Miguel Ângelo, 11 de Fevereiro de 2020

Sem muros nem ameias

texto António Branco fotografia Luís Belo e Miguel Estima

Num tempo marcado, em parte significativa do mundo, pela polarização política e pela fragmentação do espetro partidário, com o declínio dos partidos ditos “tradicionais” e a forte ascensão de forças populistas, há quem ainda se inspire na “utopia” para criar música. À frente do seu novo projeto, MAU – Miguel Ângelo Utopia, o contrabaixista e compositor Miguel Ângelo regressa com um disco político e conceptual, ao lado do guitarrista Miguel Moreira e do baterista Mário Costa – músicos com quem já se cruzara noutros projetos –, tendo como inspiração a obra imorredoura de Thomas More, publicada originalmente em 1516, que urge reler e aprofundar.

Depois da estreia com “Branco” (2013) e de “A Vida de X” (2016) – ambos liderando o seu quarteto e com chancela da Carimbo Porta-Jazz – e também do superlativo registo a solo “I Think I’m Going to Eat Dessert” (Creative Sources, 2017), Miguel Ângelo apresenta agora um disco em que são criativamente processadas influências múltiplas, político-filosóficas e musicais, que emanam do jazz, claro, mas também do rock.

Miguel Ângelo nasceu em 1971 em Fiães, no concelho de Santa Maria da Feira, numa família em que sempre existiu admiração pelo universo dos sons. A sua atividade musical teve início na Tuna local, frequentando aulas de formação musical, guitarra e, mais tarde, contrabaixo. Integrou um projeto na área do rock, os Curtes Baldei-me (com influências de tudo o que os seus membros ouviam na altura, de Pink Floyd a David Bowie, passando por Pixies e The Cure), no qual tocou baixo elétrico, um grupo que chegou a participar em concursos de novas bandas.

A partir de certo momento, o jazz foi tomando progressivamente conta dos seus interesses e, numa perspetiva mais séria, prosseguiu os seus estudos musicais na Escola de Jazz do Porto com o professor Alberto Jorge, retomando a prática do contrabaixo. Aprofundou estudos com Pedro Barreiros e António Augusto Aguiar e, em 2008, viria a licenciar-se em Contrabaixo/Jazz na Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo (ESMAE), não sem antes ter concluído uma licenciatura em Informática/Matemática Aplicada.

Para além dos seus projetos pessoais, integra ainda, entre outras formações, o Ensemble Super Moderne, o quarteto MAP (com Paulo Gomes no piano, Miguel Moreira na guitarra e Acácio Salero na bateria), o trio do pianista Pedro Neves, o quarteto do guitarrista Bruno Macedo e o grupo Jogo de Damas. Ao longo do seu percurso tem tocado com regularidade ao lado de nomes relevantes nos panoramas nacional e internacional, como Ohad Talmor, Dan Weiss, Frank Vaganée, Mário Santos, Paulo Gomes, Carlos Azevedo, José Pedro Coelho, João Guimarães, André Fernandes, Jeffery Davis, Óscar Graça e Marcos Cavaleiro, entre muitos outros.

Ao vivo, tem-se apresentando em Portugal e no estrangeiro, em salas e festivais como Angrajazz, Festival Porta-Jazz, Hot Clube de Portugal, Douro Jazz, Jazz na Praça da Erva, Festival de Jazz de Viseu, Festival de Jazz de Pontevedra, Festa do Jazz do São Luiz, Festa do Avante!, Centro Cultural de Belém e nos festivais de Vilar de Mouros e Paredes de Coura, só para nomear alguns. 

A jazz.pt quis saber mais sobre o seu novo disco, mas também conhecer melhor o seu percurso anterior e antecipar os planos que tem para o futuro.

 

O seu mais recente disco tem como pilar central o conceito de “utopia”. Trata-se de um disco político?

Sim. Na verdade, todos os discos acabam por ser de alguma forma políticos, no sentido em que, no meu caso, tento sempre que exista uma mensagem/conceito na música que escrevo. Neste caso, essa intenção é mais assumida e exposta de forma mais direta.

