um diálogo prestes a acontecer. Não é uma obsessão como o é, por exemplo, para o pianista “noir” Ran Blake, que consome cinema e se foca em cenas específicas de uma forma muito intensa. Não estou tão próximo dele como está a Sara, mas é inspirador testemunhar essa dedicação dele ao cinema. Na literatura, como já referi, sinto a verticalidade trágica e silenciosa de Pessoa a apunhalar-me. Sinto-me encurralado no triângulo de Cortázar, Vargas Llosa e Bolaño. Sinto-me capturado pela angústia de Zweig. Animado com a esperança de Stendhal. Contemplativo nos ambientes de Agustina. E o círculo fecha-se nas viagens de W.G. Sebald.
Em que outros projetos estás envolvido por estes dias, dos lados de lá e de cá do oceano Atlântico?
Tenho tocado muito com o meu companheiro contrabaixista André Carvalho, também aqui residente. Gosto muito de tocar a música dele e tenho a felicidade de ter participado regularmente no seu percurso mais recente. Ele é uma inspiração: desde que se mudou para Nova Iorque e que nos tornámos mais próximos, reinventou-se enquanto músico. Está sempre à procura e é um trabalhador incansável. Recentemente fiz uma gravação em trio com o baterista Billy Mintz e com o contrabaixista Masa Kamaguchi. Tenho desde há largos anos tocado com ambos e são muito importantes na maneira como olho para a música. O Masa tem ido todos os verões tocar comigo a Lisboa, ao Hot Clube. São concertos que têm para mim um caráter ritualístico. Fiz em tempos uma quantidade de concertos em trio com Billy Mintz e o saxofonista Tony Malaby, mas esse projeto está de momento a hibernar. Quero também sublinhar a minha relação, que considero especial, com Gonçalo Marques e João Pereira, com quem gravei o álbum “Tundra” para a editora Robalo. Juntei-me ao duo que eles formam chamado ¡Golpe! Tenho também feito alguns concertos do projeto com Sara Serpa, com quem tenho uma especialíssima relação…
… que resultou nos discos “Primavera” (2014) e “All the Dreams” (2016). Como está essa colaboração musical? Podemos esperar música nova?
Temos uma banda nova com a qual já fizemos alguns concertos aqui em Nova Iorque e estamos bastante contentes com o resultado. Teremos de trabalhar para conseguir produzir outro álbum, mas sem dúvida que está no horizonte. Ambos temos várias coisas a acontecer, a Sara com vários projetos a ponto de se realizarem, eu também a tentar espremer bem o sumo deste fruto que é o disco a solo. Para além disto, quer eu, quer a Sara damos um número significativo de aulas, o que nos ocupa o tempo. De tal maneira que, por agora, o novo Serpa/Matos vai esperando.
Improvisar e dançar
Recuemos uns anos, ao princípio de tudo. Havia música na tua infância?
Sim, tenho a impressão de que havia bastante música a tocar em casa. Lembro-me de quando descobri como pôr a tocar um vinil na aparelhagem, antes de termos CD. Não me lembro de ir a muitos concertos até aos 12-13 anos. Tenho uma muito vaga memória de ter ido ver Tom Jobim no ringue de hóquei do Parque da Liberdade, em Sintra. Depois, mais tarde, memórias mais nítidas: Paul Simon em Alvalade, Pat Metheny, B.B. King, alguns concertos de rock no Dramático em Cascais. Em 1996, com 15 anos, fui com o meu professor Daniel Rebelo, e outros alunos dele, ouvir o lançamento do “Azul” de Carlos Bica, no Pequeno Auditório do CCB. Foi um concerto que me marcou bastante. A partir dos 16 anos frequentava festivais de jazz, Seixal, Estoril Jazz, Gulbenkian. Tive a sorte de os meus pais sempre me apoiarem, providenciarem oportunidades para aprender e, muitas vezes, levarem-me a estes concertos.
Qual foi a razão da escolha da guitarra como instrumento para a vida?
Havia em minha casa uma guitarra bastante maltratada e com poucas cordas, que eu usava para “improvisar” e dançar. Depois, aos 9-10 anos, quis ter aulas de bateria, mas creio que não havia essa disponibilidade na escola em que andava, por isso fui para a guitarra. Tive dois professores em cerca de três anos que foram muito importantes: Pedro D´Orey e António Sousa.
Guardas memória da primeira vez que ouviste jazz? Estranhou-se ou entranhou-se?