 

Ao descrever o modo de organização social na imaginária ilha de Utopia, o livro “Utopia”, de Thomas More, representa uma vivência oposta à que se vivia na Europa ocidental do século XVI. A obra contribuiu de modo decisivo para a renovação do pensamento de então e para a história do Humanismo, o que não bastou para livrar o autor da decapitação... Como surgiu a ideia de se basear no escrito de More para arquitetar esta música?

É uma boa pergunta. A ideia era, sobretudo, de utilizar o conceito filosófico exposto no livro de Thomas More, ou seja, a ousadia de pensar e tentar criar a coisa perfeita, a “utopia”, por um lado. Por outro, alertar para o conformismo e o estado dormente da sociedade atual, na qual, como diz Agostinho da Silva, o “económico” se sobrepõe a tudo o resto. Vivemos tempos bastante perigosos, na minha opinião. Este estado letárgico do mundo face a políticos corruptos, de ideias perigosas, de agendas camufladas e tudo isto escondido num estado aparente de liberdade e diversidade, abafado, manipulado e adormecido pelos novos meiso de “propaganda”, as chamadas “redes sociais”, deixa-me preocupado e, como sou um cidadão responsável, julgo ser minha (nossa) obrigação alertar para isso.

 

Na peça “Éden” escuta-se mesmo a voz do filósofo Agostinho da Silva dizendo que «liberdade e destino são apenas duas fantasias nossas, talvez, não há nada de real. Duas fantasias nossas sobre as quais podemos construir belos sistemas filosóficos, embora estejamos sempre à espera de alguma coisa muito mais decisiva do que a filosofia, que é exatamente a ciência.» Que elo estabelece entre o pensamento dos dois homens?

Filosofia (literalmente «amor pela sabedoria») é o estudo das questões gerais e fundamentais sobre a existência, o conhecimento, os valores, a razão, a mente e a linguagem, frequentemente colocadas como problemas por resolver. Ciência (entendida como “conhecimento”) refere-se a qualquer conhecimento ou prática sistemáticos. Em sentido estrito, ciência refere-se ao sistema de adquirir conhecimento baseado no método científico, bem como ao corpo organizado de conhecimento conseguido através de tais pesquisas. Portanto, logo pelas definições de ambos os termos, a relação acaba por se estabelecer. Sou da opinião que, muitas vezes, a sociedade define conceitos e preconceitos baseados em meras deduções ou assunções, muitas vezes perigosas. Era mais útil e seria um caminho para a “utopia” se esses conceitos fossem sustentados pela real procura da verdade, do esclarecimento responsável e sempre que possível baseados em conhecimento científico.

 

Numa altura em que a extrema-direita conservadora, xenófoba e racista recrudesce um pouco por toda a Europa (até entre nós...), nos Estados Unidos e na América Latina, qual é o espaço, nos tempos que correm, para as utopias?

Numa altura em que as posições extremas, sejam elas de direita ou de esquerda, florescem, continua a existir espaço para a utopia. Na verdade, é uma boa altura para criarmos utopias, temos é de ser todos mais pró-ativos e não ceder à falsa sensação de bem-estar. Portanto, espaço e oportunidade não faltam, só faltam ações.

 

Musicalmente, este é, diria, um disco conceptual, à maneira do rock da década de 1970 que tanto o influenciou. É assim?

Sim, concordo. Todos os meus discos têm um conceito associado e este é, eventualmente, o meu disco em que esse conceito é mais exposto e declarado. Quanto ao rock, sempre esteve presente na minha escrita e na minha linguagem. O facto de ter uma guitarra e, sobretudo, a guitarra do Miguel Moreira, torna isso mais óbvio e assumido.

 

O disco inclui também uma trilogia dedicada a castas de uva. Quer explicar-nos o seu papel no contexto das restantes peças?

A criação é, em si mesma, uma utopia e, neste caso, o vinho é uma criação perfeita. O vinho pode simbolizar várias coisas, como diferentes castas / raças podem em sintonia criar coisas fantásticas, ou podem só por si ser igualmente fantásticas e tão diferentes; como castas diferentes e com origens tão diferentes podem funcionar bem em contextos diferentes dos habituais, etc. As castas e o vinho são um bom exemplo de aceitação, partilha e comunhão pacífica. Para além de que o vinho é um símbolo, pelo menos para mim, de celebração, partilha, convívio, comunhão, alegria e tristeza, inverno e verão, só ou acompanhado!

 

A sua música tem um cunho próprio, equilibrando elementos derivados do jazz e também do rock com outros mais texturais e exploratórios. Como gere, na sua abordagem à música, as influências dos diferentes domínios? É algo natural para si?

Não sei se poderei responder a esta questão, mas fico muito contente pelo facto de a minha música ter tais atributos… Não faço uma gestão refletida sobre isso, acho que é natural porque não consigo escrever música de forma meramente escolástica e/ou académica. Para escrever alguma coisa tenho de me identificar com o material, que pode ser uma melodia, uma sequência de acordes ou apenas um “groove” e, portanto, é um processo que não controlo.

 

Creio também descortinar, pelo menos a espaços, uma certa toada portuguesa. Não sei se isto derivará do facto de Rafael Hitlodeu, que no livro descreve a More a ilha de Utopia, ser português... É intencional ou foi ilusão de audição deste ouvinte?

Não, não foi uma ilusão, é sinal de uma audição atenta! Acho que também não consigo esconder essa portugalidade na minha música. São elementos que me definem como pessoa e, consequentemente, como músico. Curioso, ou não, pode ser simplesmente um elemento para reflexão, o fato de Rafael Hitlodeu ser português!

 

Quer falar-nos um pouco do ambiente em que decorreram a composição e a gravação deste disco?

Foi um processo muito diferente do que costumo fazer. Só tinha escrito quatro temas e tinha algumas ideias. Inicialmente, o objetivo era gravarmos apenas dois ou três temas para vídeo. Pelo meio fomos gravando improvisações ou música partindo de conceitos ou ideias muito simples… Portanto, muitas das coisas do disco são improvisações, incluindo o tema “Utopia”, que na verdade é uma improvisação que transcrevi depois.

 

Escolheu o formato de trio, com guitarras, contrabaixo e bateria, para operacionalizar a sua visão. Qual a razão para esta opção em termos de configuração instrumental?

Mais do que a instrumentação foram os músicos. Miguel Moreira e Mário Costa são músicos muito completos, originais e altamente criativos. Já trabalhei com eles em projetos distintos e percebi que seria incrível juntar os dois, portanto, foi uma opção simples. Acresce ainda que o conceito e a música que escrevi se adequava aos dois. Posteriormente, escrevi mais música a pensar neles. Conheci ambos na ESMAE e acabamos por estreitar laços em projetos que partilhamos, como por exemplo os MAP com Miguel Moreira e o Ensemble Super Moderne com Mário Costa.

 

Está satisfeito com o resultado final do disco ou faria alguma coisa de modo diferente? Vários autores afirmam que assim que lançam uma obra esta passa a ser dos seus leitores ou ouvintes e que não regressam a ela... Passa-se o mesmo consigo?

Muito satisfeito com o resultado. No entanto, sou um eterno insatisfeito e perfecionista e como tal teria feito umas pequenas alterações, pormenores! E também concordo que a obra passa a ser de quem a ouve. 

Saber o abecedário

 

Voltemos agora uns aninhos atrás... Começou por estudar formação musical, guitarra e mais tarde contrabaixo na Tuna Musical de Fiães. O que mais recorda desses tempos iniciáticos? Em que medida foram importantes para o que se seguiu?

Recordo que era tudo muito complicado, as condições eram péssimas, os professores eram rígidos e a música era estudada apenas como um “hobby”. Só poderiam aspirar a mais do que isso aqueles que mostrassem, segundo a apreciação dos professores, competências inatas muito acima da média, o que era realmente muito mau. De qualquer forma, guardo boas recordações dessa altura e ficou a semente que nunca mais morreu.

 

Começou o seu percurso a tocar em bandas de rock, como Curtes Baldei-me, cujo nome soa como uma corruptela fonética com Kurt Waldheim (antigo presidente austríaco e secretário geral da ONU, com ligação ao regime nazi), na qual tocou baixo elétrico. Fale-nos um pouco deste período...