Estranhou-se e entranhou-se em doses iguais. O primeiro CD (o objeto) em que pus os olhos em cima foi o “Magico”, de Charlie Haden, Jan Garbarek e Egberto Gismonti. Ainda não tínhamos leitor de CD. Quando finalmente ouvi não percebi nada. Que raio de coisa mística era aquela? A seguir, tenho ideia de ouvir uma compilação de Dave Brubeck (a quem pedi um autógrafo uns anos mais tarde no CCB) com Paul Desmond e sentir-me um bocadinho mais confortável. Havia um número considerável de LP e CD de jazz para ouvir em minha casa. Mas creio que os fascículos que se publicavam (meados dos anos 1990), em que vinha um CD com um texto, foram bastante importantes para me dar uma ideia de quem existia na história. Parece impossível agora pensar de outra forma, mas apenas há 25 anos não havia internet, Youtube ou Spotify para conferir o que viesse à mente.
No teu processo de crescimento enquanto músico, identificas momentos especialmente decisivos?
Vou ser talvez um pouco vago nesta questão: as aulas particulares com Mário Delgado, as “jam sessions” no Hot Clube, a ida para Boston, a vinda para Nova Iorque; a gravação de todos os discos que fiz até agora, destacando os dois que gravei com a Sara, que foram especialmente férteis em experiências determinantes para um novo paradigma na minha música. Alguns concertos que foram especialmente construtivos, como por exemplo o concerto no São Luiz (Festa do Jazz) com George Garzone, Demian Cabaud e Alexandre Frazão, no qual a presença do Garzone foi, para mim, especialmente impactante para um futuro mais longínquo do que na altura pensei. Outros momentos que têm para mim uma memória menos positiva, como por exemplo algumas interações com músicos que a meu ver não resultaram tão bem, podem ter tido uma influência bem mais decisiva no meu crescimento enquanto músico, no que toca ao apurar de escolhas e prioridades.
Passando grande parte do ano fora de Portugal, como olhas para a música, e em especial para o jazz, que por cá se faz? Esse distanciamento permite-te avaliar a situação de forma diferente?
Não sei fazer grandes avaliações, porque, de facto, o distanciamento faz com que não conheça tudo e toda a gente. Há muitos mais músicos e talvez mais oportunidades para tocar do que havia há 10-15 anos. Há muitos projetos interessantes. As pessoas têm muito mais confiança, quero sublinhar isto. Gostaria de mencionar neste contexto o saudoso Jorge Reis, uma pessoa que faz muita falta na cena, que deixou chaves para abrir portas que só agora se vão abrindo. Um músico de uma singularidade intemporal. Ainda há pouco tempo comentei com Gonçalo Marques como ele se sentiria como peixe na água na cena de hoje. Com a convicção de que lhe daria um grande gozo muitas das coisas que estão a acontecer. Sei também que há esperança de que se possa estar a iniciar uma mudança nos programadores que se mantêm há largos anos nos mesmos festivais, e que com isso chegaremos a um novo paradigma, em que se dê oportunidade, que se arrisque e que se acredite nos músicos portugueses.
Os últimos anos têm sido particularmente férteis em cruzamentos e colaborações entre músicos de famílias estéticas distintas, com resultados muito positivos. É algo que te agrada?
Sim, agrada-me, embora tente, nos dias de hoje, não adotar essa visão de diferentes famílias estéticas, pelo menos dentro do ambiente do jazz e da música improvisada. É tudo a mesma coisa. Talvez essa seja a grande diferença entre alguns dos músicos que conheço em Nova Iorque e no resto do mundo: é muito comum o facto de os primeiros não se cingirem a um caminho ou a uma cena de forma tão vincada. Dito tudo isto, tenho de lamentar e assumir não conhecer tão bem esses cruzamentos e colaborações.
Há alguém em Portugal com quem gostasses de tocar sem que ainda tenhas tido essa possibilidade?
Há alguns músicos com quem nunca toquei formalmente e que gosto muito de ouvir, como por exemplo João Mortágua, José Pedro Coelho, Carlos Bica, Carlos Barretto.
Queres partilhar o que tens andando a ouvir recentemente?
Blind Willie Johnson, Sonny Stitt, Beethoven, Duke Ellington, Carlos Paredes.
Quando estás em Nova Iorque, ou noutra parte do mundo, de que sentes mais saudades quando pensas em Portugal?
Da família, dos amigos, do mar, da facilidade de comunicar na nossa língua, do peixe e do marisco, do Hot Clube e de Demian Cabaud.
Tens ideia do que estarás a fazer daqui por uma década?
Não, mas não tendo a certeza de como e onde, pressinto que estarei a fazer mais ou menos o mesmo. Tenho alguns objetivos a médio prazo que têm a ver com projetos musicais que até agora não desenvolvi.