É verdade, a ideia foi mesmo essa. Foram tempos muito engraçados, muito produtivos e que me formaram como pessoa e músico. Tocava baixo elétrico, que aprendi e estudava como autodidata. Foi uma época muito criativa, passávamos o tempo na sala de ensaios a compor e a ensaiar. Tocávamos imenso, com condições melhores do que as que se praticam agora… foram tempos muito divertidos.

 

Depois desse início em terrenos rock, consegue precisar como e quando despertou o interesse pelo jazz? O que escutava neste período de transição?

Foram várias coisas que me empurraram para o jazz, mas o grande responsável acabou por ser Charles Mingus! Quando estudava Informática e Matemática Aplicada tinha um grupo de amigos bastante curioso em termos de gostos musicais e, claro, partilhávamos esses interesses e escutas, ouvíamos desde Naked City a David Sylvian, passando por Édith Piaf ou Penguin Cafe Orchestra. Eu e Nelson Carvalho éramos colegas de curso e já nessa altura partilhávamos o interesse pela gravação e pela música instrumental / experimental e com o gravador Fostex de quatro pistas criámos e compusemos muita música que partilhávamos com os amigos, que eram simultaneamente os nossos ouvintes e críticos. Por essa altura já frequentava a Escola de Jazz do Porto com o mestre Alberto Jorge, que acabou por ser a “machadada final” quando me colocou um contrabaixo na mão e me apresentou Charles Mingus… Nunca mais parei…

 

Na Escola de Jazz do Porto estudou também com Pedro Barreiros e Paulo Gomes. Como recorda a passagem por esta escola?

Foi determinante. Era uma escola fantástica, com um corpo docente incrível composto pelos músicos mais ativos da altura, a grande maioria eram autodidatas e, como tal, o processo de ensino / aprendizagem era, também ele, muito experimental, o que significava, por um lado, algumas dificuldades e morosidade, mas, por outro, era altamente revigorante e potenciava a individualidade. Pela forma apaixonada e próxima como dava aulas, o mestre Alberto Jorge foi fulcral para eu progredir e chegar ao contrabaixo e Paulo Gomes, que na altura já era um músico inovador, informado e motivador, foi o empurrão final para mim e para muitos outros.

 

Em 2008 licenciou-se na ESMAE em Contrabaixo/Jazz. Como foi estudar na ESMAE? Um rampa de lançamento para os meandros do jazz ou já se movimentava nesse circuito por essa altura?

Sim, já tocava e já estava inserido no circuito do jazz do Porto.

 

Quer nomear algumas referências fundamentais no jazz, desde então?

Charles Mingus, Paul Chambers, Scott LaFaro, Charlie Haden, Ray Brown, Christian McBride, Anders Jormin, Carlos Bica, Larry Grenadier, Scott Colley, Dave Holland, Miles Davis, John Coltrane, Lee Konitz, Charles Lloyd, Herbie Hancock, Bill Evans, Fred Hersch, Keith Jarrett, Brad Mehldau, Jim Hall, Kurt Rosenwinkel, Paul Motian e todos os que falta mencionar… Quanto a discos trata-se de uma lista infindável, mas Charles Mingus e quase toda a sua discografia, sobretudo “Mingus Mingus Mingus”, “Mingus Ah Um “ e “Let My Children Hear Music”, “Kind of Blue”, “Beyond the Missouri Sky”, “Song Song Song”, etc…

 

Qual é a sua relação com a chamada “tradição” do jazz? Recorre a ela, mimetiza-a, desafia-a, subverte-a?

Claro que sim, é como saber o abecedário para poder escrever. Recorro a ela, desafio-a, subverto-a quando se justifica, mas acho que está sempre lá, mesmo quando não é óbvio.

 

Pelo início desta nossa conversa, já se percebeu que é influenciado por outras formas de arte, designadamente pela filosofia, pela política e pela literatura. Gosta de explorar estas polinizações cruzadas?

Sem dúvida, gosto de ter a cabeça cheia de ideias, pensamentos, reflexões, contemplações, dúvidas, etc., e isso só se consegue se “semearmos” a nossa cabeça com boas sementes. Para mim, todas as formas de arte, a política – muito honestamente, não a nossa do dia-a-dia, que é mais um campeonato “futebolístico” do que política, funcionando como “estrume” –, a literatura, o silêncio, as pessoas que me importam são simultaneamente as sementes, o sol, a água e o calor de que necessito para uma boa colheita.

 

É também licenciado em Informática/Matemática Aplicada pela Universidade Portucalense. O que guarda desta área? De que modo, eventualmente, beneficiou, para o seu trabalho enquanto músico, dos conhecimentos de matemática e de computação?

Guardo muito e ainda a utilizo e desenvolvo, sobretudo a programação de computadores. Acho que a programação e a improvisação têm muito em comum, utilizamos os mesmos algoritmos e são igualmente belos e individuais. Na programação, como na improvisação / composição, temos regras, fundamentos, recursos e vários caminhos possíveis para a mesma coisa e cada um escolhe a forma pessoal de utilizar tudo isto. É curioso: já pensei em fazer uma tese sobre isto e sei que existem vários trabalhos e teses sobre este assunto. É, também, curiosa a quantidade de músicos de jazz que têm ou tiveram uma relação com a programação de computadores e / ou a matemática…

 

Lidera o seu próprio quarteto, com o qual lançou os recomendáveis “Branco” e “A Vida de X”. Em que pé está esta formação? Podemos esperar novo disco?

Claro que sim, já com muita música nova escrita… Já estou com saudades deste grupo, espero gravar o novo disco ainda este ano.

 

Para além do seu quarteto, integra também os projetos Ensemble Super Moderne, Mazam e MAP, o trio do pianista Pedro Neves (com o qual lançou, também em 2019, o excelente “Murmuration”), o quarteto do guitarrista Bruno Macedo e o Jogo de Damas. Como se sente enquanto parte decisiva de todas estas formações?

Se integro a formação é porque de alguma forma me identifico com as pessoas, e / ou a música e / ou o conceito ou, simultaneamente, tudo. Quanto a ser decisor, somos sempre, porque no jazz há a liberdade de fazermos opções que afetam o coletivo, mas sou mais decisor nuns do que noutros…

 

Em 2017 editou “I Think I´m Going to Eat Dessert”, notável disco a solo com selo da Creative Sources. Como se sentiu sozinho debaixo dos holofotes? Continua a interessar-se pelo lado mais solitário da prática musical?

Um disco a solo é como posar nu numa praça pública. É uma exposição assustadora que se contrapõe à liberdade que isso nos dá. Não há limites nem imposições, somos totalmente autênticos. Na verdade, é uma balança difícil de equilibrar, ou seja, a exposição / solidão versus liberdade criativa. Sim, continuo, mas para já não tenciono fazer outro disco a solo, tenho de descansar deste.

 

Com a cantora Sónia Pinto mostra também ser um acompanhador de mão cheia. Sente-se confortável nessas tarefas?

Muito confortável. Na minha opinião, a principal função de um contrabaixo é a de criar o elo entre a harmonia e o ritmo, ou seja, ser um acompanhador. Gosto muito de desempenhar essa função, acho até que é com ela que podemos ser mais criativos e influenciadores do som global do grupo.

 

Neste ponto do seu percurso, como se define enquanto músico e compositor? O que busca com a sua música?

Não sei como me defino. Acho que a única coisa que procuro é a minha identidade musical, quer como músico, quer como compositor, tendo a noção que ela também é mutável. Vamos crescendo, ouvindo mais música, procurando e absorvendo e acabamos por nos atualizar. A minha procura é essa, ser eu próprio, tentando criar música que seja minha, embora nunca omita as minhas influências, e que de alguma forma seja nova e única.

 

Como é o seu processo criativo? É daqueles compositores repentistas que têm ideias em qualquer ocasião ou necessita de algum tipo de condições para compor? Compõe com regularidade, procura esboços dentro das gavetas?

Sou muito irregular e pouco metódico. Tenho cadernos em que aponto ideias, mas não lhes ligo muito… O meu sistema é estranho: quando crio alguma coisa, normalmente ao piano, só é válida quando nunca mais a esqueço. Por norma nem a escrevo… fica a destilar na memória, vou tocando até surgir o momento certo em que todo o desenvolvimento acontece naturalmente.

 

A sua música revela equilíbrio entre a composição rigorosa e elegante e o risco inerente à improvisação, podendo esta ter mais ou menos graus de liberdade. Como gere estas duas dimensões e de que forma encara a chamada “composição em tempo real”, com pouco ou nada previamente preparado?

Gosto muito dessa análise, é bom que a minha música transpareça isso. Não giro isso de forma racional, acho que essas decisões são tomadas no processo de composição. Por vezes imponho acordes, ritmos, estruturas fechadas, outras apenas uma ideia ou um gráfico, ou seja, o que o tema me impuser como lógico e / ou necessário.

 

Excetuando o disco a solo, parece inclinar-se para formatos de média dimensão (trios, quartetos...). Gosta de explorar a intimidade musical que estes contextos proporcionam?

Sim, gosto da intimidade musical que proporcionam, mas também gosto de formações mais alargadas como o Ensemble Super Moderne. O problema é a dificuldade de coordenar muitas pessoas…

 

Boa parte da sua discografia (em nome próprio e dos projetos que integra) tem chancela da Carimbo Porta-Jazz, editora que tem dado uma justa visibilidade a muitos músicos da cidade do Porto e da região norte do país. Como tem sido a sua relação com a Associação Porta-Jazz? Em seu entender, qual a relevância que a mesma tem tido na divulgação do muito e bom jazz que se faz hoje em dia por estas paragens?

Acho que a Porta-Jazz é um excelente exemplo de associativismo e, sobretudo, da demostração do princípio “a união faz a força”. Foi, e é, determinante para os músicos do Porto, para o jazz nacional e hoje até na forma como contribui para o jazz além-fronteiras. A Porta-Jazz transformou o jazz do Porto, potenciou músicos, projetos, formações, colaborações, intercâmbios, enfim... É hoje uma referência e um polo agregador. Faz este ano 10 anos de existência, e só quem estiver muito desatento é que não percebe a importância que a associação teve e tem no panorama do jazz do Porto e do país.

 

Temos sido surpreendidos pelo surgimento, cada vez mais frequente, no Porto, de novos valores em diversos instrumentos... Há alguns nomes que gostasse de destacar e a quem deveremos prestar atenção particular?

Há muitos músicos da nova geração, alguns já não são assim tão novos, pelo menos para nós, músicos do Porto, mas há alguns que me surpreendem pela originalidade e que acho que serão vozes importantes no futuro. Não quero referir nomes porque não os conheço todos e porque receio poder esquecer-me de algum…

 

Considera que, se vivesse em Lisboa, o seu trabalho teria uma maior visibilidade ou esta é uma falsa questão? Existem condições atualmente para que haja uma maior simbiose criativa entre as cenas jazzísticas de Lisboa e do Porto? Tem havido uma evolução positiva nesta relação?

Não sei se teria maior visibilidade, o que sei e observo é que a pouca imprensa ativa que existe sobre esta arte está concentrada em Lisboa, o que, como é óbvio, facilita a tarefa de divulgação para quem está próximo. A imprensa não se desloca ao Porto ou a Barcelos para assistir a um concerto ou ao lançamento de um disco, como tal isso acaba por “penalizar” todos os que não tenham a sua atividade em Lisboa. Acho que as condições atuais são iguais. Existe é a Porta-Jazz, que potencia estas ligações, mas acho que há mais empenho nesta relação em músicos do Porto do que em músicos de Lisboa. De qualquer forma, acho que é uma relação que tem progredido.

 

O que está agora na cabeça de Miguel Ângelo?

Neste momento estou focado nos MAU, a pensar no lançamento do belo disco dos Mazam de João Mortágua e a compor para gravar brevemente o próximo disco do quarteto.

 

* Com a devida vénia, o título desta entrevista foi retirado da letra da canção “Utopia”, de José Afonso, incluída no álbum “Como Se Fora Seu Filho”, editado em 1983.

 

Para saber mais

http://www.miguelangeloctb.com/

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Clara Lacerda “Residencial Porta-Jazz”

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